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ADOLESCENTES E O SEXO NA INTERNET (parte 3, final, do capítulo “Nativos Digitais” do livro “Adolescência em cartaz

Uma conversa sobre a ausente representação do erotismo, contrastando com a farta oferta de pornografia na internet. Um alerta sobre os efeitos traumáticos dessas imagens que podem ser excitantes, mas também duras, deixando um amargo tempero de passividade e submissão, principalmente feminina, como universal no sexo. Um alerta sobre cyberbullying, sobre os riscos, particularmente das meninas, de ser expostas, quando pensavam poder confiar. E sobre amores, inicial ou permanentemente virtuais, que chegaram à vida de todos nós, o que pensar sobre isso para os adolescentes?

SEXO NA INTERNET

Um elefante na sala

É engraçada a nossa cultura. Ao longo da infância, de um jeito ou outro, as crianças assistem na TV a centenas de assassinatos, destruições de carros, prédios, cidades, explosões variadas, esfacelamentos de corpos humanos. Nós até tememos que isso possa ser um problema, mas não criamos muito caso. Porém, basta aparecer uma cena de sexo na tela, que o escândalo está feito.
Quando as crianças brincam é o mesmo: elas são cheias de onomatopeias, colocam seus personagens de brinquedo em confrontos letais, em choques, estes voam longe e se estrebucham contra a parede, frente ao nosso plácido olhar. Agora, imagine se os personagens do brinquedo se lambessem, como fazem os animais entre si, ou esfregassem seus corpos um no outro. Rapidamente, se armaria um grande alarde, em busca do que estaria causando tais fantasias despropositadas nos pequenos. Não importa o quanto os psicanalistas tenham insistido na existência da sexualidade infantil, ainda nos surpreendemos perguntando-nos: de onde estariam tirando essas ideias?
A sexualidade e o erotismo são um elefante na sala sobre o qual ninguém diz nada e todos fingem não estar notando. Quando finalmente chega a adolescência, esse jogo se reverte e os pais e professores tentam ter conversas, às quais os jovens reagem com exasperação. As abordagens são por vezes suaves, entre diálogos diplomaticamente buscados, recomendando calma, coragem e cautela, por outras em clássico tom de sermão. Seja como for, os filhos raramente sentem-se tranquilos para abordar o assunto em casa e acham muito estranha a insistência em falar do elefante, que sempre esteve ali sendo tratado como invisível.
Quanto às escolas, quando há alguma educação sexual, raramente envolve algum tipo de debate livre. Qualquer discussão será barrada por um clima de vergonha e tabus, raramente orientada pelas verdadeiras curiosidades de cada faixa etária. O tom costuma combinar acima de tudo com as fantasias que os adultos projetam sobre os pequenos e os jovens. Já o esclarecimento, sempre bem vindo, restringe-se à fisiologia e anatomia do sexo e da reprodução. Não está mal, ao contrário, devemos estar muito informados desde o mais cedo possível sobre nosso corpo, assim como sobre as peculiaridades anatômicas e fisiológicas de cada sexo e sua maturação, de como se dá a fecundação, bem como quais são os perigos das doenças sexualmente transmissíveis.
Ao par dessas informações imprescindíveis, há muito mais do que falar: estão os temores relativos a ser ou não desejável, quanto a ser capaz de sentir prazer e como isso se faz, sente e expressa. As inseguranças quanto ao desempenho nessa intimidade tão sobrecarregada de expectativas públicas são tantas quanto ignoradas. Nos meios de comunicação existem sexólogos, médicos ou psicólogos capazes de dialogar livremente com os jovens e estes sentem-se tranquilos para perguntar, consultá-los e expor seus impasses. A grande popularidade desses interlocutores já indica de que há demanda de algo que na vida corrente é uma raridade: um adulto, técnico ou não, que consiga falar de sexo, até mesmo em público, sem tantas mesuras ou prolegômenos. A educação sexual é sempre difícil em função de que entendemos pouco o que nos move na intimidade, ou seja, podemos até ter uma certa liberdade para viver nosso erotismo, mas faltam-nos palavras para falar sobre isso. Ao par, temos medo de influenciar negativamente alguém em formação.
A vida sexual continua sendo um impasse para a maior parte das pessoas. A grande esperança da revolução sexual não aconteceu. Essa promessa vem desde a contracultura dos anos 1960. Acreditávamos que uma sociedade menos repressiva seria menos neurótica, que se as pessoas tivessem mais experiências sexuais seriam mais felizes. É claro que melhorou: temos menos tabus, acesso a mais experiências, menos preconceitos, porém, isso não nos tornou necessariamente tão realizados no campo sexual como supúnhamos que ocorreria.
A esperança do sexo como fonte de felicidade humana deixa a desejar. Sua falta é uma grande frustração, mas a sua presença, ou seja, uma vida sexual ativa, não entrega tudo o que nos prometeram. E pior, não raro as inibições sexuais driblam as liberdades conseguidas e reafirmam sua força. Ou seja, a sexualidade segue sendo fonte de neuroses. Ela não tornou-se, como era esperado, a panaceia para a angustia humana, pelo contrário, costuma estar associada ao gatilho desse sofrimento. O sexo é supervalorizado enquanto expectativa e é óbvio que as crianças e os adolescentes ficam capturados por suas promessas e querem saber tudo sobre tão interessante assunto.
As diferentes formas de gozo organizam nossas vidas: mesmo tratando-se de práticas que pouco têm de públicas, costumamos classificar e discriminar as pessoas de acordo com a forma como sentem prazer sexual e com quem. Quase não conseguimos falar diretamente sobre esse tema, mas deixamos clara nossa posição sobre desejar alguém do mesmo gênero ou não, sobre a prática do sexo ocasional, e interessa-nos sempre a aparente potência ou sensualidade dos outros.
Abordar os temas do amor e do erotismo juntos, até mesmo entre amigos íntimos, exige uma capacidade de introspecção, de honestidade consigo mesmo e com o interlocutor que com frequência nos fogem. Imagine fazer isso no terreno pantanoso da comunicação com um adolescente. Não seria tão delicado se deixássemos o diálogo fluir a partir do que ele consegue e precisa debater, mas entendemos que muitas vezes é uma delicada percepção das oportunidades que se abrem para fazê-lo e nem sempre conseguimos perceber a tempo quando uma brecha surge. Frequentemente as perdemos face às nossas dificuldades em lidar com o tema e com a ideia de que no lugar da nossa criança está surgindo alguém que fez ou fará sexo!
Isso não é uma falha pontual, é uma problema da nossa civilização carente de uma cultura e uma arte eróticas, no que outras foram ricas. Depois de ter inventado mil exorcismos morais e religiosos para o prazer sexual – principalmente o feminino – acabamos impedindo a construção de um discurso positivo sobre ele.
A pornografia, que esbalda-se em imagens e roteiros estereotipados e explícitos, reina nesse terreno que deixamos baldio. Sua banalidade quer fazer parecer simples e unívoco o que é sutil e complexo, ela nos conduz a uma experiência erótica de parca interação, entre corpos vistos de modo fragmentado, envolvidos em desempenhos sexuais atléticos. Essa simplificação não cumpre o objetivo de nos tranquilizar, pois a sensualidade que habita nossos corpos e anima desejos e fantasias continua pobremente representada. Se nós adultos ainda somos tão atrapalhados para expressar-nos nesse território, mesmo depois de sermos supostamente experientes, o que resta aos iniciantes?

Pornografia ao alcance de um click

A pornografia e o erotismo são primos distantes, mas às vezes, confundimos os dois. Os limites podem parecer tênues, dependendo da subjetividade de quem vê. O erotismo pode ser usado com fins pornográficos, e algo pornográfico pode ser sentido como erótico. Para a psicanálise, a pornografia é uma espécie de recurso utilizado quando o desejo recorre a uma fantasia emprestada para animar uma relação sexual. Ela também serve quando a questão de olhar e ser olhado é parte essencial do que anima os envolvidos, também funciona como oportunidade para uma espécie de sexo grupal imaginário. Ela pode ser uma espécie de aditivo, uma muleta do Eros, uma tentativa de viabilizar a relação sexual ou fornecer um cenário para a masturbação.
O erotismo, por outro lado, é a poética possível do desejo sexual. Ele incrementa um desejo que já existe, dando-lhe uma dimensão maior e possibilitando um ato sexual. O erotismo lubrifica o encontro de subjetividades e seus corpos, sendo igualmente disponível para toda a gama de fantasias e desejos possíveis, só que nessa estética eles não são reduzidos às suas versões caricaturais.
A pornografia coloca em cena fantasias que as pessoas podem imaginar estar vindo de fora, quando na verdade elas provêm de dentro. Se uma pessoa assiste um filme pornográfico e se excita, ela pode pensar: “é um outro que está vivendo aquilo”. Mas, na verdade, essa pessoa está provavelmente contemplando o reflexo de uma fantasia interna reprimida. A pornografia tem dupla face: vende-se como algo liberal, quando na verdade pode estar sendo usada para recalcar as próprias fantasias de quem a consome. Mas isso são questões da sexualidade, qual seria especificamente o malefício de tanta pornografia facilitada ao alcance de crianças e adolescentes?
O encontro muito precoce com a pornografia vai deixar uma criança, ou mesmo um adolescente menos iniciado, com imagens e questões que ainda não consegue processar. Pode ter efeitos similares a um trauma, que é uma vivência que não temos como decodificar e portanto fica insistindo para ser assimilada. No caso da pornografia, muitas vezes o sujeito volta a assistir para processar, não é exatamente um trauma nem um vício, mas está preso a um circuito em que tenta dar conta do que se viu, justamente porque aquilo não diz algo compreensível, fica como puro ato sem contexto.
O drama da pornografia é o analfabetismo erótico e amoroso que ela pode desenvolver. A vida sexual não funciona com o autocentramento das fantasias masturbatórias, que parecem ser o cerne do funcionamento pornográfico. A redução do outro à condição de objeto até pode ser um jogo erótico acordado, mas na estética pornográfica costuma ser via de mão única. Além disso, o sexo é representado como fácil, automático e sem as arestas inevitáveis do encontro de duas ou mais subjetividades. Ela fornece um mapa não confiável para quem a usa, que atrapalha bastante ao aventurar-se mais tarde em experiências eróticas ou amorosas envolvendo pessoas reais.
Não acreditamos que a pornografia por si induza a novos comportamentos. Esse grande medo é infundado: ela mais representa do que causa, se a sexualidade é assim retratada é porque esse é o ideal majoritário. A injustificável presença de uma pornografia pedófila na rede, não transforma ninguém em pedófilo, ela existe para alimentar de imagens os que já têm essa fantasia. Por outro lado, a existência desses abusadores – mesmo que imaginários – de crianças acaba incentivando o abuso real necessário para a produção de tais imagens. Além disso, são imensuráveis os riscos do encontro de uma criança ou de um adolescente com imagens de pornografia pedófila. Neste caso, ao contrário das que existem para consumo dos entusiastas, pode sim produzir-se um efeito traumático, embora não supomos que possa causar diretamente o envolvimento de crianças em encontros desse tipo. Uma criança que assiste pode demostrar inquietudes ou até apresentar sintomas, por se perceber vulnerável. Afinal, isso acontece, ela viu.
Na ausência de uma narrativa, de representação artística do erotismo, ou mesmo frente à impossibilidade de debate sincero sobre a sexualidade, a geração que está iniciando-se acaba utilizando a pornografia como uma espécie involuntária de tutorial. Fica então espelhando-se em um sexo mais distante e frio, justamente porque não costuma ter um enredo plausível, retratar um verdadeiro encontro. Ela é problemática por estreitar a gama de possibilidades do imaginário sexual dominante e transformar o ou os parceiros em objetos manipuláveis. Seus clichês de enorme difusão são responsivos da grande demanda dos que os consomem.
O mundo nunca precisou da pornografia para ser machista ou sexista, mas ela vem a somar nos mal entendidos da Babel do sexo, onde o prazer feminino é praticamente desconhecido e as crianças são usadas para o exorcismo do desejo ambivalente de ser passivo. Na colocação de mulheres e crianças na condição de puros objetos, o que está em jogo, para além do sexo, são as relações de poder no mundo real, essas sim são perigosas e problemáticas.
Esse pode ser mais um caso em que culpamos o meio pela mensagem, a virtualidade pelas fraquezas e perversões humanas, as quais existem muito antes de haver suporte material para pornografia. Pode ocorrer que alguns aspectos dela tragam à luz fantasias obscuras de que o consumidor não se dava conta, iluminando um campo escuro do seu ser. Talvez esse encontro com imagens de suas fantasias mais escondidas possa fazer com que alguém se sinta legitimado a realizá-las, mesmo que envolvam comportamentos abusivos, é uma hipótese a considerar, mas é difícil afirmar com certeza. O uso instrumental do outro, ou seja sua desumanização, não precisa passar pela pornografia e quando passa, já estava dado na estrutura de quem faz.
É preciso ter uma consistência pessoal diminuta para constituir uma identidade, um modo de amar e desejar e um sistema de valores a partir do caleidoscópio de imagens, de pedaços de corpos e vinhetas de gozo provenientes do material pornográfico. Essas pessoas limitadas podem até existir, mas não constituem a massa dos consumidores dessas fotos, vídeos e relatos. Para essa maioria, a pornografia não produz uma alteração do quadro erótico do sujeito, apenas alimenta e por vezes o mantém preso às suas estereotipias. Ninguém vai se tornar um zoófilo depois de ver um vídeo de zoofilia por engano e tampouco vai consolidar uma via de desejo somente por estar assistindo essas imagens. Desenvolver obsessões monotemáticas no campo sexual é uma de nossas defesas prediletas.
Não acreditamos que com a Internet a pornografia tenha mudado. O que mudou foi o meio e a facilidade de acesso. Existe algum meio conhecido que não tenha sido usado para o sexo? Qualquer um que inventarmos servirá para veicular fantasias sexuais, sejam elas eróticas ou pornográficas. A novidade está na possibilidade de acesso, pois a internet distribui qualquer conteúdo com muita eficácia. Se associarmos a isso o fato de que os recém chegados ao mundo têm acesso à rede de forma sempre mais eficiente que os que seus predecessores, teremos um fenômeno de difícil controle.
Mesmo que sejam acionados inúmeros dispositivos de controle parental, será praticamente inevitável o encontro na internet de mentes despreparadas com alguma imagem forte, pornográfica, de difícil decifração e grande impacto. O que fazer para ajuda-los a decodificar essa oferta de um retrato tão pouco amigável e factível do sexo? Seguramente, resta aos adultos responsáveis por zelar de crianças e adolescentes fazer uma contrapartida ativa que não se limite às atitudes de censura de conteúdo impróprio para a faixa etária. É preciso falar sobre sexo, permitir a circulação de obras literárias que retratem com o encanto da arte os prazeres e revezes da iniciação, permitir a circulação das dúvidas e a construção coletiva de uma narrativa erótica juvenil, condizente com as experiências que eles estão buscando. Ou seja, é preciso desenvolver e implementar uma educação sexual, seja lá como for. É necessário estar um passo à frente do encontro com essas imagens.
Nesse mundo digital onde os adolescentes movem-se tão bem, há um território inventado por eles e pelos jovens adultos, que é a construção de fanfics (fanfiction ou ficção de fã). São histórias escritas e partilhadas em sites dedicados a essa arte, onde parte-se de personagens já existentes, dos quais o autor é fã, provenientes da literatura, cinema, quadrinhos ou games, que são envolvidos em tramas ao gosto dos criadores. Eles apropriam-se dessas identidades para levá-los a cenários e cenas que não fazem parte do roteiro original, mas nas quais os fãs gostariam de vê-los.
O detalhe é que boa parte dessa produção escrita dedica-se a conteúdos eróticos, prova da sede que essa faixa etária tem por uma narrativa dessa índole. Além disso, a riqueza de material disponível derruba todas as teorias que vaticinaram que a disponibilidade de imagens mataria a capacidade de expressão verbal e escrita dos mais jovens. Estes não só consomem literatura, quando esta vai ao encontro de seus desejos, como a tomam de assalto, ao seu modo interativo e de cada conto aumentam muitos pontos. Algo interessante de notar é que a revolução digital fez com que essa geração escreva mais do que a anterior, pois nas redes, blogs, nos múltiplos sistemas de mensagens, escreve-se.
Os apocalípticos de plantão já haviam previsto que as gerações nascidas após o império da televisão ter se estabelecido na vida das crianças seriam analfabetas, disgráficas, empobrecidas. Isso não ocorreu. Depois disso, quando as primeiras redes sociais e sistemas de mensagens começaram a proliferar, vaticinou-se a destruição da gramática e da capacidade de expressão. A literatura infanto-juvenil na sua forma de livros impressos, em geral em grandes ou numerosos volumes, cresceu enquanto mercado junto com a internet, portanto, deve haver algo de errado nessas previsões. É evidente que a língua, que é viva e sempre em transformação, passa por modificações que são agora motivadas pelas vias digitais de expressão, porém isso é a normal plasticidade das palavras, que precisam adaptar-se, modificar-se para dar conta de narrar situações que antes não existiam.

