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Eu me amo

Sobre a literatura de auto ajuda

O título é uma lembrança de uma música homônina do Ultraje a Rigor que satiriza o narcisismo contemporâneo. A música é simples, um sujeito vivia triste e sem sentido, eis que descobre a maravilha que ele próprio é e passa a amar-se a ponto de não mais poder viver sem si mesmo. A letra é muito feliz, pega nesse escracho o absurdo do narcisismo contemporâneo.

Individualistas, como cada dia mais somos, partimos da crença que boa parte de nossos problemas poderiam ser resolvidos se tivéssemos uma boa autoestima. Então assim seguimos, buscando ser um objeto o suficiente bom para podermos nos amar e ganhar mais independência dos outros.

Essa concepção é a mola mestra dos conselhos de nossas comadres e de uma literatura bem em voga: os manuais de auto-ajuda. Quanto às comadres, tudo bem, estão imersas em seu próprio tempo, é isso mesmo que iriam dizer, porém quanto à literatura é necessário uma crítica, afinal, mostram-se vendendo uma sabedoria “científica”.

Infelizmente o narcisismo não é binário, assim fosse, nossos problemas estariam resolvidos, todos nos amaríamos a nós mesmo e seríamos felizes para sempre. O narcisismo precisa ser pensado sempre a três termos: eu, mim mesmo e o outro. O raciocínio comum pega um eixo com dois elementos que correm em um polo: ser ou não bom para si mesmo enquanto objeto. O que fica elidido desse raciocício é o outro, ora se somos amados pelos outros então nos julgamos bons para sermos amados por nós mesmos e caso contrário não.

O problema é que somos tão individualistas e tão narcisistas que não admitimos o quanto somos dependentes. Sonhamos em ser ermitões espirituais, não depender do reconhecimento alheio para nada. Seria uma boa idéia senão pelo detalhe de vivermos em sociedade. O delírio individualista que os manuais de auto-ajuda apontam é este: cada um deveria ser uma célula independente, seria o seu próprio mestre e o seu próprio amante. Se o julgamento do outro não te convém julgue você mesmo, se a alteridade não te favorece suprima-a.

Isso pode funcionar por que é o canto de sereia que queremos ouvir, gostamos de fantasiar que querer é poder e que alguém determinado não tem limites. Gostamos de pensar que poderíamos ser uma fortaleza psíquica cheia de vontade, com uma energia sem fim. Não é difícil sentir-se assim, é algo que todos podemos em algum momento experimentar, pois trata-se dos momentos em que estamos identificados ao nosso ideal de ego. Ora, a estratégia do discurso de autoajuda pega esse caminho e faz uma espécie de doping psíquico. Deste modo cada um é levado a creer que ele é esse ideal e desde aí deve considerar seu ponto de vista, este seria o eixo de sua personalidade, toma-se a parte pelo todo. Nossas fraquezas, dificuldades, contradições, inibições não contam nessa nova matemática, isso fica elidido para poder inflacionar o ego.

Evidente que não é sem custo esta operação, quem acreditar nisso vai ficar jogado numa dinâmica maníaco-depressiva. Cada vez que o sujeito esbarra na realidade tropeça e cai, para sair da depressão reiventa a miragem narcísica e segue até o próximo tombo.

“É preciso estar bem consigo para estar bem com os outros”, todos já ouvimos esse conselho, ele não é falso em sí, ele é falso na raiz, não há essa dicotomia entre o eu e os outros por que não há eu sem outro, é uma impossibilidade até lógica. A psicologia não pode assumir sem crítica os valores do individualismo contemporâneo e transformá-los em conceitos como é feito ao redor do termo auto-estima.O que precisa ser lembrado é que a rigor, a auto-estima não existe. Existe enquanto uma auto-percepção mas não como uma entidade dinâmica. A miragem da auto-estima faz parte do discurso narcisista de colocar o ego como medida de todas as coisas.

Hoje é mais fácil e mais comum ouvir que se tem a autoestima baixa do que pensar que é o nosso desacerto com os semelhantes que nos causam problemas. Revirando um pouco, o que vem atrás desta queixa de insuficiência narcísica é alguém que se sente menos amado, que não se julga reconhecido como supõe que deveria mas não enuncia como uma falta ao outro e sim como uma insuficiência sua consigo próprio. Se “os outros não me amam” é lido como: “eu não me amo”, “eles não me reconhecem” vira: “eu não estou a altura de mim mesmo, não correspondo ao que sonhei para mim”. Ou seja o seletor de interpretação ficou trancado no eixo do imaginário narcísico.

Sartre dizia que o inferno são os outros, não sei se podemos desmenti-lo, estaria mais a ponto de concordar mas a questão não está posta como opção, não temos escolha, a saída será sempre considerando as alteridades. Para contrabalançar podemos lembrar Vinicius: “a vida é a arte do encontro” e posso lhes assegurar, os livros de auto-ajuda são manuais de desencontros.

Publicado no Jornal do Conselho de Psicologia CRP-07
19/04/99 |
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