Iara: a sereia brasileira
Texto sobre a nossa sereia
Até Ulisses, guerreiro invencível e grande estrategista, viu-se mal frente aos encantos irresistíveis das sereias. Mulheres, diria ele, são mais perigosas que qualquer inimigo. Envolventes, elas não querem nada menos que tudo… Entre os diversos tipos de monstros femininos, a começar pelas bruxas (as matriarcas do território mágico), provavelmente as sereias sejam as que melhor encarnam a representação da mulher como uma cilada, aquelas cuja sedução é tão irrecusável quanto mortífera.
A Iara é a versão brasileira da sereia, esse ser metade mulher, metade peixe, que existe no folclore de quase todos os povos. Sua imagem é duma mulher atraente: teria os cabelos loiros longos, os olhos claros, geralmente verdes, e, da cintura para baixo, um rabo de peixe do tamanho equivalente ao das pernas. Sua arma é o encanto, tanto pela linda voz com que canta, como pela sua aparência deslumbrante. Faz parte ainda de sua sedução a promessa de riquezas ou de uma vida melhor em seu reino subaquático. Com essas iscas atrai as vítimas para seus domínios. Enquanto as sereias consumam o bote de uma vez, a Iara pode atuar também a longo prazo. Depois do golpe do amor à primeira vista, a Iara instala-se no coração da vítima, a qual, por mais que tente resistir, acaba buscando-a e some no rio.
Ao contrário do que se pensa e do que o nome sugere, não se trata de um mito indígena. Os nossos índios tinham personagens aquáticos, mas não eram propriamente sedutores: eles agarravam e matavam suas vítimas de forma gratuita e brutal. O que temos no caso da Iara é a versão de um mito europeu, recontada com as tintas da paisagem local. Embora seu nome possa ser traduzido do tupi por “senhora” (também no sentido de ter um domínio), seu nome talvez provenha dum personagem indígena que vivia nas águas, o Ipupiara, textualmente: o que reside no fundo das águas. A mistura desse demônio indígena, geralmente masculino, com o mito europeu da sereia resultou na Iara. Na verdade, fora o nome, ela em pouco difere da sereia européia. Às vezes, é descrita como sendo constituída por uma metade mulher e uma metade cobra. Nesse caso, provavelmente estamos frente a um resquício de outro personagem: a Cobra-grande, um mito indígena aquático. Outras vezes, é confundida com a Mãe-d’água, esse sim um mito genuinamente nacional, mas que só tangencialmente podemos ver nele elementos em comum com a sereia. Para os índios tudo tem uma mãe (uma Cy), que é ao mesmo tempo a origem da coisa e o espírito protetor que a guarda, ora, os rios também teriam esse ser guardião, essa “mãe”.
Mais do que peixe n’água, uma mulher sabe ser uma boa isca. Sabendo fazer caras e bocas não há homem que consiga resistir, já que recusar seus encantos faz os homens sentirem-se menos viris. Não se trata apenas de uma correlação entre os atrativos femininos e os hormônios masculinos, a sedução é o tipo de apelo que fica mal não atender, por isso mesmo os mais viris sucumbem. Porém, ao segui-la, a presa afoga-se ou fica presa em seus domínios. É aí que o caçador torna-se caça.
Mas para onde vão os capturados pelas sereias? Predominantemente são pensados como mortos. Quanto às sereias gregas não há dúvidas, a ilha em volta está cheia de carcaças humanas, viraram pasto. As européias é possível que também consumam suas presas, mas lá já fica a dúvida, que na Iara já é bem maior, de que eles estariam presos nesse reino prodigioso, vivendo do bom e do melhor. A Cotaluna, sereia de João Pessoa, é uma variação regional da Iara. Essa sim deixa seus homens partirem depois da captura, porém eles nunca mais serão os mesmos, ela lhes sugou a força vital, tornado-os destituídos de vontade. De qualquer maneira, creio que esse mito alude ao quanto o amor é anti-social, pois os amantes fecham-se sobre si e dão as costas para o mundo.