Sexo privado em público

Uma imagem jogada na rede fica para sempre. Esse é um elemento essencial sobre o qual precisamos conversar com nossos jovens ao falar de sexo. Mais versados do que seus mais velhos nas experiências do cyberbullying, eles deveriam teoricamente saber que é arriscado enviar fotos do próprio corpo, os famosos nudes, para as pessoas com quem estão envolvidos. Fazê-lo é tentador, principalmente para os adolescentes. É uma forma de receber um olhar que os confirme como desejáveis, prontos para o jogo do sexo. Essa afirmação lhes parece atraente e mais fácil de suportar por ser intermediado pela tela, estando ainda longe do risco de serem tocados.
Estar pronto para ser olhado não significa de modo algum que se esteja pronto para ser tocado. Além disso, na fotografia a cena pode ser bem editada, recortados os melhores ângulos de si, congelando o olhar em uma imagem que tenta parecer ideal. Ao vivo estragamos tudo, mesmo que se tente repetir os gestos ensaiados dos clichês pornográficos, sempre teremos uma pele menos lisa, volumes nos lugares errados ou a falta deles, inspirando a implacável autocrítica. É hora de lembrar-nos também que o corpo é cada vez menos algo privativo, pelo contrário: ele tornou-se arena de conflitos, disputa pessoal em que precisa-se dar conta de rigorosas regras a respeito de sua forma, peso, cores e estatura, versus a inflexível realidade, que insiste em sua inadequação aos padrões tão rígidos.
Os espartilhos e sutiãs com armação e enchimento, em vez de desaparecer chegaram ao cúmulo, através das plásticas e próteses mamárias, de serem colocados dentro do próprio corpo, não são mais desvestíveis. Assim como as fotografias, o cinzelamento e a escultura do corpo visa uma imagem que se quer imutável, próxima da perfeição. Os padrões tendem a uma estética desnaturalizada, cheia de caprichos, que ao serem seguidos demonstram uma condição de obediência e conformidade. Estes têm a ver com o realce das zonas corporais mais cotadas, assim como é imprescindível o apagamento sistemático das marcas da passagem do tempo.
Um corpo assim trabalhado fornece a seu proprietário uma tranquilidade, no sentido de que ao ser exposto não constituirá um vazamento de sua intimidade, mas sim uma prova de sua adequação aos padrões exigidos pelo desejo dominante. As formas ideais são tão improváveis, que, salvo exceções, em nenhuma época da vida alguém se parece com o que deve ser. Por isso, mesmo os adolescentes precisam operar-se, exercitar-se e tomar substâncias para atingir tal forma. Lembramos aqui essas particularidades, porque após essas modificações estéticas a tendência é que se perca o sentimento de privacidade, visto que tão zelosamente preparou-se o íntimo para que faça bom papel em público. Frente a isso, é grande a vontade de dar a ver o que ficou bonito e a tendência é colocar essas imagens na rede, ou mesmo usá-las em diálogos sensuais virtuais. Isso não seria problema se a rede não estivesse lotada de lobos que caçam chapeuzinhos.
Essas intervenções corporais são diferentes das tatuagens, as quais tampouco podem ser retiradas e enfeitam a anatomia, determinando o percurso do olhar. Elas são uma marca sempre ímpar, tendem ao oposto da padronização. Estas também são uma forma de editar-se, como também são os cortes de cabelo, a maquiagem e a vestimenta. Porém, ao invés de seduzir através da evidência de estar encarnando um atrativo sexual convencionado, as tatuagens barram definitivamente um trecho de pele ao olhar alheio. Alguém que tenha um corpo muito desenhado nunca fica realmente nu. A tatuagem é uma tentativa de privatização paradoxal, pois expõe e oculta ao mesmo tempo. Faz parte de uma personalização de si, da busca de imparidade e de apropriação do corpo, de tal modo que ele tenha a própria identidade inscrita e a história pessoal escrita ali.
Tais manipulações corporais, assim como o perigo dos nudes vazados na rede pelos próprios retratados, evidenciam a relevância do corpo e do olhar do outro sobre ele. O corpo é arena não apenas para o exercício dos desejos, mas também de carências, conflitos e medos, por isso, tende-se a uma relação com ele cheia de sintomas e passagens ao ato, ou seja, nem sempre se faz o que se quer e se julga seguro e adequado. O mesmo ocorre com as experiências sexuais. Por isso, deve-se também tomar cuidado para impedir qualquer tipo de filmagem de cenas eróticas em que os jovens estejam envolvidos.
Casais que gostam de gravar ou fotografar imagens das próprias cenas sexuais não surgiram hoje, nem foram inventados pela internet. Trata-se de brincar com a presença de alguém olhando, que podem ser eles próprios, mas encenam a existência desse terceiro elemento. Também podem gostar de fantasiar com a exposição pública de suas ousadias eróticas, porém, todas esses prazeres imaginários, revelando que o olhar de fora é importante na cama para muitos, tornaram-se particularmente perigosos com a internet.
O que atrapalha e muitas vezes impede de tomar esses cuidados é o clima de confiança que o amor implementa, do mesmo tipo que faz com que contaminações de doenças sexualmente transmissíveis ocorram. Amor e sexo necessitam de entrega mútua para poder ocorrer, porém, a confiança requerida para viabilizar essa premissa nem sempre comparece onde era esperada. Desilusões amorosas envolvem não somente a perda do sentimento que ligava o casal, em geral a fonte da dor encontra-se associada à ideia de estar dormindo com o desconhecido: a revelação do ex-parceiro como alguém diferente do que se imaginava que fosse.
É por essa mágoa de sentir-se enganado, que tão poucas separações transformam-se em relações amistosas entre os envolvidos. Destes desencantos, a pior traição provirá do encontro com atitudes indignas, de colocação em risco e de exposição do outro: a chamada revenge porn – pornografia de vingança. Esta consiste em usar as imagens íntimas, obtidas em confiança enquanto a relação durava, para extravasar o ódio pela separação.
É uma conversa dura de se ter, consigo mesmo e com os adolescentes: sabemos que amar e ter prazer depende da capacidade de abrir a própria intimidade, por outro lado, tampouco ignoramos os imensos riscos provenientes disso. Talvez pequenas regras, como cuidados que a priori nunca devam ceder e o estabelecimento de parâmetros bem claros do que permitir e em que condições muito específicas fazê-lo, ajudem a situar-se nesse território, tornado com a internet bem mais pantanoso. Outra questão é auxiliá-los a entender que se eles não se cuidarem ninguém o fará, pois já não são crianças. Uma das questões duras com os adolescentes é que alguns querem crescer sem pagar o preço de cuidar de si mesmos.
Para cuidar de alguém é preciso estar um passo à frente. Não confunda isso com o zelo dedicado aos amigos mais próximos, esses serão amados e cuidados como uma família. Referimo-nos a um cuidado mais amplo, com familiares menos próximos e desconhecidos coetâneos. Esse é um traço difícil de encontrar na adolescência, geralmente porque estão mal conseguindo darconta de si mesmos. O bullying prospera tão fácil nessa idade justamente por essa atitude pouco solidária.
É preciso preparar nossos adolescentes para um ambiente que rapidamente pode tornar-se hostil. Uma imagem vazada vai ser divulgada exatamente por essas pessoas que ele esperava que fossem cuidadosas com eles. A maioria dos vazamentos de conteúdo intimo foi voluntariamente gravado, o que deixa o protagonista no difícil papel de reclamar por um cuidado que ele mesmo não teve ao permitir a existência dessas imagens.
Existem coisas piores, mas geralmente vindas de adultos, que conseguem imagens de crianças e adolescentes, para depois chantageá-las com pedidos de favores sexuais. É preciso deixar muito claro para aqueles de quem cuidamos: toda exposição vai cair em mãos erradas, não existe nenhum nível de segurança possível para conteúdos que passem pela rede. Tampouco é possível cortar a fonte, ninguém controla a internet. Não há alguém que possa retirar um conteúdo pois ele não é arquivado em um lugar e sim em muitos. Pode hibernar no computador de um desafeto e voltar à vida quando este quiser.

Corpos ausentes

A grande novidade da comunicação digital é a massificação da possibilidade de relações à distância, onde a presença e o corpo não equivalem. Para as pessoas mais inseguras em relação à imagem corporal esse lugar é uma dádiva, pois coloca em segundo plano o olhar que as inibe. Nos encontros iniciados virtualmente, as palavras, o estilo, certas afinidades chegam primeiro e firmam uma segurança no sujeito para que o corpo possa entrar em cena só depois.
Em alguns casos, nada raros, o corpo não chega nunca ao encontro, pois por vezes não se consegue ir tão longe com o personagem que está se tentando parecer. Todos temos a sensação de ser uma fraude, ela é universal, pois somos conscientes de que deixamos à mostra apenas uma pequena parcela do que sentimos, achamos e desejamos. Não poderia ser diferente, pois seríamos quase selvagens se pudéssemos expressar tudo e realizar os mais recônditos desejos. Porém, por vezes, essa sensação de ser um blefe domina a vida, ao mesmo tempo em que se desenvolve a arte de bancar o que se gostaria de ser dentro da internet.
É possível criar perfis falsos, avatares, ou seja, o personagem que nos representa, e caminhar por esse vasto mundo virtual sem o peso do corpo. Aliás, outros pesos podem ser retirados: a identidade sexual pode ser qualquer uma, pode-se brincar de outras possibilidades sem medo. Mediante esse disfarce, é possível realizar fantasias que na realidade poderiam ser desestruturantes, enfim, a virtualidade traz possibilidades de experimentação de baixo risco.
É como um permanente carnaval, onde podemos nos fantasiar-se do que se quiser e brincar à vontade, revelando com isso aspectos extraoficiais da nossa identidade, sem tanto medo de ser julgado por isso. Em ambos os casos, o disfarce protege a fantasia e seu portador. Nesse sentido, a internet tem vantagens, mas também desvantagens frente ao verdadeiro carnaval: neste último é preciso coragem para carregar uma fantasia no corpo e usá-la para viver alguma aventura; já na rede basta um teclado, uma tela e poucos minutos para montar um avatar convincente que vai sair por aí, virtualmente, mas tendo seus encontros que, de certo modo, acontecem, embora sem a força de uma experiência real.
Um avatar protege seu portador, porém acontecem coisas à personalidade com a qual se está brincando, as quais nem sempre se está em condições de entender ou bancar. O portador está jogando, mas seus interlocutores talvez não estejam. O risco, nesses casos, provém do impacto que causa no sujeito deixar-se levar por experiências que não imaginava, e pode assustar-se com coisas que descobre de si. Na mesma linhagem de experiências encontra-se o sexo virtual, filho da sua versão telefônica. Nestas formas de seduzir-se e até satisfazer-se, mesmo sem acesso aos corpos um do outro, os casais praticam um sexo seguro, no sentido de proteger-se fisicamente e de dosar o envolvimento tanto quanto julgam suportar. Porém, não é de forma alguma um sexo solitário, pois na masturbação entra em jogo apenas a própria fantasia e o outro comporta-se exatamente como a imaginação lhe ordena. Nos encontros na rede, mesmo com a ausência física é preciso negociar as fantasias de modo que a experiência seja satisfatória para ambos.
É natural que os adolescentes sejam quem mais abusa dessas possibilidades. Afinal, como estão fora do campo de tantas experiências, confinados à escola e à sua turma, a internet e seus becos escuros podem ser cenários de uma aventura erótica. Todas as idades podem beneficiar-se com esses recursos e sofrer com esses contratempos, mas é óbvio que para os adolescentes e jovens adultos, nativos da rede, essa questão traz uma sensibilidade peculiar. Eles têm sido mais jeitosos para mover-se nesse novo modo de estar no mundo, mas também têm ido ao encontro de perigos para os quais seus cuidadores não estavam prevenidos.
Para os mais jovens quase não existe um encontro ou romance que não tenha iniciado ou se consolidado através de mensagens e ou redes sociais. Já existe alguma etiqueta amorosa a respeito do assunto, embora seja bom precisar que, neste início de século XXI ainda estamos tentando deixar de ser trogloditas em termos de comunicação digital. Muitas das regras de bom comportamento e cuidados requeridos ainda estão por ser aprendidos.

FICÇÃO CIENTÍFICA

O medo das máquinas

A inteligência artificial, assim como ocorreu com as máquinas quando a automação industrial iniciou, fascina pelas inovações e possibilidades que introduz em nossas vidas, mas isso também assusta. Muitas vezes vemos os dispositivos que a suportam de modo animista, como um resto do pensamento infantil, que projeta características humanas no que é inanimado. É muito difícil para nossa compreensão, sempre meio fantasiosa, as vezes onírica, acreditar que algo tão genial e complexo como um computador seja meramente uma máquina. Essa fantasia encontra sua melhor expressão no filme, de 1982, Blade runner; o caçador de androides. Nessa história, robôs humanoides não somente nos imitam, mas também nos superam, e, à moda do monstro criado pelo doutor Frankenstein, acabam voltando-se contra seus criadores, os humanos que os escravizam.
Tememos que o feitiço vire e nossas máquinas acabem mandando em nós, ao invés de continuar ao nosso serviço. Além de atribuir a elas nossos sentimentos, lhes damos o estatuto de dileta criação, pois ainda somos fascinados pelos recursos que trouxeram à vida humana. Tal valorização as faz parecer filhos, cuja função é crescer, ir adiante e sobreviver aos pais, que necessariamente ficarão para trás, pelo caminho.
Várias obras marcantes da ficção científica são baseadas nesse risco que julgamos correr: perder o poder, e acabar sendo dominados pelos “filhos”. Projetamos sobre os seres e objetos inanimados a mesma rebeldia que se espera dos descendentes. Nessa via estão, por exemplo, 2001: Uma odisseia no espaço, O vingador do futuro e Matrix.
Matrix, filme de 1999 dirigido pelos irmãos Wachowski, retrata uma visão futurista distópica na qual a inteligência artificial assumiu o poder e transformou os humanos em corpos inertes, dos quais se abastece de energia. Ali os humanos são submetidos a uma vida irreal, ilusória, gerada pela Matrix, à qual já nascem aprisionados. Imaginam ter uma vida, quando na verdade apenas são mantidos sonhando que a possuem enquanto a Matrix lhes suga a vitalidade. A aventura do filme passa por escapar dessa prisão, constatando que a vida real é muito menos confortável, segura e bonita do que a realidade virtual, porém valiosa por ser verdadeira.
Evidentemente os heróis encontram coragem para manter-se fora da ilusão e ainda combater a dominação da inteligência artificial. Porém, há um jovem que não suporta a realidade e dá jeito de ser capturado e reconectado. Caso isso nos ocorresse, teríamos sido fortes para suportar a realidade hostil ou sucumbiríamos à mesma covardia, que permite passar a vida imerso em prazeres ilusórios ambientados em um mundo ideal?
O nome do filme evoca uma zona de origem, a ligação materno infantil. A palavra “Matrix” remete à mãe, ao útero onde ficamos ligados fisicamente a ela, assim como depois do nascimento estaremos psiquicamente ligados a quem cumpra essa função. Foi com a ferramenta matemática das matrizes que tornou-se possível organizar a enorme quantidade de dados processada por um computador. No filme, as cenas dos humanos sendo vampirizados pela máquina evocam uma vida intrauterina: eles estão nus, imersos em uma cuba de líquido, com vários cabos ligados ao corpo, como uma série de cordões umbilicais. Só que desta vez é a “mãe” Matrix que suga o “filho” humano. Há mais uma ideia infantil associada ao temor da inteligência artificial: ela poderia realizar nossos sonhos, viabilizar nossas fantasias. Ela nos ofereceria recursos similares aos que um dia encontramos na figura materna, o “espaço potencial” para criar aquilo que se tornaria nosso “eu”.
Em função das potencialidades e utilidade introduzidas em nossa vida a partir da revolução digital, é natural que, de certo modo, nos apaixonemos pelo que nos oferece tanta comodidade e recursos. Daí procede a ideia de que ocuparão nossas mentes, mas também o farão com nossos corações, como retratado no filme Ela, dirigido por Spike Jonze. Nele, um escritor solitário apaixona-se pela voz de um programa que funciona como assistente virtual, uma espécie de secretária, companheira e interlocutora. A inteligência artificial terminará por desmaterializar a maior parte dos nossos objetos, não surpreende o medo de que anule a presença real de nossos corpos, como ocorreu em Matrix, é um pesadelo que tem sua lógica.
Ninguém que já tenha visto 2001: Uma odisseia no espaço, olhou para seu computador da mesma forma. Esse precioso instrumento, que tanto nos ajuda, por que um dia não se tornaria o HAL 9000 e tentaria nos matar e tomar o comando? Afinal, os filhos, que são nossa mais incrível criação, não acabam igualmente fazendo algo similar? Eles se desenvolvem, enquanto nós regredimos em nossa potência e, por fim, estão destinados a testemunhar nossa morte. Essa pode muito bem ser uma projeção de adultos com medo de envelhecer, mas sabe-se lá, essas máquinas, que parecem tão mais espertas que seus usuários, assim como nossos filhos parecem tão mais eficientes que nós. Talvez fosse bom ficar de olho. Brincadeiras à parte, convém lembrar que é pouco possível que a inteligência artificial, que depende da inteligência real de um programador para existir, torne-se autônoma. Já os filhos, esses sim, seguirão adiante sem seus pais, menos obedientes que as máquinas.

ADOLESCÊNCIA E REDES SOCIAIS

PARTE 2 do capitulo “Nativos digitais”, do livro “Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la” Aberto ao público para ajudar no debate sobre a imersão de nossos jovens confinados em seus meios digitais de existir

Achados e perdidos nas redes

“O que você faz tantas horas no Facebook?” Quando as redes sociais chegaram, os adultos faziam essa pergunta a seus adolescentes. Soava-lhes incompreensível: como se podia passar tanto tempo ali, fazendo o quê? Com quem? Com o tempo, muitos desses adultos acabaram entendendo por ter a mesma experiência.
Além da óbvias funções de comunicação, especialmente de divulgação da própria vida e de investigação da alheia, as redes sociais constituem, sem dúvida, a forma hoje mais à mão para o exercício da distração. Elas servem para ausentar-se de aulas, reuniões, eventos de família ou de qualquer outro ambiente em que se esteja, assim como para adiar tarefas de estudo ou trabalho.
Gerações de pais, anteriores à revolução digital, já resmungavam sua irritação frente à compulsão dos jovens para manter-se em contato e fugir dos deveres. Não foi a internet que inventou isso, apenas, o que não é pouco, tornou portátil o contato compulsivo com os pares a que tendem os adolescentes. Décadas antes, falavam a tarde inteira ao telefone com amigos ou namorados com quem passaram a manhã na escola. Não é novidade a necessidade sempre premente de encontrar-se e ficar todo o tempo possível apenas entre os pares. As redes sociais trouxeram um elemento a mais: o ambiente digital, no qual o adolescente parece estar só, mas está permanentemente acompanhado, embora, visto de fora, o contato pareça abstrato e irreal.
Os adolescentes conectados comunicam-se em tempo real: o vivido é narrado e partilhado imediatamente, independente de onde estejam. Falam entre si como se estivessem no mesmo recinto, enviam as imagens do local e mostram uns aos outros objetos e companhias, de tal modo que uma conversa pode envolver vários cenários e grupos. Nesse caleidoscópio de imagens e narrativas, observam-se uns aos outros como ocorreria em uma rua ou pátio de escola. Constitui-se, portanto, de fato uma outra forma de convívio.
Independente do que estiver ocorrendo, quer seja na aula, no trabalho, em família, durante um deslocamento, passando um tempo ao lado dos amigos ou até mesmo da pessoa que amam, talvez não consigam prestar toda a atenção na realidade. Para tanto teriam que desprender-se do aparelho que os mantém conectados com outras pessoas. Por vezes, ficam comunicando-se ininterruptamente com seus pares, por outras apenas passeiam dentro desse ambiente, que parece mais protegido e menos chato do que o do lado de fora.
As redes sociais tornaram-se ágeis ferramentas de comunicação, porém nem sempre quem entra nelas pretende estabelecer algum contato. É comum passar-se longos períodos em mero percurso errático entre perfis, investigando seus laços e características. Em geral essas buscas têm como mote indagações sobre amores que se quer conquistar, que se perdeu ou que se teme perder, seguidamente são motivadas por ciúmes. Também amizades possessivas ou rompidas motivam esse tipo de investigação, além de percursos aleatórios, movidos pela simples curiosidade de conhecer e compreender a intimidade alheia.
Isso pode ser similar a uma espécie de fantasia ficcional emprestada, quando o caminho é guiado pela história de uma pessoa ou um grupo, sendo levado por essas personagens como se fosse um filme, um livro ou os labirintos de um game. Mas também equivale a andar à deriva, zapeando. Zapear, é um jeito de ir a lugar nenhum podendo ir a todos ao mesmo tempo, talvez uma forma de expressar insatisfação através do uso do controle remoto. O gosto não está em ver alguma coisa, trata-se de exercer o direito de escolher, ou melhor, de não escolher nada do que é oferecido e continuar usufruindo do prazer das ofertas. É importante observar que para os usuários da televisão, chega uma hora em que os canais acabam e aquele que zapeia precisa recomeçar seu ciclo, já para quem faz isso na internet, seus caminhos são infinitos.
O tempo dispendido nas redes sociais recria esse hábito bastante difundido de ficar mudando de canal sem assistir nada, viajando entre pedaços de filmes, propagandas, frases, cenários, gestos e rostos desconexos. A princípio, a rede social pareceria uma oferta pouco variada, pois são apenas páginas contendo informações sobre pessoas produzidas por elas mesmas, que interesse poderiam ter? Quantas vezes vocês já escutaram uma frase como esta: “Fico olhando as páginas dos meus familiares, depois vou nas dos seus amigos, nos amigos dos amigos, quando vejo já é de manhã…”. O que parecia uma incomum prática adolescente, foi aliciando gente de todas idades. Essa forma sistemática de espiar a vida alheia é similar ao hábito das pequenas comunidades, conhecido como fofoca, no qual conta-se histórias de pessoas, com as tintas mais vibrantes possíveis visando o interesse do interlocutor. No caso das redes sociais, a edição da vida visando aumentar o atrativo e a visibilidade, é tarefa do próprio sujeito.
O Facebook, como seu nome retirado dos anuários de fotos dos alunos sugere, inaugurou-se tendo como alvo o contato entre estudantes e a busca de popularidade. Na verdade, em sua primeira versão, criada por Zuckerberg em 2003, não passava de um catálogo de estudantes de Harvard, principalmente do sexo feminino, a serem avaliadas e categorizadas pelos rapazes quanto a seus atrativos sexuais. Como uma febre, houve adesão maciça de extensas comunidades universitárias norte-americanas, que tomaram de assalto o programa inventado pelo jovem Mark, utilizando-o para comunicar-se, seduzir-se e informar-se uns sobre os outros. Essa rede, onde o prestígio dependia da aparência, foi ampliando-se até assumir sua identidade empresarial e a intenção de possibilitar contatos e gerar informações úteis aos cidadãos, negócios e estados. A expansão não precisou de muito esforço: voluntariamente ao redor do mundo as pessoas foram entrando no que inicialmente era um círculo de eleitos.
Até hoje essas ferramentas de comunicação digitais baseiam-se em galerias de faces, além de que fotografar-se e divulgar a imagem em algum tipo de rede social tornou-se uma obsessão adolescente. Mostrar-se sorrindo ou fazendo alguma careta típica do momento, dar notícias da atividade em que se está envolvido, com quem, o que se está se pensando e sentindo, é uma prestação de contas voluntária e cada vez mais compulsiva, aparentemente dirigida a um olhar global e onipresente. Talvez o objetivo seja bem mais restrito e antigo: a formação de uma comunidade de referencias mútuas.

Saudades da aldeia

Paradoxalmente, o motivo pelo qual os jovens possuem extensa rede social nas comunidades virtuais quiçá não seja exatamente uma novidade, mas sim uma espécie de retorno à forma antiga de funcionamento para a qual nosso cérebro sempre foi apto. Claro, não é da mesma forma, mas ainda trata-se do uso da capacidade social de situar e sentir-se à vontade em uma ampla rede de pessoas com diferentes pesos de significação. Isso se considerarmos do ponto de vista evolutivo, pois temos milênios de vida em grupos. Já do ponto de vista histórico mais recente, poderíamos ver algo semelhante: as redes sociais simulam a antiga aldeia, uma comunidade onde todos se conhecem e partilham informações.
A geração dos autores deste livro, assim como a de seus pais, cresceu habituada a conviver com o temor dos mais velhos relativo ao “que os outros vão dizer”. Tinha-se praticamente duas vidas: dentro de casa ocorriam conflitos e viviam-se dificuldades, enquanto frente aos parentes, vizinhos, colegas ou fiéis da mesma paróquia fingia-se ter uma família, um casamento, filhos e uma carreira perfeitos. O temor de ficar mal falado, assim como o empenho em fabricar uma imagem pública respeitável, motivava brigas familiares e críticas aos filhos adolescentes que se deixavam ver em comportamentos julgados condenáveis. Portanto, editar a própria imagem e a vida que se tem de modo que pareça melhor do que ela é não constitui nenhuma novidade.
O fato de vivermos em uma sociedade individualista, onde cada um se orgulha da sua imparidade e renega suas origens, não quer dizer que não tenhamos saudades das antigas formas de convívio. Quem sabe as redes sociais nos apontem o esgotamento, a pobreza, ou uma insuficiência das formas contemporâneas de estarmos – ou melhor, não estarmos – uns com os outros. Talvez elas constituam uma crítica espontânea e ingênua ao individualismo. Enquanto julgamos mal os usuários pela suposta superficialidade da conexão com seus amigos da rede, deixamos de ver a intenção de criar algo novo em termos de laço social, ou mesmo de retomar de algum modo a vida comunitária que está fazendo falta.
Do ponto de vista histórico, o número de pessoas que conhecemos durante a vida mudou muito. Vivemos em uma sociedade urbana que nos propicia contato com muita gente, mas com poucos deles temos laços significativos. Sabemos e temos informações sobre nossa família, que é cada vez menor, além de alguns poucos amigos eleitos. Frequentamos muitas pessoas, mas de poucas retemos informações significativas como o nome, filiação, aspectos do caráter e trechos de sua vida. Já não gastamos muita energia arquivando histórias de pessoas aleatórias, suas qualidades, seus defeitos. Em um passado não tão distante isso operava ao avesso: as sociedades tradicionais tinham a vida social em grande conta e as informações sobre os indivíduos que delas faziam parte eram cruciais, isso era o assunto principal e conhecimento insubstituível para se dar bem. Pouca gente, muitos detalhes, inverso à diversidade urbana, constituída de multidões de desconhecidos.
Do ponto de vista evolutivo, somos uma exceção recente no longo percurso do homem, caracterizado pelos fortes laços aos parentes, aos vizinhos e às amizades. A relevância atual das redes sociais certamente resgata a memória e os recursos cognitivos desse momento histórico anterior ao nosso. Nosso cérebro foi moldado, e assim funcionou durante a maior parte do tempo, em sociedades tradicionais, ou seja, conectado a uma complexa rede social, onde sabíamos tudo de todos. Ainda mais se considerarmos que havia um funcionamento distinto em relação aos mortos, pois eles não eram esquecidos, eram honrados e frequentemente lembrados em rituais. Portanto além do carrossel de nomes dos vivos, as gerações mortas também contavam no acervo da memória e tinham que ser mencionadas. Logo, evoluímos como espécie guardando um grande número de nomes, agregados ao lugar social de cada indivíduo.
Portanto, do ponto de vista evolutivo, tornamo-nos anômalos em relação ao que fez a aventura humana. Nossas capacidades sociais pareceriam atrofiadas se comparadas às sociedades de épocas anteriores. Somos introspectivos e solitários, aparentemente dependemos menos da aprovação alheia, já que os outros são genéricos. No entanto, a rede social pode fazer um semblante desse convívio quando alguém necessita desse olhar externo. Poderíamos supor que nossos jovens hiperconectados estejam buscando caminhos para a retomada dessa herança social: a vida em comunidade.
Se há uma questão a ponderar, visto que estamos lidando com fenômenos em transformação, seria sobre os efeitos dessa modalidade de oferta de contatos sociais. As redes dão oportunidade de estender alguma sociabilidade até níveis impensáveis, talvez maiores do que nossa verdadeira capacidade de estabelecer qualquer tipo, mesmo que muito remoto, de vínculo. Frente a isso, torna-se uma questão saber até que ponto estamos constatando a construção de algum tipo de tecido social e quando isso transforma-se em uma massa amorfa, um simulacro de sociabilidade. Questões para as quais ainda não temos respostas, afinal, frente a novidades das redes, somos criadores e cobaias ao mesmo tempo.

Tudo é falso

Uma das acusações mais corriqueiras é que nas redes todos são lindos, bem sucedidos, amados, felizes e estamos em um imenso feriado com sol. Ou seja, usaríamos uma fachada falsa para nos descrever. Isso é certamente verdade, mas quando não é assim? Na vida real faz-se propaganda de si mesmo o tempo todo, não mostramos nosso lado B, somente o A. Claro, existe uma exceção, os deprimidos: esses tampouco são autênticos, tentam constantemente provar aos outros que não valem nada, fazem o movimento contrário.
Somos seres sociais, precisamos uns dos outros, o prestigio é o nossos oxigênio, por que as redes sociais funcionariam de forma diferente? Diríamos apenas que essa construção da imagem ficou um pouco mais acentuada, mais explícita, os adultos de outrora fingiam não fingir. Como tudo fica registrado, visível, recortado e editado, as máscaras ficam mais à mostra para um olhar acurado. Somos mais caricaturais na rede, provavelmente pela não presença real do outro. Nosso “ego de domingo” expande-se mais fácil e ridiculamente por não encontrar limites. Talvez sejam dificuldades intrínsecas a um meio que ainda é rudimentar relativo ao que pode tornar-se, e recém começamos a usá-lo, somos todos novatos.
Por vezes vemos usar a palavra vício para descrever o uso abusivo das redes sociais. Pessoas que trocam a vida real pela virtual, concordamos, mas quem fez isso já tinha problemas na vida real. O vício no caso é em uma sociabilidade, tão mais compulsiva quanto falsa. São pessoas com dificuldade de contato, por medo ou falta de habilidades para relacionar-se, que usam a rede social para simular para si mesmas uma sociabilidade que era incipiente, nunca existiu ou perderam.
Ninguém que tenha uma boa rede real se limita à rede social digital. É justamente quando há essa falha na vida, que abre-se a porta para o excesso, tornando-se uma obsessão para aqueles que possuem uma existência desertificada. É interessante observar, que entre os que têm buscado sistematicamente no mundo digital uma compensação para a própria incapacidade de socialização, figuram um expressivo número de adultos e até alguns já idosos. Como os contatos na rede nesses casos são mais ralos, é preciso mais tempo e mais empenho para que ela consista e devolva ao sujeito a ideia que alguém o escuta, lhe leva a sério, se preocupa com ele. Esse raciocínio deve ser relativizado na adolescência, pois sua tarefa é encontrar sua turma: necessita-se como nunca de seus pares, é natural que vá passar mais tempo conectado do que os adultos. Para o bem e para o mal é mais fácil achar sua tribo através das redes sociais e, por exemplo, certos adolescente muito peculiares, tem uma chance a mais de encontrar outros com sua mesma sensibilidade.
O que sim pode ser falso nas redes sociais são as informações, mas isso para quem trocou o jornalismo pelos posts de pessoas afinadas a uma forma única de pensar. Vivemos em bolhas, acabamos convivendo mais com gente com as mesmas afinidades, mesma origem e classe social, que portanto pensa de uma forma similar. Esse fenômeno agrava-se com o auxílio dos algoritmos programados para isso. É a inteligência artificial que domina as redes, programada por empresas que têm interesse nesse tipo de comportamento. Nas redes sociais repetimos esse comportamento de grupo fechado. O fenômeno novo é a troca de informações que elas permitem, uma espécie de jornalismo sem jornalistas.
Antes, para nos informarmos sobre qualquer coisa dependíamos de jornais, rádios, TVs. Obviamente o controle político da mídia sempre existiu, mas temos alguma capacidade, nem que seja mínima, de questionar algo veiculado através de um meio impessoal como o jornal ou a televisão. Quando uma informação ou posicionamento provém de alguém com quem temos algum laço afetivo, o impacto disso é maior, quer estejamos de acordo ou não. Hoje os amigos facilmente funcionam como editores de textos e notícias uns para os outros, como estamos em uma bolha, o conteúdo fica restrito ao nosso pensamento, às informações que confirmem as crenças que já temos. Sem falar das notícias falsas, dos mitos pseudocientíficos, das teorias da conspiração.
Infelizmente, a sociedade de acesso livre à informação não parece melhor informada que as precedentes. O erro está em pensar o humano como um ser epistemofílico, ansioso por novas descobertas, conhecimento e não como um conservador que sente que novas informações desequilibram seu mundo. As pessoas abertas ao novo, que não se abalam com novidades que afrontam suas crenças, são uma minoria.