Vale lembrar, que as sereias gregas que tentaram Ulisses eram hibridizadas com pássaros, do torso para baixo eram aves e viviam nas pedras junto ao mar. Portanto, o lado animal dessas perigosas fêmeas pode variar, mas não a ameaça que isso representa. No folclore europeu, como em tantos outros, as águas podem ser reinos de seres mágicos. De forma geral, águas calmas, lagos, represas e fontes costumam ser habitadas por seres femininos; enquanto nas águas agitadas, rios e corredeiras, encontram-se seres masculinos. Ambos são sedutores, mas as criaturas mágicas femininas – sereias ou ondinas – têm na sedução sua principal característica: costumam encantar jovens homens que se perdem nas águas para nunca mais serem vistos.
Tanto a sereia européia como a Iara representam a dificuldade de nossos antepassados para lidar com o sexo em geral e com a beleza e os encantos femininos em particular. A mulher era concebida como fonte do pecado e quanto mais bela, mais tentadora. A tentação, no caso, equivale ao descontrole, elas detêm o poder sobre o momento em que os homens deixam de ser senhores de sua vontade, podem enlouquecê-los e possuí-los… Perigosa assim, só mesmo a mãe. Uma mulher que os filhos pequenos sempre consideram linda e poderosa, cuja vontade acaba sempre prevalecendo à deles, e cujos encantos sempre se sobreporão a quaisquer outros no mundo. A sereia é herdeira do enamoramento do bebê por sua mãe, um vínculo que tende ao absoluto, ao todo, à mútua satisfação, ao apagamento do mundo em volta. O estado de entrega inebriada de um bebê mamando equivale ao de ser engolido pelas águas dessas criaturas híbridas, que na água parecem estar em seu elemento e é para ele que atrairão o seu homem-objeto.
Mas não podemos esquecer que a Iara/Sereia, embora belíssima, em sua parte inferior esconde um animal. Psicanaliticamente falando, o problema das mulheres não é o que se vê da cintura para baixo: é o que não se vê. Freud dedicou linhas ousadas ao tema do fetichismo, ou seja, o que pode restar na vida erótica masculina frente à constatação da ausência do seu precioso órgão na metade dos indivíduos da humanidade. Onde foi parar o pênis desses, que ainda por cima se sexuam em torno de um buraco? Sem dúvida trata-se de um vazio cheio de sentimentos e sensações, mas que tem a marca de uma ausência. Por que não pensar que esses países baixos sejam de seres de outra espécie? Seria uma forma radical de ilustrar a diferença dos sexos.
Resta a questão do porquê os seres humanos dessa espécie “fêmea” seriam tão perigosos. A primeira explicação remete à anteriormente mencionada mãe, um personagem forte e inesquecível, que, ainda bem, só temos uma. A segunda, diz respeito às dificuldades oriundas dessa “castração” feminina, cuja existência é, para os homens, constante fonte de ameaça. Uma terceira hipótese poderia ser mais sociológica: carentes do poder formal, as mulheres, durante séculos de opressão masculina, desenvolveram formas ardilosas e caseiras de poder. Dentro do ambiente fechado e doméstico, onde um homem é atraído pela força de seus encantos, ele não passa de um joguete de seus desejos e intenções, mais tonto do que o pobre Macbeth, o falso rei do castelo.
Por último, convém não esquecer que o sexo sempre vem acompanhado de uma representação selvagem e ameaçadora. Ela é fruto das nossas hipóteses infantis que confundiam o intercurso sexual com um vínculo agressivo, em função da violência aparente das suas imagens e sons. Portanto, um personagem tão erotizado como a sereia não poderia dar em boa coisa. Moral da história: todo cuidado é pouco com os encantos femininos, o sexo é animal e, da cintura para baixo, é que está o perigo.
Publicado na revista Argumento, Rio de Janeiro, número 10, agosto de 2005
adorei essa descrição da Iara, a origem da lenda e todos esses ricos detalhes e comparações que você expôs. além de entrar na questão psicológica e social, parabéns!