Navegando sem bússola

Se há um ponto de vista em que a internet pode ser um problema está em que não existe uma capacidade fácil e automaticamente auto-engendrada para categorizar, decodificar e apropriar-se de conhecimentos e ideias. A massa de informações e o percurso labiríntico por elas não soma, não decanta. Para compreender algo novo, é preciso inserir esse conteúdo em uma lógica pessoal, confrontar premissas e dados. Nascemos com inteligência para desenvolver essas capacidades, mas ela é intermediada pela relação com aqueles que nos inspiram e inquietam. Essa condição de pensamento beneficia-se muito de uma boa capacidade narrativa, a qual por sua vez depende de diálogos, conversas, debates, transmissão envolvente de conhecimentos históricos, compartilhamento de experiências artísticas. Aprender requer uma tutela instigante da curiosidade científica e, acima de tudo, uma escuta mútua e respeitosa entre grandes e pequenos, adolescentes e adultos.
Os pais temem a pornografia, mas há lixos bem piores ao alcance de poucos cliques. Teorias racistas, sexistas, antissemitismo, extremismos religiosos e políticos, apologia do terrorismo, discursos pregando ódio a uns e outros, em linguagem simples e ao alcance do entendimento de qualquer um. Os discursos mais insensatos são sempre banais, economizam a complexidade do mundo e oferecem-se barato para os mais imaturos, inexperiente e ignorantes.
Como dizia Umberto Eco, a internet deu voz a todos e também ao “idiota da aldeia”. Antigamente o público desses simplórios vociferantes restringia-se aos infelizes ouvidos do seus mais próximos, agora podem esbravejar a fúria de sua impotência nesse imenso megafone. O mundo é extraordinariamente complexo, isso é assustador para os jovens que percebem o trabalho que dá entender tudo isso, missão quase impossível. Aplainar o entendimento, através de ideias maniqueístas é muito sedutor, pois trata-se de encaixar tudo em um modo infantil de pensar. O detalhe é que mesmo as crianças facilmente abrem mão de um imaginário tão pouco complexo e, caso sejam estimuladas ao debate, podem chegar a ideias bem mais interessantes do que algumas bastante populares na rede.
Portanto, é melhor não deixar seus filhos e alunos sem certa supervisão, também no que diz respeito ao conhecimento. Como a evolução tecnológica é incessante e muito veloz, acaba ocorrendo uma sistemática inversão de certo tipo de sabedoria, que talvez possamos denominar melhor de habilidade técnica: os mais jovens tendem a ter melhor domínio dos dispositivos digitais do que seus mais velhos, passam as gerações e essa inversão tem persistido. Como as famílias desejam muito ver em seus descendentes sinais de genialidade precoce, a supervalorização dessa pericia técnica acaba sendo mais uma oportunidade.
Confundido essa habilidade com conhecimento, cultiva-se a fantasia de que as crianças e adolescentes atuais sabem, ou podem saber tudo, por ter tantos recursos de acessar todo tipo de fonte. Porém, qualquer um que já tenha feito uma busca na internet sabe que trata-se de uma arte, quanto mais se sabe sobre algo, quanto mais premissas de conhecimento e capacidade de abstração se tiver, melhores e menos banais ou suspeitas informações se encontrará. A internet não substitui os professores, no sentido de quem os oriente nesse mar de informação que aparenta possuir o mesmo valor. Uma das características da estrutura psicótica é o não ordenamento hierárquico dos saberes. Como se todas as teorias valessem a mesma coisa e estivessem em um mesmo plano. A navegação por essa vasta oferta de conhecimento sem uma bússola, representada por um interlocutor atencioso e melhor qualificado, leva-nos a riscos similares a essa patologia. Não surpreende nesse caso, que se difundam ideias descosturadas, delirantes, ou francamente paranoicas.
O escritor argentino Jorge Luis Borges nos falou do fascínio e terror que a oferta de um saber sem bordas pode causar. Seu conto O Livro de Areia apresenta um objeto que é como a internet avat la lettre. Trata-se de um livro mágico, que como a areia não tem começo nem fim: seu número de páginas é infinito, nenhuma é a primeira nem a última, nunca se consegue abrir na mesma página, pois estaremos fadados a jamais reencontrá-la. Aberto ao acaso, levava o leitor para um labirinto sem fim, do qual o personagem do conto tornou-se prisioneiro, a ponto de deixar de sair de casa e de dormir, por sentir-se incapaz de abandonar suas páginas. Horrorizado, considerou-o monstruoso e o deixou perdido entre as estantes da Biblioteca Nacional. Não podemos livrar-nos da internet, portanto, é melhor utilizar bússolas para enfrentar essa deriva.

Espelho, espelho meu

Se tivéssemos segurança a respeito do que parecemos, não seria necessária a presença de espelhos. A fotografia, sob a forma do auto retrato, vulgarizado como selfie, elevou os espelhos à máxima potência. Quando uma avó pediu à neta que fizesse uma selfie dela, querendo que esta a fotografasse com seu celular, causou uma gargalhada na jovem. Isso mostra o caráter geracional dessa mania. A senhora não compreendia a ideia de fotografar a si mesmo, pois para ela o retrato ainda simbolizava o olhar de outro sobre si.
Ao verificar constantemente nossa imagem nos espelhos o objetivo é indagar como somos vistos. Mas não se trata apenas de investigar, tentamos controlar essa visão ao editá-la através da máscara facial que se arma automaticamente quando nos olhamos, assim como através dos recursos digitais disponíveis. Maquiagem, caretas, detalhes, assim como a busca do “melhor ângulo de si” para colocar-se estrategicamente frente ao olhar alheio, são expedientes usados por quase todos.
Apenas as crianças não perdem tempo frente aos espelhos, pois sua imagem não lhes causa inquietudes. Para elas, pelo menos entre aquelas que sentem-se asseguradas no amor dos seus adultos, o olhar destes é suficiente para que não temam desaparecer caso não haja ninguém certificando sua existência. Ao crescer, perdemos a morada no olhar da nossa mãe, dos familiares que pareciam contemplar somente a nós. O problema é que em vez de independizar-nos, tornamo-nos carentes dessa acolhida.
O auto retrato será tanto mais ativo e insistente quanto maior for a insegurança a respeito da existência e permanência da nossa imagem. A credibilidade da auto imagem, por sua vez, depende da suposição de olhares interessados e que nos sejam amorosamente destinados. Não queremos dizer que os antigos seriam mais seguros de si do que os contemporâneos, talvez não tivessem o recurso de registrar-se ao alcance da mão. Para eles cabia unicamente ao espelho acolher a insegurança que passamos a ter depois da infância, a respeito da integridade da nossa imagem. Hoje tentamos domínio absoluto do registro dela, a espontaneidade é a grande vítima disso, pois mais do que viver, é preciso retratar e, principalmente, retratar-se na cena.
A obsessão com o próprio rosto, ou corpo quando ele é motivo de orgulho, só cede espaço ao retrato dos filhos, que atualmente substitui o olhar familiar. Para os pais contemporâneos não basta ver, querem registrar e mandar imediatamente para os supostos interessados. Cada gracinha da criança ou lugar ao qual um jovem ou adulto chegam, é imediatamente socializado com uma assembleia de participantes.
Uma criança pequena ocupada em brincar em uma pracinha, por exemplo, precisará interromper o tempo todo suas atividades para posar para essas fotos, o escorregador já inclui uma paradinha no topo para o registro familiar. Os eventos de todas as idades já incluem cenários, maquiagens e adereços, assim como profissionais para auxiliar os convidados a preparar essas imagens. Os convidados já não se arrumam para aproveitar a festa, mas sim para fazer retratos, que podem acabar substituindo a festa propriamente dita.
Retratar-se tornou-se uma forma insistente de congelar a vida, produzindo imagens que a interrompem e impedem de entregar-se à sua fruição. O olhar, tanto o próprio quanto alheio, deixa de ser espontâneo, não há com o que surpreender-se, as descobertas são limitadas quando a entrega à vivência encontra-se entrecortada por paradas para registro. A fotografia é uma forma artística de olhar, mas pode tornar-se a suspensão de qualquer olhar genuíno original, pois a arte pressupõe entrega e surpresa.
Consultar o espelho por horas ou retratar-se compulsivamente é próprio de momentos em que estamos mais inseguros ou precisando compreender, constituir ou reafirmar nossa imagem. Por isso a selfie é fenômeno epidêmico na adolescência, quando se está fabricando uma imagem de si, para apropriar-se dela e usá-la por aí. Tenta-se que ela seja tão autêntica como a assinatura pessoal que valida um documento. Aliás, mediante a difusão da cultura digital, cada vez mais será a própria face a assinatura requerida para validar nosso acesso ou a autenticidade de qualquer ato. O rosto, agora uma espécie de documento de identidade, precisa ter uma espécie de constância, representação impecável e imutável do seu proprietário.
Como então envelhecer, considerando que a passagem do tempo deixa marcas, modificando esse documento visual? Por isso, o recurso de congelar a própria face através de substâncias que paralisam a musculatura está cada vez mais difundido, de tal modo que uma imagem editada da nossa versão juvenil se eternize. O problema é que a dita imagem juvenil, que todos os adultos tentam tornar sua para sempre, não é a que se tem na adolescência: nessa época aparecem os traços mais marcantes como os volumes do nariz, do cabelo, enfim, diferente dos traços infantis que são mais suaves.
Embora a imagem adolescente ainda seja delicada em relação à caricatura de nós mesmos em que vamos nos tornando e que chega ao ápice na velhice, há outras marcas, próprias da ebulição hormonal, que maculam a almejada perfeição. Ao olhar-se no espelho, antes de editar-se com maquiagem ou manipulação digital da imagem, o adolescente só terá olhos para as espinhas, a barba rala e irregular, a oleosidade da pele, a imperfeição do nariz e o desalinho dos cabelos. As selfies corrigem com sua persistência essas imperdoáveis falhas. É uma pena que para produzi-las seja requerido tanto empenho que muitas vezes torne-se difícil estar realmente em um lugar ou situação. Viver, tende nesses casos a ser substituído por registrar para olhar depois. É um tempo estranho esse, em que o presente é invadido por um hipotético futuro ideal.

CAPÍTULO “NATIVOS DIGITAIS” DO LIVRO “ADOLESCÊNCIA EM CARTAZ”- PARTE I (GAMES)

Os jovens precisam escapar de nós, do olhar opressivo dos seus adultos, mas eles precisam escapar para algum lugar. Que lugar é esse, o virtual, seus jogos, para onde eles vão?

Parte I

Trechos do Capítulo XIX, “Nativos digitais” -do livro “Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la”
Nesta primeira parte, além de uma pequena introdução, fazemos uma abordagem do tema dos Games.
Eles nos colocam a questão da virtualidade X realidade, da diferença entre brincar e jogar e da dispersividade própria desses “homens-polvo” que estamos nos tornando ao fazer tantas coisas ao mesmo tempo.

INTRODUÇÃO

As famílias inquietam-se ao ver suas crianças e jovens fechados em seus quartos, entregues às redes sociais ou aos videogames, virando a noite para terminar um jogo, privilegiando um time que joga em rede em detrimento a uma festinha da turma de escola. Temem que eles sejam abduzidos por uma realidade ilusória e levados para territórios alheios aos reais e familiares.
O temor procede, mas não em todos os casos. A internet, principalmente os games e de algum modo as redes sociais, são de fato uma realidade alternativa onde refugiar-se. Esse habitat digital é tão tentador que alguns jogadores falam sobre os expedientes a que recorrem para conseguirem abster-se, ou manter-se a salvo, do risco de entrar sem conseguir sair. Mas não procede a ideia de que se frequenta um jogo com o grau de entrega e alienação de um zumbi, ou com a voracidade de um viciado buscando satisfação imediata. Jogar é um processo criativo e de construção ativa dos caminhos, estilos e personagens que se quer encarnar. É claro que há os que se comportam como viciados, mas estes já eram compulsivos antes, não ficaram dessa forma por causa da maneira como se relacionam com seus dispositivos digitais.
Esses dispositivos não sequestram os adolescentes, é a superproteção familiar, aliada aos projetos de realizar-se através das conquistas dos descendentes, que ameaçam usurpar-lhes a vida real que poderiam ter. Quando esses prisioneiros de luxo precisam fugir de suas famílias e de outras exigências da vida, uma saída de emergência pode ser a travessia do portal mágico da tela que sempre está ao alcance de suas mãos.
Somos “estrangeiros digitais” tentando assimilar-nos, enquanto usuários dos dispositivos eletrônicos e também na condição de adultos responsáveis por jovens “nativos digitais”. Partimos então dessa contraditória premissa, que foge do espírito do livro, ao falar de um tempo que não vivemos por inteiro, ao incluir uma realidade inventada após o fim de nossa própria adolescência. Porém, contamos com a vantagem de um olhar estrangeiro. Dessa forma, tentaremos neste ensaio dar conta das questões mais corriqueiras que o mundo dos computadores e a tecnologia digital nos colocam.
O papel dos videogames, dos quais nos ocuparemos a seguir, talvez seja o mais enigmático para quem nunca os usou e não experimentou suas possibilidades. Vamos trabalhar a importância das redes sociais para os adolescentes, já que elas passaram a fazer parte intrínseca da tarefa de socializar-se, de fundar um semblante social. Por fim, é inevitável abordar o tema da pornografia. Não ela em si, pois não há novidade alguma, mas no sentido de que ela nunca esteve tão disponível, expondo toda sua bizarrice, ao alcance de poucos clicks, para gente com muito pouca idade.

GAMES

Adultos estrangeiros

Entre as questões que as novidades tecnológicas trazem, certamente o videogame é o fenômeno mais intrigante para os que estão de fora. A razão é simples: ele não existia, nada do que as gerações que o precederam tinham se parece, a princípio, com ele.
Na verdade não são assim tão inéditos, pois reproduzem quase todas as regras da prática imaginativa de brincar, tanto em termos de experiências lúdicas solitárias, quanto grupais. Eles também incorporam o funcionamento justo e previsível das competições, dos jogos regrados, assim como o melhor do espírito de grupo de um time. A invenção que eles trazem é a da fusão de todas essas potencialidades lúdicas – próprias de brincar e jogar – com a fruição da entrega à magia da ficção. Como não deixar-se capturar pelo encanto deles?
É uma grande novidade pensarmos em que todos esses recursos da fantasia não fiquem para trás com o fim da infância. A experiência lúdica, que o senso comum supõe obsoleta após o amadurecimento, é, na verdade, valiosa pelo resto da vida. Porém, para os atuais adultos é incompreensível e desagradável a visão de adolescentes brincando apaixonadamente em vez de fazer suas tarefas práticas, aparentemente isolados, mas continuamente conectados entre si em um ambiente invisível.
Cada geração que chega padece com os preconceitos das que a precederam, que tendem a condenar aquilo que não viveram. É difícil perceber que algumas coisas no mundo já seguiram adiante sem nós. Se mantivermos viva a curiosidade, a qual aliás é sempre lúdica, podemos até entusiasmar-nos com elas, mas sempre seremos algo estranhos a elas, por não terem feito parte da nossa própria formação
Esse olhar desconfiado dos adultos testemunhou o surgimento das histórias em quadrinhos, que foram acusadas de tentar matar a literatura, tornando o leitor preguiçoso, apoiado nas imagens. Depois chegou a TV com os programas infantis e os vaticínios foram ainda piores: estaria se gestando uma geração de alienados, incapazes de brincar, pensar, esqueceriam dos signos e seriam analfabetos funcionais.
Agora chegou a vez dos games. Poupamos o leitor de todos os prognósticos alarmistas, pois ele já deve ter ouvido o quanto eles são, no mínimo, uma grande perda de tempo, no máximo, um instrumento de infantilização perpétua. O interessante é que se um jovem se interessar por um esporte, mesmo que seja violento, com o mesmo afinco e obsessão que os jogadores virtuais, seus adultos não ficarão preocupados e possivelmente vão orgulhar-se disso. O atleta nunca é acusado de monomania, de obsessão, sua experiência não é vista como empobrecedora nem alienante.
Quem joga começou na infância, os games raramente seduzem adultos. Já existem adultos que jogam, mas geralmente são os que cresceram nesse ambiente. Os games fazem um corte geracional entre quem joga e quem não joga. Até porque raramente se para de jogar. Ao crescer já não se tem tanto tempo e energia para isso, mas, principalmente depois de ter filhos, isso será um grande assunto em comum.

Brincar, jogar e ler

Os games começaram de forma muito simples e cresceram junto com os computadores pessoais, sempre empurrando sua evolução. No começo não passavam de uma espécie de ping pong em duas dimensões, homem versus máquina. Mesmo aqui já traziam alguma novidade, juntando os desafios de um jogo de tabuleiro com alguma destreza física e perceptiva: era preciso ser rápido, responder com os dedos, como um esporte da motricidade fina. A seguir eles foram ganhando complexidade, cenários, a terceira dimensão. Na sequência foram chegando personagens, enredos. A introdução do joystick passou a exigir maior agilidade motora. Aliás, hoje é a única habilidade manual, fora tocar um instrumento, que tem algum prestígio entre os mais jovens.
O aumento da memória dos dispositivos possibilitou a expansão do ambiente e os jogos passaram a criar universos, verdadeiros mundos alternativos. Um último passo foi dado quando puderam ser jogados em rede via internet, joga-se com e contra outros participantes reais. Com isso formaram-se times e comunidades, no sentido da comunicação e do sentimento de pertença. Além disso, cada jogo é construído e se enriquece com as experiências dos usuários, que sugerem personagens, tramas, cenários, estratégias, as quais são apreciadas pelos desenvolvedores e incorporadas. É uma caixa de diálogo permanente, composta de gente do mundo todo que, além de reunir-se para jogar, ficam debatendo em fóruns sobre o aprimoramento da habilidade dos jogadores e sobre o jogo propriamente dito. Contradizendo a suposição de que os jogos virtuais induzem à passividade e ao isolamento, os fóruns são redes colaborativas de jogadores, onde se avaliam os resultados, discutem estratégias, investem formação uns dos outros e instigam os desenvolvedores a aumentar a complexidade dos games.
Um gamer precisa ser perseverante, pois terá que avançar falhando, tentando novamente, até conseguir dar um passo ao encontro do mesmo processo no próximo trecho do seu percurso. Além dessa paciência e capacidade de suportar a frustração, será necessária muita engenhosidade para desvendar a lógica do jogo. Para isso terá que estar realmente imerso, familiarizado nessas paisagens virtuais, habituado aos seus monstros e inimigos, afinado com um grupo em que cada um tenha desenvolvido bons papéis complementares. Aliás, a escolha das personagens, que em geral podem ser customizadas e eleitas em um variado cardápio de heróis, funciona como uma tradicional brincadeira infantil grupal: cada participante escolhe “ser” um personagem e isso tem que ser negociado, pois não teria nenhuma graça se muitos fossem o mesmo.
O que os videogames se tornaram com toda essa evolução? São jogos, com o espirito de grupo dos esportes coletivos, acrescidos da necessária visão de estratégia dos jogos de tabuleiro. Porém, mesmo um dos mais complexos jogos, como o xadrez, não chega perto da rapidez de raciocínio e engenho que alguns games pedem. Somam-se a essas características aspectos da criação literária e do cinema, já que cada ambiente virtual constitui uma história que embasa os movimentos e vai sendo completada em função dos caminhos escolhidos pelos jogadores e através da interação destes com os criadores.
Na literatura podemos encontrar a figura do personagem que é cocriador da própria trama em que está imerso. Esse é o enredo de História sem fim, livro do escritor alemão Michael Ende, lançado em 1979, que já se tornou um clássico. Nessa história o herói não funciona como um escritor, mas como alguém que brinca, ou seja, ele vai criando uma trama que protagoniza. Por outro lado, ele já vive algumas situações próprias dos games contemporâneos, onde a trama e aquele a vivencia ludicamente dialogam. O mundo mágico que ele mesmo criou não é nada obediente, está cheio de ciladas, perigos e desafios, ele precisa seguir as regras, desvendar mistérios, errar muitas vezes, fracassar, quase desaparecer, até aprender a trilhar o caminho necessário para sair.
Em O Senhor dos Anéis, saga publicada em 1954, o britânico Tolkien criou um dos mais populares mundos mágicos: a Terra Média. Nessa obra, temos um território muito bem mapeado (há inclusive mapas de fato), vários tipos de personagens, representantes de diferentes povos, com personalidades, aparências e habilidades diversas, que exercem funções complementares e unem-se para vencer inimigos monstruosos e travar batalhas épicas em nome de uma missão em comum. Esse nicho imaginário acabou dando origem aos jogos interativos de RPG, Role-playing Games (jogos de interpretação de papéis), em que adolescentes e jovens adultos envolvem-se desde os anos setenta.
O RPG é uma mistura de encenação, como nos improvisos teatrais e nas brincadeiras infantis, com as regras de um jogo de tabuleiro e o funcionamento colaborativo de um time esportivo. Há vários tipos de personagens, um cenário específico e desafios. A história vai sendo criada em um grupo liderado pelo mestre, que é seu membro mais imaginativo e iniciado nas regras do jogo. Ao longo do percurso, os jogadores vão encenando missões e batalhas, que foram inicialmente ambientadas em cenários evocativos da criação de Tolkien.
Você está pensando que muitos aspectos da descrição acima poderiam ser de um videogame, certo? Só que aqui não temos nenhuma tecnologia envolvida, apenas um tabuleiro, um mapa, ou nem isso, alguns poucos objetos, se muito, e principalmente um grupo que em geral é constituído por jovens que, embora já não sejam crianças, estão definitivamente dispostos a brincar.
Eles estão realmente brincando? Em certos termos sim, pois imaginam e vivenciam juntos uma história que vai sendo criada por eles. Porém, na verdade estão também jogando: o jogo introduz na brincadeira a competição, com as regras e parâmetros que garantam que ela seja justa. Os RPGs não constituem um espaço de brincar livremente determinado apenas pela imaginação, eles envolvem regras e cálculos. Essa é a grande novidade: gente que vai crescendo sem deixar para trás os recursos lúdicos. Após termos arrolado todas essas referências, o leitor pode notar o quanto os videogames fusionaram aspectos da literatura, da brincadeira e dos jogos.
Criar, inventar e brincar são parentes entre si, pois todos visam transcender a realidade, que é compreendida, mas para ser recriada, subvertida. Acreditamos que cientistas, artistas e todos aqueles que contribuíram para o avanço do conhecimento estão em dívida com a atividade de brincar, pois nessa prática as ações incorporam, ousam, outras possibilidades imaginárias, que são experimentadas de verdade. Os games nasceram dessa múltipla fronteira entre ciência, técnica e a atividade fantasiosa necessária para brincar e jogar.
Nos jogos, as regras são claras e sempre valem. Como eles, os games não trapaceiam, os parâmetros são claros e democráticos: todos os jogadores começam igual e equivalem-se perante o programa. É o paraíso da meritocracia e de um mundo justo. Não resta dúvida de que é muito tentador e repousante passar um tempo em um lugar assim, tão diferente da nossa realidade.
Os adultos não conseguem ver a seriedade em brincar nem sua utilidade, esquecem que é lúdico todo o processo de aprendizagem que nos levou a crescer, assim como tudo o que nos faz continuar crescendo enquanto civilização tem estreita ligação com a ousadia lúdica. D. W. Winnicott ensinou-nos que nascemos subjetivamente a partir de um espaço que ele chama de “potencial”, uma área intermediária, ilusória, uma zona de brincar que se estabelece entre um bebê e quem exerça a função de mãe. Essa mãe, seria, para o psicanalista inglês, aquela que coloca as coisas à disposição do seu pequeno no exato lugar e tempo em que ele está a ponto de criá-las. É assim quando se brinca: imaginamos e fazemos acontecer o inexistente a partir dos elementos que se puder arrolar em volta. Winnicott acredita que com cada bebê nasce um mundo, ludicamente criado por ele. As realidades criadas pelos dispositivos digitais são sucessoras desses primeiros mundos imaginários.

Digital e ou e real

Os adolescentes têm muita energia e muito pouco deles é pedido. Queremos, apenas que se comportem e que compareçam à escola. Na maior parte dos sermões dos adultos, acaba mencionando-se que eles “só” precisam estudar. Deixamos explícito o quanto consideramos pífia a exigência que lhes cabe. Enfim, para a imensa maioria dos que têm direito a viver uma adolescência, ela transcorre em um mundo chato, entre outros iguais a ele e tão desmotivados quanto, tendo a mesquinharia das disputas de prestigio entre os colegas como único desafio. As diversões só trazem mais do mesmo: quem ficou com quem, fofocas sobre a intimidades dos outros, conversas marcadas pelo exibicionismo, o encontro das mesmas pessoas em lugares repetidos e, com sorte, alguma música. Não é um ambiente convidativo, é um mundo minúsculo onde nada lhe parece relevante.
Mas imagine que uma porção de coetâneos precisa dele para uma batalha que será travada em um lugar mágico e perigoso. Estão tentando faz tempo decifrar novos caminhos para derrotar o inimigo e essa noite vão desfechar um ataque surpresa. Eles são um time e necessitam da sua ajuda, sabem que você já desenvolveu habilidades que somam para o sucesso do grupo. Você investiu seus esforços nisso, venceu dificuldades e têm um prestígio entre os jogadores, ali sua presença é questão de vida ou morte. O grupo trabalha junto, a vitória demanda muito esforço e sintonia, os jogos tem mistérios interessantes. Seus pares são guerreiros sérios e cientes da sua missão. Fora do jogo existe uma comunidade que avalia as partidas em geral de modo construtivo, quem for dedicado sente que pode fazer diferença nesses debates, os quais podem chegar a ocupar tanto tempo quanto o próprio jogo. Frente a isso, ainda é tão difícil entender por que seus adolescentes dedicam-se com tanto afinco aos games?
A violência na maioria das grandes cidades encolheu os espaços da vida pública, restringindo a liberdade de circular de que dispunham as gerações precedentes. Explorar a cidade, brincar em terrenos baldios, em casas abandonadas, circular a esmo procurando aventuras é quase impossível na vida real. Já na realidade virtual tudo isso e muito mais acontece.
Crianças e adolescentes geralmente vivem confinados em apartamentos. Frequentam aulas de esporte ou dança o que é diferente de jogar com os amigos, lutar de brincadeira ou dançar por prazer. Na escola, a pedagogia costuma ser pouco interativa, o conhecimento raramente dialoga com suas dúvidas e hipóteses, não se leva em conta que eles pensam, aliás ninguém espera que eles realmente façam isso. O recreio é breve demais para toda a demanda represada de liberdade.
Frente a esse cenário, novamente é nos jogos que se dá a possibilidade lúdica de explorar um terreno desconhecido, traçar estratégias, acumular experiência e aprender com ela, aventurar-se, correr riscos e desenvolver a capacidade de orientar-se. Claro, não é a mesma coisa sem a presença real do corpo, os sustos não são para valer. Por outro lado não é desprezível o ganho cognitivo em desenvolver a capacidade de cuidar-se, observar detalhes para fazer uma mapa mental e retomar o caminho certo. Admitimos que é um simulacro da verdadeira experiência exploratória, mas ao menos eles têm essa. Na realidade, boa parte dos privilegiados aos quais são dados o tempo e as condições para viver uma adolescência, só conseguem andar sozinhos em espaços desinteressantes como um shopping ou outros similares a ele.
O senso comum pensa que toda essa experiência lúdica não altera os participantes por não ser real. Em primeiro lugar, convém lembrar que quem joga em rede, principalmente quando estamos falando de jogos que prescindem de um time, tende a fazê-lo com amigos ou colegas. São principalmente pessoas com quem se tenha a intimidade necessária para desempenhar juntos tarefas desafiantes, que requerem agilidade de decisões e confiança uns nos outros. Portanto, estamos falando de uma genuína experiência lúdica entre parceiros reais, que podem estar ausentes no recinto, já que ela ocorre em um ambiente e com objetos intangíveis.
Lembramos que brincando aprende-se a ser e a irrealidade imaginada cria ou altera a realidade. Todas as invenções, tudo o que dependeu de um ato criativo, começou exatamente assim: quando alguém fantasiou algo que ainda não existia, ou teve uma ideia inédita. Portanto, a realidade virtual serve como experiência subjetiva, fonte de vivências transformadoras. Ninguém vence nem cria sozinho e os jovens que jogam parecem compreender isso melhor que muitos adultos.
O problema não provém do fato do que os jogos oferecem, mas sim do vazio de experiências reais que a adolescência vem se tornando. É preciso que tenham a oportunidade de intervir de algum modo na realidade, quer seja realizando algum trabalho, responsabilidades, trajetos verdadeiros, trocas de ideias desafiantes, experiências culturais em que se engajem expressando-se, atividades grupais onde as decisões e papéis de cada um façam diferença. Sem isso não se conseguirá tirar os jovens de dentro de seus quartos, da sua realidade alternativa onde parecem, paradoxalmente, verdadeiramente existir.
Em seu livro O que você é o que você quer ser, o psicanalista inglês Adam Phillips analisa o paradoxal peso sobre nossas vidas de tudo aquilo que nunca fizemos. Ou seja, dos caminhos da nossa vida que não trilhamos, mas poderíamos tê-lo feito. Não se trata de que sejamos pouco, mas sim de que compartilhamos o trajeto da nossa existência com a presença imaginária de todos aqueles rumos que nunca tomamos, e não nos perdoamos por isso. Não é difícil deduzir o quanto essa insatisfação recai também sobre os filhos, aos quais cabe, “no mínimo”, encarnar alguma, ou várias das personalidades ou experiências que a vida ficou nos devendo. No ambiente digital, eles farão isso de fato, porém em uma dimensão tão imaginária quanto a de nossas vidas alternativas. Eles pelo menos sabem que estão brincando.
Adam Phillips lembra-nos de uma ideia de Isaiah Berlin, o qual diz que existe uma diferença entre a “liberdade de algo”, que é livrar-se do que oprime, e a “liberdade para algo”, que significa engajar-se no que se tiver vontade e potência para tentar. Nossos jovens estão tentando livrar-se de nós, dos nossos ideais opressivos, e querem ser livres para tentar, sabendo, como nos games, que a vida requer experiência e para tanto precisam suportar repetidos fracassos. Como fazer isso se cada vez que eles erram, ou simplesmente não dão certo de primeira, seus adultos colapsam porque não conseguiram nem esse “mínimo” que lhes deviam?
Phillips faz um trocadilho com a ideia acima, utilizando a palavra escapar. Isso é mais interessante ainda pois acusa-se o mundo digital de ser apenas uma forma de escapismo, ou seja, ficar habitando a imaginação para não enfrentar as dificuldades reais. Ele estabelece a diferença entre “escapar de algo” e “escapar para algo”. Na primeira, os jovens precisam escapar das expectativas e controles que os oprimem, enquanto na segunda equivale a partir para construir, encontrar, criar soluções, invenções, caminhos. Talvez seja essa sutileza que os adultos precisam entender. Sim, eles escapam, mas é para algo que lhes entrega um lugar ativo, desafiador.
Ao escapar de seus adultos, os adolescentes precisam partir em direção a experiências verdadeiras, por trajetos reais, ou seja, escapar para algum lugar. Se não tivermos tanto medo e não os afogarmos em nossos sonhos superlativos, eles poderão com certeza deixar-nos caminhar alguns trechos ao seu lado. Aliás, eles voltarão de tanto em tanto para contar e discutir conosco suas aventuras e até aceitar alguns conselhos. Enquanto isso não é possível, eles farão isso apenas jogando, o que não é inútil, apenas insuficiente.

Homens-polvo

Uma das questões que envolvem o mundo digital é a ideia de que somos cada vez mais capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo: a multitarefa. Essa não é uma criação própria da era digital, mas sim fruto da nossa época voltada para a rapidez, eficiência e a idealização da obtenção de resultados com o mínimo de esforço possível.
A automação industrial emprestou inusitada potência ao sistema produtivo, assim como a descoberta desses recursos mecânicos e eletrônicos levou essas maravilhas para a vida privada, proporcionando comodidades para o cotidiano doméstico. As máquinas poupam trabalho, a velocidade dos veículos encurtou distâncias, a possibilidade de comunicação instantânea encolheu o planeta.
O mundo foi tornando-se um lugar onde esperava-se que nossas tarefas e deslocamentos convergissem para soluções cada vez menos trabalhosas e, de preferência, instantâneas. O fazer prático para produzir um objeto, um alimento, um serviço, perdeu espaço, de tal modo que o envolvimento com o processo requerido para o desempenho de qualquer tarefa não possui mais valor. A partir daí, não deveria surpreender-nos que considerássemos bem-vinda a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas demandasse demasiada concentração. A aquisição desse dom representaria um acréscimo na capacidade produtiva com o menor grau de esforço e de cansaço.
A multitarefa tirou seu nome da capacidade de um computador para rodar diferentes programas concomitantemente ou distribuindo seus esforços de modo a atender a várias solicitudes de forma alternada, mas com tal agilidade que estas são levadas a termo conjuntamente. Espelhados em nossa fascinante criação, a tecnologia digital, a mania de funcionar multitarefa invadiu a vida. Qualquer um de nós já protagonizou tal tipo de desafio, ou mesmo presenciou alguém que assiste o futebol na TV ao fundo, enquanto percorre com curiosidade as novidades nas redes sociais e tenta responder um e-mail, ao mesmo tempo fala com um amigo no telefone e atende às demandas surgidas em algum sistema de mensagem, como o WhatsApp.
É uma gula de viver que nos leva a tentar ganhar tempo fazendo várias coisas simultaneamente. A eficiência em clima de urgência não visa finalizar as tarefas, depois do que se abriria um período de ócio, de entrega para algo mais repousante, posterior ao desempenho das obrigações. Após concluir múltiplas tarefas realizadas conjuntamente, tendemos a envolver-nos em um novo grupo de situações que envolvem mais comunicação, atenção e desempenho simultâneos. A multitarefa abre tempo para outras situações de multitarefa.
A verdade é que não temos essa eficiência: mesmo que acostumados desde cedo para tal fim, nosso cérebro não faz tantas coisas ao mesmo tempo, pelo menos, não tem como concentrar-se em mais de uma de gênero semelhante. Será possível, por exemplo, caminhar enquanto se escuta música, nesse sentido, ainda pode-se dar ao luxo de percorrer a paisagem ao som das melodias escolhidas para o momento, porém, a atenção requerida no deslocamento pode falhar, pois ficará preterida pelas outras atividades. Nossa mente categoriza, prioriza, alterna e podemos nos treinar para isso, mas sempre haverá perdas. Algo não vai ficar bem feito.
O estranho é que essa forma ansiosa de ser ganhou uma certa aura de prestígio, como se estivéssemos diante de uma inovação e de um sujeito à frente de seu tempo. Olhando com atenção, parece mais uma perda civilizatória do que um ganho. Os animais são multitarefa, o que é indispensável para sua sobrevivência na vida selvagem. Na natureza, não podem sequer comer em paz sem estar de olho no entorno, para que eles mesmos não virem alimento: engolem escutando e vasculhando atentamente com suas orelhas em radar, prontos para captar qualquer mínimo ruído que signifique a aproximação de um predador ou inimigo. Estão sempre alertas para uma reação rápida ao menor estalo. A condição humana conquistou o oposto, ou seja, a capacidade de ter paz para comer, amar, parar, refletir e ponderar com profundidade um problema.
O estilo que tem se desenvolvido no meio digital não nos ajuda nessa que é uma das grandes tarefas da educação: sossegar o corpo para poder concentrar-se em uma tarefa. Os videogames nos treinam para o contrário disso: atenção, agilidade de raciocínio, destreza motora, estratégia, tudo simultaneamente. Ou seja, o que o game pede não é uma novidade, pois na ação, como em um ambiente selvagem ou hostil raciocinamos assim. Nossa questão é quanto o tempo gasto em games nos prepara acima de tudo para a produtividade e ação, o que pode ser bem útil, mas nunca para a reflexão, que também o é.
A mesma quietude que ler um romance pede, é um extraordinário treino para quando precisamos estudar. Ou seja, dedicar-nos profundamente a um universo ficcional ou temático para emergir posteriormente com uma nova visão. Esse movimento não é natural, é praticado e treinado desde a infância. O que o videogame oferece, ao contrário da leitura, é treino em uma disposição mais próxima do que nosso cérebro de habitantes de ambientes hostis já foi preparado por milênios.
Essa prontidão, que não gasta tempo em vacilar, duvidar e olhar de fora, sem chance de tomar uma decisão com calma sobre as prioridades a seguir, pode ser conveniente. Porém, não se trata de algo somente necessário para situações extremas de guerra ou perigo: esse modo de funcionamento também é utilizado para um desempenho eficiente por parte dos trabalhadores, de quem se espera que tenham o desempenho das máquinas. Eles podem dar conta de tarefas que chegam para o sujeito como as peças que caem cada vez mais rápido em um jogo de encaixes. Muitas situações de trabalho assemelham-se a um equilibrista de pratos, que precisa manter todos no ar, sem obviamente a opção de ficar escolhendo o melhor momento para pegar um prato ou outro. Tal destreza é necessária em inúmeras tarefas e situações, porém é apenas uma das formas de trabalhar, criar e desempenhar funções, não precisa ser o ideal nem a regra.
Existem momentos de parar para pensar, assimilar experiências, refletir sobre o que se passou. Esse tempo contemplativo tem deixado de ser nobre em detrimento do agir, do raciocínio rápido, da resposta imediata. Os games devem ser pensados também como parte de uma forma acelerada de ser. Evidentemente, eles não são a causa desse nosso estilo, são apenas um dos produtos dessa ânsia de viver em dobro.

Mafalda

Trecho do livro “Fadas no divã” sobre a personagem. Uma homenagem à partida de Quino.

MAFALDA

Mafalda é uma menina petulante, uma fonte inesgotável de perguntas sem respostas. Sem ser seu objetivo, cria constrangimentos para seus despreparados pais com questionamentos inusitados e agudas observações sobre o mundo. Ela é o personagem principal de tiras humorísticas, publicadas na Argentina desde 29 de setembro de 1964 até 25 de junho de 1973. Quando terminou sua temporada nos jornais, sobreviveu nas décadas seguintes graças às compilações em livros, a bordo dos quais chegou às gerações posteriores e a vários países. Os livros de Mafalda foram traduzidos para seis línguas e alcançaram sucesso tanto na Europa quanto na América Latina. Além disso, o personagem se popularizou em objetos como pôsteres, camisetas.
Filha do humor inclemente de Quino, ou Joaquín Salvador Lavado, nascido em Mendoza, no ano de 1932, ela se permite questionar tudo. Apesar de seus cinco ou seis anos de vida, não pára de pensar nos descaminhos da humanidade, na beligerância dos povos, no poder dos militares – os golpes pipocavam na América Latina da época –, nos problemas do terceiro mundo, na ampliação dos horizontes femininos e na podridão dos políticos de plantão. Ela gosta de brincar de governo, escuta notícias no rádio e filosofa sobre um globo terrestre, que é seu brinquedo predileto. Como vemos, tudo muito engajado.

Uma infância politizada

Mafalda é tudo o que na verdade as crianças não são. Elas podem até ser observadoras e fazer perguntas sobre política, mas isso somente ocorrerá no caso desse ser um tema corrente e relevante dentro da família. Na infância, a rua é secundária à casa e são os pais e os irmãos, acrescidos de alguns parentes mais próximos, que ocuparão o centro das atenções. Mesmo os pequenos que freqüentarem creches ou escolas ficarão esse tempo entre outras crianças, aprenderão a diferenciar ambientes diversos e as regras que lhes são próprias, mas continuarão ligados à família em termos emocionais. O que ocorre na escola geralmente é conseqüência da vida doméstica, é raro que um drama se origine no sentido inverso.
Na infância, é possível questionar-se sobre grandes temas, como a morte e o sexo, mas será decorrente de observações e impasses domésticos, e esses pensamentos se expressarão principalmente através de brincadeiras e conversas meio enigmáticas, nas quais se nota nitidamente que a criança está abordando algo que está além de sua compreensão. Seguidamente as vemos fazer perguntas e afirmações que mostram que estão envolvidas com alguma questão transcendental, mas os diálogos são curtos, estranhos, e a criança se recolhe contente com alguma resposta parcial, deixando o adulto desconcertado. Se algo importante acontece na rua, como catástrofes naturais ou sociais, abalos ou vitórias políticas, problemas como o desemprego e a carestia, será através das reações dos membros de sua família frente a esses fenômenos que as crianças os acessarão e compreenderão. A criança não é ainda um cidadão constituído, seus pais é que são, sua sociabilidade está ainda em construção.
Os personagens de Quino são ainda mais distantes do mundo infantil que a turma de Charlie Brown, cujas vidas contém dramas de auto-estima e relativos ao convívio com seu grupo de amigos, que não são ausentes da infância. Apesar disso, é necessário esclarecer que a ambientação e a rotina de Mafalda e de seus amigos é tão típica da infância quanto a dos Peanuts, poderíamos dizer que até mais, na medida em que Quino inclui o relacionamento dos personagens com seus pais.
O que é menos próprio da infância, neste caso, são os dramas enfocados, pois até quando se revolta contra a imposição familiar de tomar sopa, Mafalda o faz com um tom filosófico ou politizado. Como a subjetividade das crianças dessas tiras se aproxima pouco da realidade da infância, acreditamos que para Quino elas representariam uma espécie de utopia ética nesse mundo confuso e problemático. Restaria à infância um lugar de alteridade à mediocridade da vida, ao absurdo que reside na crueldade, na desigualdade e na beligerância da nossa organização social. Pensando nessa direção, só o olhar infantil nos revelaria o ridículo que nos cerca. Estaria nas crianças a possibilidade de esperar algo melhor dos humanos, já que elas ainda não foram corrompidas pelo tempo e pela sociedade. Não pensamos que Quino acredite numa teoria rousseauniana, que atribuiria uma pureza essencial à infância, mas é a mensagem que acaba decantando quando se coloca tanta crítica social na boca de personagens tão jovens.
Aliás, nem todas as crianças desempenham esse papel nas tiras de Mafalda. Os personagens que contracenam com a protagonista também mostram em sua personalidade os adultos problemáticos que um dia serão. Em alguns deles é visível o potencial de liberdade de pensamento e qualidade ética que se gostaria que crescesse junto com as crianças, mas também há personagens que trazem dentro de si o embrião do contrário. É de pequenino que se torce o pepino, por isso entre eles há personagens embotados e preconceituosos. Através desses protótipos caricaturais de Mafalda e alguns de seus amigos, torna-se possível revelar os pontos de fratura do mundo capitalista e das famílias de classe média em que eles estão crescendo.

Pequena gente grande

Mafalda é simplesmente alguém que pensa; sua peculiar sensibilidade pode ser encontrada em qualquer idade salvo, ou pelo menos em raríssimas exceções, na infância. O importante desse personagem, e seu toque de humor, é sua capacidade de levantar questões relevantes a partir de partículas do cotidiano que estão dentro da casa e da vida de qualquer um. O contato com o mundo é feito através de um rádio, sua representação é um globo terrestre, um banquinho serve para brincar de governo, o armazém onde se compra a comida da casa abre uma janela para as questões econômicas e o jeito das pessoas que passam pela rua é uma ponte para falar de grandes temas humanos, como a felicidade, a bondade e o envelhecimento.
A vida desfila inteira pela calçada ou pela pracinha de Mafalda e pode ser conjugada inteiramente dentro das paredes de sua casa. Quino parece dizer que só não pensa quem não quer, não importa quão pequeno se é e quão estreitos são seus horizontes. Mas nem só de problemas do mundo vive Mafalda, também existem fatos de infância propriamente ditos: sua ojeriza a sopas, seu ciúmes pela chegada do irmão, a curiosidade pelo hobby do pai de cultivar plantas de interior, assim como o gosto por se alienar na televisão. Apesar dos assuntos infantis e domésticos, a reação de Mafalda é de elevada reflexão ou de linguajar adulto. Por exemplo, quando expressa seu temor de perder o lugar no amor dos pais em função do nascimento do irmãozinho, ela diz que sente como se o coração deles tivesse aberto uma filial; quando canta no banho, ela diz que é a única maneira de superar essa imensa e branca solidão da banheira.
A graça das tiras de Mafalda parece ser similar à que referíamos relativo aos Peanuts: a de colocar a sabedoria de gente grande para interpretar a vida de gente pequena. Não se trata apenas de injetar a maturidade futura no passado pueril da infância, a operação seria também a de mesclar a pureza infantil na capacidade adulta de criticar a sociedade e a própria vida. Essa combinação de inocência infantil com uma crítica adulta aguçada, além do efeito de humor, empresta um sopro de esperança mesmo ao mais trágico pessimista. Afinal, se temos trabalhado tão diligentemente para destruir e estragar o mundo, quem sabe os que virão não o consertem?
Em suma, como nos Peanuts, temos em Mafalda os personagens crianças-adulto. Um universo onde a precocidade das crianças revela as mazelas adultas. O que distancia as crianças de Schulz das de Quino é a inclusão dos problemas do mundo na trama das tiras. Para Mafalda, esses problemas são quase um personagem, se lembrarmos um globo terrestre e um rádio com os quais ela praticamente conversa. Enquanto a obra do americano deixa as crianças numa bolha, que as circunscreve à casa e à escola, o argentino as coloca no mapa. Como dizíamos, os cenários são os mesmos, varia o ponto de vista. Para Schulz, no cotidiano pequeno da infância é possível encenar a comédia humana do indivíduo; em Quino, além desses, são também enfocados os dramas sociais.
Mafalda colocou toda uma geração a pensar sobre a miséria do seu cotidiano, mas sem se desligar da premência de questionar o momento histórico em que viviam. O mundo dela retrata especialmente a América Latina, dos anos 60-70, com suas esperanças e pesadelos. Mas não se pense que ela é uma militante política obcecada pelos grandes temas apenas, por exemplo, uma das questões constantes é a paixão dessa menina pelos Beatles, uma escolha estética que ela defende com unhas e dentes, frente a seu amigo Manolito, que a acusa de gostar de uma música cuja letra não entende. Ela também tem questões sobre a felicidade, interroga-se porque alguns são tão amargos e outros não, sobre o amor e o casamento.
Porém Mafalda é uma menina, e tanta sensibilidade política não lhe serve muito quando o assunto são seus pais: ela não esconde uma certa decepção pelo pouco que eles conseguiram ser na vida, o pai lhe parece mais um coitado que é sugado pelo mundo do trabalho, a mãe uma medíocre que não sabe nem se importa com nada fora das lides domésticas. Esta é a mais alfinetada pela crítica da pequena feminista empedernida que ela tem em casa. Num dos quadrinhos, Mafalda observa a mãe trabalhando, estafada com as lides domésticas, e pergunta, assustada, se a capacidade para triunfar ou fracassar seria algo hereditário. Noutro, frente a esse mesmo quadro, a menina lhe pergunta: – o que gostarias de ser se vivesses?
Essa esperta menina parece não esperar que seus pais lhe transmitam algo, um conhecimento sobre o mundo, é ela que detém a sabedoria. Quando não compreende algo, perguntar a seus pais revela-se inútil, é só para deixá-los perplexos e ou constrangidos. A fonte da sabedoria nestas tiras é o dicionário, ela o consulta constantemente e discute suas respostas furiosamente. Junto com o globo e o rádio, o dicionário completa o tripé de objetos que representam o mundo nas tiras.
Apesar de freqüentar a escola, essas crianças parecem aprender sozinhas, com a ajuda de alguns instrumentos. Os pais até fornecem elementos, como certa ocasião em que o pai de Mafalda lhe presenteou com um pôster que mostrava ruínas gregas, dizendo-lhe ser esse o berço da nossa civilização. Bem, bastou o pôster e a frase, para que fossem disparadas um sem número de reflexões sobre o fato de uma imagem de destruição e ruína ser a de nossa origem. Portanto, temos uma síntese entre um ambiente estimulante e uma liberdade de pensamento, que se processa em mentes puras e não viciadas. É este nosso ideal de aquisição de conhecimento. Queremos proporcionar aos mais jovens muitas fontes, mas desejamos que tirem suas próprias conclusões, porque confiamos muito pouco nas nossas e esperamos muito das deles. As crianças de Quino são também representantes das nossas mais acalentadas ilusões pedagógicas.
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A troupe

Não são muitos os personagens que acompanham Mafalda, são seus vizinhos dum bairro da classe média portenha. Susanita é o protótipo da mulher que não quer saber de nada fora sua estreita vida doméstica, seus planos de ascensão social e seus futuros filhos. Manolito só pensa em dinheiro, uma atividade, convenhamos, para lá de adulta. Os personagens que teriam características mais infantis são o angustiado Felipe, com sua pertinaz procrastinação de tarefas, e Miguelito, que se perde em fantasias megalomaníacas, embora essas características sejam encontráveis na maioria dos mortais em todas as idades
Felipe, ou Felipito, é um neurótico, mas seu acento está mais na angústia do que no fracasso. A caminho do colégio, ele se paralisa de pânico, supondo que esqueceu o tema de botânica em casa, abre a pasta, para constatar que estava lá, alguns metros depois, é tomado pela dolorosa possibilidade de ter esquecido o compasso para a aula de geometria, com o coração explodindo, abre a pasta para também concluir que estava com ele. É aí que ele faz a pergunta que poderia ser a da maioria de nós: – Justo a mim tinha que ter me acontecido ser como eu?
Esse personagem deixa para fazer os deveres de casa no último momento, mas passa a tarde toda martirizando-se porque deveria estar fazendo-os. Não faz suas tarefas, mas está irremediavelmente preso a elas. Quando enfim tenta encarar uma tarefa mais difícil, sentado à mesa fica devaneando com seu herói preferido, El Llanero Solitário, uma espécie de cowboy justiceiro. Apesar de ser um menino esperto e um pouco mais velho, ele não possui a inteligência nem a precocidade de Mafalda, mas é com ele que ela se sente mais perto de ser entendida.
Se na mãe da menina e no personagem de Susanita são veiculadas críticas à mediocridade das mulheres, através de Felipito, Quino expõe a fragilidade e a dependência dos homens, pois a amiga está sempre tentando tirar este menino dos labirintos neuróticos e sofridos em que ele se mete. Com certeza as angústias de Felipe não são absolutamente próprias de um gênero ou outro, elas apenas se revelam masculinas pelo fato de que despertam em Mafalda um certo zelo maternal, denotando essa eterna vocação para filhos que os homens carregam pela vida afora. O pai de Mafalda também se desespera, frente às perguntas irrespondíveis da sua pequena ou até frente à invasão de formigas em seu jardim de apartamento, aí é a mãe dela que vai cumprir essa missão de dar colo para um homem fragilizado.
As constantes críticas à mediocridade da mãe levam à valorização de uma vida de maior inserção social para as mulheres, motivo pelo qual devíamos classificar Mafalda como uma feminista. Mas, na verdade, esses questionamentos também transcendem uma questão de gênero, visam mais do que nada situar que os pais já não servem de exemplo, e os novos humanos deverão crescer apoiados em suas próprias convicções. As mulheres terão de se mostrar maternais em casa, mas também guerreiras na rua. São tempos confusos e misturados para os gêneros, e a turma de Mafalda parece ilustrar isso bastante bem. Por outro lado, como a visão de Quino é de esperança, certamente trata-se de uma aposta otimista em que homens e mulheres possam se beneficiar do fato de que seus destinos se tornaram mais complexos e abertos.
A outra menina do grupo, Susanita, é o oposto de Mafalda e vai na contramão dessa tendência de ampliação dos papéis masculino e feminino, é um contraponto ilustrativo, que serve para ressaltar a posição do personagem principal. Enquanto Mafalda tem olhos para o mundo e seus problemas, Susanita vive sonhando com seus futuros filhos e um lar abastado, o marido parece lhe importar menos nos seus planos, um mero instrumento para atingir seus objetivos. Por isso não podemos afirmar que ela é romântica e pueril, pelo contrário, seu personagem concentra os piores e mais antigos preconceitos contra as mulheres: ela é calculista, fofoqueira e egoísta, sua paixão pelos filhos bem sucedidos que terá (conforme ela, seu filho será um doutor muito famoso e rico) é uma ilustração da glória obtida através da maternidade. Ela vive cometendo gafes, hoje diríamos politicamente incorretas, que só mostram o seu anacronismo. Até quando está tentando ser simpática e entender o ponto de vista dos outros se revela ignorante e inadequada. Por exemplo, certa ocasião comenta com Mafalda que, já que ela era tão anti-racista, talvez o irmão que sua mãe estava esperando viesse a ser uma criança negra e isso seria lindo, pois combinaria com o discurso de sua amiga.
O oposto político de Mafalda, e seu personagem masculino para representar a mesquinhez humana, é Manolito. Esse menino é filho de um gallego dono de armazém que, aliás, já trabalha com seu pai, fazendo entregas e às vezes atendendo no balcão. Ele é um devoto desse pequeno negócio, fica sonhando com campanhas publicitárias mirabolantes para tocar o futuro grande empreendimento comercial que sonha um dia construir. Na atmosfera política da época dessas histórias, o maior palavrão político para acusar alguém era taxá-lo de pequeno burguês. Fruto de um marxismo mal digerido, essa palavra vendida como classificação teórica servia para adjetivar o que de pior se imaginava haver em termos de reacionarismo político e estreiteza de pensamento. Pois bem, é nesse contexto que nasce Manolito, um menino que só tem olhos para os negócios, mas tão pequeno é seu foco do mundo que pequeno torna-se seu ser. Manolito é limitado e burro, tanto no que diz respeito aos questionamentos que seus amigos fazem, que em geral não acompanha, quanto na escola, onde é o pior aluno da classe. Quino não esconde o que para ele é a inteligência, deve estar relacionada com a imaginação e a capacidade de criticar o mundo, e a burrice, associada ao pragmatismo, a uma mente dinheirista e pobre de espírito.
Miguelito talvez seja o único personagem do grupo que é um pouco mais infantil, é também o mais traquina de todos, bate nas campainhas e sai correndo, grita coisas atrás de um tapume para assustar os passantes. Claro, depois faz uma reflexão, um tanto quanto adulta, de como essa é a faceta mais sórdida da sua personalidade e acusa-se de covardia. Também é adulta sua consciência de que a culpa de pouco ajuda para prevenir novas travessuras.
Para representar a infância propriamente dita e poder fazer piadas com a lógica infantil foi preciso nascer Guille, o irmão caçula de Mafalda, esse sim transita dentro dum universo de papai, mamãe e chupeta. Guille é uma gracinha, faz artes de criança pequena, e é sua irmã e seus amigos que dão discursos defendendo sua liberdade de expressão, ou seja, seus direitos de correr pelado e desenhar nas paredes da casa.
Mais tarde, junta-se ao grupo uma voz ainda mais politizada que a de Mafalda, chama-se Libertad. Embora o novo personagem tenha a mesma idade que Mafalda, é muito pequena na estatura, o que contrasta com a sua enorme capacidade de se expressar. Libertad é pequena como a liberdade que havia na época dessas tiras e fica irritada quando as pessoas tiram a óbvia conclusão sobre a relação entre seu tamanho e nome. Sua fala acaba sendo uma radicalização do discurso de Mafalda sobre as mazelas do mundo e a asfixia de pensamento. A metáfora não poderia ser mais direta, mas apesar disso a voz dessa esperta pequena encontra a mesma amplitude que uns poucos corajosos conseguiram ter para combater os anos de chumbo que maltrataram a América Latina. São os grandes perfumes nos pequenos frascos.

Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

Frankenstein: o filho queixoso

2018 encerrou, ano estranho, não por acaso ano do centenário da publicação da primeira versão de Frankenstein, escrito por uma das primeiras crias do feminismo, a jovem escritora Mary Shelley. Essa história ainda nos diz muito. Neste momento em que tantos exigem de uma figura paterna o que ela nunca pôde dar, em que tantos tomam decisões em nome dos mesmos ressentimentos que moveram o monstro, talvez seja hora de reler esse mito literário. Aqui, trechos do nosso livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, publicado em 2010.

“Lembra-te de que fui criado por ti;
eu devia ser teu Adão,
porém sou mais o anjo caído. ”

O nascimento de Frankenstein

Tão popular como um monstro do folclore, Frankenstein nasceu na literatura, no livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley, uma jovem inglesa de 18 anos. O fato é que decorridos quase dois séculos, todos ainda sabem quem ele é. Podem não saber exatamente detalhes da história original, pois esse personagem ultrapassou muito as páginas do romance de Shelley, mas algo de sua essência continua reverberando em uma época tão distinta daquela que o viu surgir. Isso faz dele um dos mitos literários da era individualista, ao lado de Fausto, Robinson Crusoe, Dom Juan e Dom Quixote; ou seja, são personagens que nasceram em livros, mas já habitam a imaginação popular.
Essa novela nasceu de um desafio literário realizado por um grupo de amigos: isolados pelo mau tempo durante umas férias, Mary Godwin Shelley, seu marido Percy Shelley, junto com os amigos Lord Byron e John William Polidori, lançaram-se a escrever histórias de horror para divertir uns aos outros. Dos convivas, foi a jovem Mary a que mais seriamente cumpriu a tarefa. O primeiro livro saiu em 1818, mas em na sua terceira revisão, em 1831, é que se estabelece o texto clássico tal qual foi traduzido em várias línguas.
Como era comum na literatura da época, principalmente entre aqueles romances que caíram em gosto popular, a história lança mão do recurso das cartas, misturadas ao relato em primeira pessoa do protagonista: Dr. Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais, o homem que descobriu como dar vida à matéria morta.
A novela começa pelas cartas do capitão de um navio que rumava para o Polo Norte para sua irmã, contando uma estranha aventura que lhe acontecera. Nessa paisagem inóspita ele se deparou com o Dr. Frankenstein, e o recolheu em seu navio mais morto do que vivo. Ele lhe contou a triste história da fabricação de um monstro e sua missão de persegui-lo e destruí-lo. Como o trajeto do navio lhe convinha e estava fraco para continuar a caçada sozinho, o doutor segue a bordo e morre após terminar seu relato. A maior parte do livro consiste nessa história, transcrita pelo capitão, do nascimento do monstro, o destino trágico de criador e criatura, finalizando com um pedido de Frankenstein de que, em caso de sua morte, alguém se incumbisse de eliminá-lo. Na cena derradeira, Walton ainda tem um encontro com a criatura que subiu ao navio para o último adeus ao seu criador. O monstro parte, prometendo dar fim à sua própria existência.
Frankenstein teria decidido revelar sua triste sina para que o navegante não se deixasse destruir pela sua ambição de atingir o Polo, como ocorrera com ele anteriormente. No derradeiro fim, aquele que, como veremos, não conseguiu ser pai para ninguém, que perdeu tudo e todos, restando só o maior dos seus erros, entra em nossa história em uma posição paterna: a do sábio que aconselha o aventureiro, tentando ensinar-lhe a viver. Enfim, como nunca antes, ele consegue fazer um derradeiro gesto de cunho paterno. A história do monstro e do seu criador, ambos conhecidos pelo mesmo nome de Frankenstein é a história do quanto esse homem sofreu para que esse simples diálogo pudesse ocorrer, nem que fosse apenas à porta da morte.
Depois de escutar Frankenstein, o capitão desiste de sua obsessão por atingir o Polo Norte. A conquista do polo, feita quase um século depois desse livro, em 1909, já era meta de aventureiros que queriam marcar seu nome na história, indo até onde nenhum homem ainda chegara. O Polo Norte tem uma mística própria, serve de símbolo do fim do mundo, de ponto de orientação, pois é para lá que a bússola aponta. Talvez seja essa mesma lógica que faz do Polo a moradia de Papai Noel, um lugar extremo e ao mesmo tempo central, orientador. Se boa parte da queixa que perpassa o livro é a de que vivemos desorientados, que não existem referências paternas sólidas, de que o pai nunca fornece um norte, não deixa de ser irônico que seja justamente próximo desse eixo do mundo que ocorra o encontro entre Frankenstein, seu monstro e o viajante que se tornará o porta-voz de sua história.
Conforme seu relato, Victor Frankenstein foi primogênito de uma importante família genebrina e aos 17 anos, quando se preparava para sair de casa e frequentar a universidade, perdeu sua mãe. Junto da família vivia Elisabeth, adotada pela família quando ambos tinham cinco anos e eles se tratavam como primos. Porém, apesar do vínculo familiar que o ligava à moça, a mãe pede em seu leito de morte que eles se casem, e é a essa noiva que o coração do rapaz estava entregue. A perda da mãe, embora já não fosse uma criança, o deixa desconsolado, com muitas questões sobre a morte e pouco disposto a aceitá-la. Victor já possuia curiosidades científicas, e uma vez na universidade em Ingolstadt, volta-se para as ciências naturais, mas com uma ênfase muito particular: seus estudos são norteados pela obsessão à qual vai dedicar a vida, que é vencer a morte. Essa sua inclinação particular o afasta dos seus pares, por isso acaba conduzindo sozinho as pesquisas mórbidas a que se entrega. Ele estuda os mecanismos da morte, a putrefação e norteia-se pela sua crença de que poderia revertê-la ou impedi-la.
Na história escrita por Mary Shelley não há detalhes sobre a fabricação da criatura, a maior parte deles foi acrescentada pelas versões posteriores, principalmente as cinematográficas, que relançaram a história em novas inflexões. Shelley apenas cerca a gênese de mistérios e de discursos filosóficos, nos faz crer que o Dr. Frankenstein domina a ciência moderna, mas não dispensa a tradição alquimista antiga. Após o frenesi que domina sua vida através de anos de pesquisas, ocorre o esperado “nascimento” de um corpo de mais de dois metros, composto a partir de restos de cadáveres. Mas o ser por ele criado, desde o momento em que abre os olhos, desafia seu criador como algo bem maior do que um experimento científico.
Paradoxalmente, ao invés de comemorar a vitória da ciência sobre a morte que ali se consagrava, a conquista do objetivo que consumira suas forças até ali, o cientista ficou tomado pelo horror. Ele considera que a origem do pavor que sentiu emana dos olhos mortiços do espantalho que acabara de animar. Após realizar os procedimentos necessarios para a animação do corpo que construira, viu “abrir-se o baço olho amarelo da criatura (…) seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das órbitas onde se cravavam”, descreve ele. A partir daí, o cientista caiu imediatamente em uma mistura de sono e desmaio, na qual sonhou que estava beijando Elisabeth, mas ela se transformava no cadáver decomposto de sua mãe.
Após esse sonho, acorda apenas para ver a criatura que já estava em pé, ao lado de sua cama, contemplando-o: “seus olhos, se é que assim podiam ser chamados, estavam fixados em mim”. Em uma inversão de papéis, desta vez é o criador que desperta e encontra sobre si o olhar do “cadáver demoníaco ao qual tão desgraçadamente eu havia dado a vida. Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. O horror do cientista parece ser um fato naturalmente inspirado pela sinistra imagem de sua criação, cabe a nós compreender a fonte desses desencontros de olhares.
Assim que pôde, Frankenstein fugiu do local, abandonando o monstro à própria sorte, e nos dias em que se seguiram caiu enfermo, em estado de inconsciência, sendo amparado pelo seu melhor amigo que justo chegou para encontrá-lo. Por isso, a formação da criatura que vai progressivamente aprendendo a compreender o mundo, a pensar, a falar e até a ler se dará em total isolamento, de forma indireta, isenta de qualquer tipo de olhar que lhe dê suporte e reconhecimento. O monstro tudo vê, mas nunca pousaram sobre ele quaisquer olhos que não o quisessem matar. Para ele, que era um corpo inerte, abrir os olhos equivale ao nascimento, significou estar vivo. Porém, no princípio de sua existência ele provocou o desejo de que ela não tivesse acontecido. Isso é ainda pior do que ser rejeitado ao nascer, a criatura invoca no criador o horror, o impulso de negar esse fato. Victor Frankenstein renega o que fez, arrepende-se.
Desde a primeira centelha da vida de sua criatura, o cientista não lhe desejou mais que a morte. Pior, pois matá-lo talvez não fosse tão difícil, desejou que seu experimento não tivesse dado certo. Mais do que matar o monstro,Victor gostaria de eliminar sua obra, mas isso era impossível. Mesmo que a criatura tivesse sido destruida ao despertar, o cientista continuaria perseguido pelo seu feito. O rastro de violência que segue o monstro é somente a encarnação dessa culpa pela descoberta da reversão da morte. Após este ato de negação da morte, o Dr. Frankenstein não faz mais do que reencontrá-la. Aliás, a morte o persegue, encarnada no monstro, que elimina todos seus seres queridos. Enquanto isso progride, Victor não consegue matar seu monstro, em uma mistura de impotência com vacilações, como se a destruição só pudesse se alastrar após semelhante experiência.
Mas de onde vem essa mudança de rumo tão brusca? Uma pista pode ser o pesadelo que Dr. Frankenstein teve depois do “nascimento” do monstro: “… tive a impressão que segurava em meus braços o cadáver da minha mãe; um sudário envolvia-lhe o corpo, e eu via os vermes rastejando pelas dobras do pano”. Esse sonho não seria tão revelador se não estivesse ligado ao que acontece imediatamente, ele desperta e o monstro o está contemplando, tentando falar e tocá-lo. Ele se desespera e foge. Na sequência do texto há uma continuidade entre a monstruosidade do corpo da mãe, por estar morta, e a do monstro, passando de um horror a outro, e é o horror da morte que está no fundo. Em outros momentos da história já intuíamos que obsessão do cientista por vencer a morte era fruto do luto malsucedido da perda de sua mãe, e aqui é a visão da mãe morta que retorna em sonhos quando ele finalmente “vence” a morte.

A educação do monstro

Depois de ser abandonado por Frankenstein, o monstro deixa o laboratório e aprende a alimentar-se, abrigar-se e a decodificar suas percepções. Solitário e sorrateiro, sobrevive às intempéries isolado dos seres humanos, que sempre que lhe pousam os olhos gritam, fogem ou o apedrejam. Em uma ocasião, ocupa um esconderijo ligado à casa de uma família constituída por um ancião cego, seu filho e filha. Eles acolhem uma estrangeira, noiva do rapaz, e lhe dispensam uma série de ensinamentos, desde a língua e as letras, até literatura, ciência, política, filosofia. Em segredo, escondido e espiando por uma fresta, o monstro apropria-se das lições e torna-se letrado e pensante. Grato pelo que indiretamente aprendia, ele lhes dispensava pequenos favores sempre oculto pelas sombras.
Quando se sente suficientemente forte, sai de seu esconderijo e apresenta-se ao cego, seu professor involuntário, para demonstrar-lhe sua gratidão, esperando ser aceito pelo grupo. A conversação com o velho vai bem, mas se interrompe quando o filho entra no recinto, o vê, e o costumeiro comportamento de agressões e fuga se repete. Só que desta vez a criatura, que se sentia muito ligada aos seus benfeitores indiretos, sofre e se vinga, colocando fogo na casa que eles haviam deixado para trás em sua fuga.
Entre as roupas que saíra vestindo do laboratório de Frankenstein, o monstro descobre em um bolso o diário do cientista, onde se encontra narrada em detalhes a aventura de sua origem. Lê com horror: “neles está relatado tudo o que se refere à minha origem maldita. […] Encontrei minuciosa descrição de minha odiosa figura. […] Maldito o dia em que recebi a vida! Exclamei cheio de agonia. Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado?” Mary Shelley criou nesse monstro um ser filosófico que em sua reclusão havia feito várias leituras, entre elas O Paraíso Perdido, de Milton. Portanto, ele já se comparara com Adão, ao qual invejava a proteção recebida pelo seu criador. A epígrafe do livro contém uma citação de Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para que me arrancasses das trevas?”.
A revolta contra o criador principia-se aí, quando reflete sobre os motivos de seu desamparo e solidão. Para o monstro, ele não estava à altura do gesto de originar a uma vida e no decorrer da história o fará pagar caro por isso. A intenção de dar-lhe origem, como fica claro nessa epígrafe, partiu do criador, portanto ele precisa responsabilizar-se por ela, pois o monstro, como um filho qualquer, não pediu para nascer. Inicialmente a mágoa não mostra o potencial destrutivo que assume quando ele tem a desilusão com essa família do pai cego, pois mais uma vez é rejeitado por aqueles de quem esperava alguma filiação. Trata-se de uma renovada experiência de frustração, na qual novamente aquele de quem espera uma adoção não pode olhar para ele.
Parte então em busca do criador, a quem culpa pela sua desgraça. Tendo localizado, através do diário, a cidade onde residia a família Frankenstein, ele se dirige para lá em busca de vingança. Assim que teve oportunidade, estrangulou o irmão menor de Victor e colocou a correntinha do falecido no bolso de uma criada da família, que foi enforcada injustamente, considerada culpada pelo assassinato.
Após esse crime, ocorre um encontro entre Frankenstein e o monstro no qual este lhe conta sua história e reclama do abandono. Em troca de deixá-lo em paz, exige que lhe seja fabricada uma companheira, sua Eva. No início, o cientista chantageado, aceita, mas quando a está concluindo e se vê frente a mais uma obra sinistra, se apavora e a desmancha em pedaços, o que deixa o monstro ainda mais furioso. Mais adiante, ele também matará o melhor amigo e a amada do criador, em plena noite de núpcias. O monstro não se contenta em destruir Frankenstein, quer secar-lhe a linhagem, salgar sua terra, fazer dele alguém tão solitário e ímpar como ele próprio. No final, voltamos ao ponto de partida do romance, onde criador e criatura vão aos extremos do mundo um no encalço do outro, sem conseguir eliminar-se mutuamente. “Tu, meu criador, me detestas e me abominas, a mim que sou criatura tua, a quem te achas ligado por laços só dissolúveis pelo aniquilamento de um de nós. Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? Cumpre teu dever para comigo, e eu cumprirei o meu para contigo e o resto da humanidade.”
A demanda não poderia ser mais clara, é uma mágoa contra seu pai, exigindo-o a assumir a responsabilidade sobre sua presença no mundo. São centenas de páginas de exortação para que o cientista se responsabilize, de alguma forma pague pelo abandono e rejeição da sua criatura. O monstro é um filho que acredita ter direito à acolhida e orientação por parte daquele que considera seu pai: “eu aprendera pelos seus papéis que você era meu pai, meu criador. A que outra pessoa poderia eu recorrer senão a você, que me dera a vida?”
A condição irreversível da paternidade é um dos pesadelos da função. Para a mãe, o uso de seu corpo por parte do feto já se incumbiu desse trabalho de convencimento de que o filho passará a ocupar espaço para sempre na sua vida. Já o pai, irá descobrindo isso aos poucos, convencendo-se, muitas vezes de forma dolorosa, de que seu destino passou a ser inseparável daquele que gerou. Observamos que quanto mais paranoide o homem for em relação a isso, mais seu filho tenderá a tornar-se um pesadelo, um perseguidor, exatamente como ocorreu com a criatura de Frankenstein. A paternidade dita biológica, não assumida espontaneamente, comprovada por exame genético, é a versão jurídica desse pesadelo. Nesse caso, um homem se descobre eternamente ligado a um filho que ignorava, renegou ou nunca desejou.
Nas inúmeras adaptações da obra que se seguiram, inicialmente no teatro e depois nas telas, a criatura de Shelley perdeu o direito à palavra. Os longos discursos de ressentimento e cobrança deram lugar a um monstro tosco, abrutalhado e balbuciante. Mas em quase todas perdurou esse impasse inicial, no qual o cientista se horroriza frente à sua obra, desfalece e abandona-o. O monstro vaga solitário, incompreendido e acaba reagindo a tanto desamparo com raiva e sede de vingança. O cerne do mito, portanto, pode ser entendido a partir da criação e abandono de um filho, que por isso torna-se monstruoso; mas também o pânico causado pelo ato de originar um ser é uma das fontes do horror contidas nesse mito literário que atravessa os tempos.

As mutações do monstro

Mary Shelley teve um encontro feliz com uma ideia que sintetizou um feixe de fantasias muito úteis a seus contemporâneos e a muitos que ainda estavam por nascer. Assim que ela publicou seu livro, ele foi transposto para o teatro, com imenso sucesso de público. A partir dessas adaptações teatrais algumas novidades somam-se e modificam a história original. A história dessas versões demonstra, conforme Hitchcock, que “certos elementos permaneciam constantes: um ser criado horroroso e de estatura desmedida, a presença de raios e eletricidade nos acontecimentos da história e a relação psicológica íntima entre criador e criatura. Ao mesmo tempo a história já começara a agregar novos elementos, estranhos à versão de Mary Shelley, muitos dos quais vinculados tão fortemente que sempre aparecem desde essa época: um monstro incapaz de articular palavras, um assistente de laboratório desastrado, uma multidão irada em busca do monstro e um final cataclísmico no qual a criatura e o criador perecem juntos. O público devorava avidamente essa história de monstro, contada e recontada, remodelando-a muitas vezes”. Essa descaracterização tanto da solidão e isolamento do cientista, quanto, e principalmente, da criatura, que no romance é tão discursiva, não irritou a autora. Pelo contrário, ela ficou sensibilizada pela comoção da plateia, que parecia entender o espírito de sua obra. A partir de então, o livro original, que segue nas prateleiras após quase dois séculos, assim como a personagem emudecida pela sua versão dramática firmaram-se enquanto um mito literário.
Um mito não tem autor, ele pretende estabelecer a história da origem das pessoas, do mundo, dos objetos e extrai sua veracidade da provável fonte sobrenatural da narrativa. Seu uso busca amalgamar o máximo de elementos possíveis, pois ele não existe para gerar interrogações, mas sim para dar explicações, para fechar questões. Para tanto, um mito engloba em seu interior todos os elementos úteis que puder angariar: referências históricas, fantasias comuns, elementos do cotidiano de cada época. O mito é uma tentativa de dar explicações através de histórias para o que é frequentemente inexplicável, e se não se ocupasse das fronteiras do nosso conhecimento, não seria necessário recorrer a argumentos fantasiosos para dar conta do assunto. Já os mitos literários são assinados, sua fonte é humana e claramente estabelecida, porém eles possuem a mesma característica de imantar elementos de um momento histórico, da forma como se estrutura a sociedade e a intimidade dessa época, e combiná-los com fantasias atemporais, gerando uma trama que pode ser transposta a outros lugares e outras épocas. Uma história se torna mito quando ela se transforma, permanecendo ela mesma, em um aparente paradoxo.
Mitos literários, portanto, são histórias que transcendem esse ponto de partida claramente autoral, para caírem em outras mãos, porque o público consome versões que vão transformando-a a seu gosto, ele se apropria delas para fins de elaboração de suas questões e as vai transformando sutilmente. Mais do que a corrupção de um original, se estabelece uma harmonia entre um cerne essencial da narrativa que se conserva, enquanto cenários e personagens se modificam, que é justamente o que nos autoriza a pensar que estamos lidando com algo maior do que o livro de um autor.
O monstro é órfão de mãe, e filho da relação de um homem com a ciência, é a criatura incompreendida e abominada por todos, que persegue seu pai-criador até o fim da vida de ambos, essa é sua essência. Embora ele tenha sido privado das palavras que usava para acusar Frankenstein, sua imagem continua angariando pena e horror ao mesmo tempo, pois ele é a encarnação de um erro, além do retrato do abandono.
O horror provém do ato monstruoso que parece ter sido a própria criação e o desafio à morte que ela pressupõe, nisso estão igualados o cientista e seu monstro, enquanto o feito de um e seu produto resultante que é o outro. Por isso, em todas as versões joga-se com a alternância das duas personagens que, para efeitos populares, acabaram atendendo pelo mesmo nome, criador e criatura, já que o monstro fica identificado à loucura onipotente que lhe deu origem. Por outro lado, a fuga do cientista que deixa a despreparada criatura à mercê de um mundo nada acolhedor produz uma empatia inesperada no público, que acaba penalizando-se daquele que tem tudo para ser apenas rejeitado.
O livro recorre a um arrazoado filosófico, que associa o monstro ao bom selvagem, um ser ávido de receber acolhida e uma formação, ao qual a rejeição transformou em obstinadamente mau. Na obra de Shelley a empatia com a criatura é racional, discursiva: escutamos dele todos os esforços que fez para parecer-se com os humanos, que ele observava de longe e escondido, assim como seu anseio por ser admitido entre eles e o sofrimento cada vez que era reduzido a ser a abominável representação de um ato inaceitável. Ele queria ser humano, mas os maus-tratos o lembravam de que não passava de uma forma artificial de vida infundida a pedaços mortos, assustador como um fantasma. Ele buscava compreensão e só encontrava exorcismo. Já no teatro, ao ver substituídos por rudimentares balbucios, gestos e olhares os complexos raciocínios com que defendia sua essência originalmente boa, que ele acusava de ter sido corrompida pelos homens, só lhe resta a identificação com uma criança que ninguém aceita como filho, que sequer é admitida como alguém da nossa espécie, para obter a simpatia e a compaixão do público.
A imagem corporal de alguém composto de pedaços costurados, cujo resultado tem aparência monstruosa, tem precedentes na teratologia. Conforme Warner, “a monstruosidade participa do desajeitamento da irregularidade, de suas classificações e harmonias imperfeitas, e encena a aberração por não conseguir permanecer consistente nem mesmo consigo próprio”.
A falta de um olhar materno que unifique as partes desconexas da criatura é o que empresta um caráter monstruoso à sua imagem. Em menor escala, observamos inúmeras distorções na imagem corporal de sujeitos que se enxergam como disformes, abjectos, com partes que devem ser ocultadas ou corrigidas. Em geral, nesses casos trata-se de pessoas em cujas vidas ocorreu algum desencontro radical ou uma importante falta de sintonia com a mãe. Mas a dismorfofobia aparece muito frequentemente na adolescência quando um outro olhar, agora como corpo sexuado, o desafia, portanto sua causa pode estar na confirmação desse corpo que o olhar materno colou.
O livro Frankenstein foi escrito por uma órfã de mãe. Talvez por isso não surprende que a história seja a de um filho, que contando apenas com a figura paterna, só possa oferecer ao olhar alheio a imagem da falta de harmonia de seu conjunto. Mais uma vez, vemos aqui retratadas as limitações que atribuímos à Função Paterna. O pai pode nomear, mas carece do poder do olhar que unifica. Criador e criatura, portanto, fecham os olhos um para o outro.
A sobrevivência dessa história, e sua transformação em mito, está ligada ao fascínio gerado por esse ato profano de criação, que já alimentava a popularidade das histórias sobre o Golem. É uma instigante fantasia sobre a prepotência de um homem que tentou negar a morte, descobrindo um método para impingir vida à matéria inerte, que quis superar deus, a ciência de seu tempo e prescindir das mulheres para dar origem a um ser vivo. Filho de tanta pretensão masculina e de nenhuma mulher, essa criatura involuntariamente acaba representando a bancarrota da onipotência de um pai, de quem o desmaio, a fuga e o arrependimento mostram a fragilidade. Esse homem que quis tanto, negando a própria morte com seus atos, é tão mítico quanto seu enorme filho desamparado. Na verdade, um não existe sem o outro, por isso eles partilham o nome. Ele quis tudo e ficou com nada, por isso foi, no livro, totalmente destruído.
Frankenstein também é o protótipo do “cientista louco”, personagem que ganhou espaço a partir dessa época. Desde então tentamos saber o que resta da sabedoria, já que a igreja e a tradição não mais respondem por ela. Através dessa figura do cientista louco nos mostramos nostálgicos, negamos a ele a totalidade de saber e o castigamos pela ousadia. A ciência é a herdeira imediata da expectativas que depositávamos na religião: que seja fonte de segurança, antídoto contra o desamparo. Se até mesmo a fé, com toda a sua convicção, foi abandonada, por que a ciência, com suas certezas sempre transitórias, teria nossa adesão garantida?
A personagem do cientista louco, marginal em relação aos seus pares e capaz de superar o conhecimento de seu tempo, reflete nossa ambivalência. Confiamos que sua genialidade ultrapassará as fronteiras do que já se sabe, mas como a condição transgressora e revolucionária de suas descobertas é punida, é como se, ao mesmo tempo, déssemos também um voto de desconfiança. Supomos que suas invenções, que o desgarram do já estabelecido, vão produzir algum tipo de desequilíbrio: ele ficará transtornado, ou sua obra será de alguma forma perigosa, ou ainda trará algum tipo de alteração no mundo cujos efeitos serão nocivos. No caso de Frankenstein ocorreram essas três consequências de sua descoberta.
Em seguida ao surgimento do livro, e ao longo de um século, as peças de teatro foram dando contornos novos ao monstro, até que, em 1910, a criatura de Shelley encontrou um novo meio para expandir sua influência. A Edison Film Company, pioneira na história do cinema, o recrutou entre as primeiras personagens do recém-nascido cinema mudo, com direito a inéditos efeitos especiais. Mas foi a versão cinematográfica de 1931, com direção de James Whale, o momento crucial para a difusão de Frankenstein e a sua posterior transformação em mito. A imagem que vem à cabeça de todos, de um ser de cabeça quadrada com eletrodos no pescoço, cheio de cicatrizes mal costuradas, usando roupas pequenas para seu tamanho, é a do ator Boris Karloff maquiado para esse filme.
Whale estabeleceu o cânone estético e muitos dos aspectos que hoje consideramos intrínsecos à criatura. Como já era de hábito, seu monstro se limita a grunhir e movimenta-se como um grande bebê, já que o ator usava ferros nas pernas e pesos nos pés para que seu andar ficasse vacilante. Os olhos profundos e negros de Karloff, com a maquiagem pesada nas pálpebras eram frequentemente enfocados, fazendo do monstro um rosto triste a ser olhado para angariar nosso afeto. Se para o cientista, na narrativa de Shelley, o olhar de sua criatura o apavorou por serem olhos mortiços, no cinema isso foi substituído por uma expressividade que redunda no contrário: é desamparo que constatamos nos olhos caídos de uma criatura que clama por adoção. Whale também retoma a tradição teatral do ajudante corcunda e sinistro, e coloca grande ênfase no roubo de cadáveres, o que no original é apenas uma alusão.
A temporalidade indefinida em que a novela é tecida está bem ilustrada nesse caso e ajuda aos contornos míticos que a personagem ganhou posteriormente. No filme, tudo se passa em uma aldeia genérica europeia onde o passado e o presente, o arcaico e o moderno se confundem. Embora sofra as influências de seu tempo, ele é um romance não datado e mistura um saber científico de ponta com alquimia medieval. O laboratório do Dr. Frankenstein, um lugar que congrega todos os instrumentos científicos da época de Shelley, situando-os dentro de uma torre gótica, é uma boa imagem dessa síntese. Aliás, o cânone dessa imagem foi estabelecido pelo filme de Whale, mais de um século depois, pois no livro, o laboratório é apenas é um lugar sinistro.
Embora nos forneça imagens definitivas, o filme simplifica a trama. Temos no início o Dr. Frankenstein obcecado pelas suas investigações sobre a fronteira entre a vida e a morte. Ele rouba cadáveres para prosseguir suas investigações solitárias, afinal a academia não iria tão longe como suas experiências. Um erro que ele não se dá conta vai ser fatal para sua criação: enviado ao necrotério para obter uma parte fundamental da criatura, seu ajudante trapalhão rouba o cérebro errado, não de uma pessoa normal, mas de um psicopata.
Depois da criação, o ansiado resultado da pesquisa científica a que havia se entregue com tanto entusiasmo é como sempre renegado pelo criador horrorizado que adoece. Enquanto isso, o novo ser é deixado preso, aos cuidados do ajudante corcunda que o chicoteava impiedosamente. Acossada pelos maus-tratos, a criatura devolve-lhe a brutalidade e o mata. Como o monstro já nasce então fadado ao fracasso pelo seu cérebro doente, neste caso pouco se espera dele a não ser uma carreira criminosa, portanto, não há dúvidas de que ele deva ser eliminado. Quando fica consciente do seu erro, o Dr. Frankenstein e seu professor, que curioso do resultado havia comparecido para observar a experiência, concordam que ele deva ser destruído. O criador é resgatado por sua família que o recupera da saúde abalada pelos anos de esforço dedicados à ciência, enquanto se prepara o esperado casamento com Elisabeth. Enquanto isso, o professor fica no laboratório incumbido de eliminar o monstro, que já revelara sua natureza criminosa. Porém, a ciência é como uma sereia cujo canto enfeitiça o bom senso, e ele não resiste em fazer algumas últimas experiências no corpo anestesiado da criatura. Óbvio, para o bom andamento da trama, que ela acorda, mata seu algoz e foge.
Na sua escapada comete mais um crime, mata uma menina que encontrou ao acaso no caminho e brincou com ele. Desta vez, como da anterior, não há maldade: ele é inexperiente, tosco, incapaz de entender a lógica da brincadeira e comete um erro fatal: a menina jogava flores na água para que boiassem e convida-o para fazer isso com ele; entusiasmado com a brincadeira, ele atira a menina na água, para que ela também boie como as flores, e ela se afoga.
O cérebro do psicopata utilizado na construção do monstro, que supostamente teria desencadeado toda maldade não é convincente, sua carreira de assassino mais parece uma sucessão de trapalhadas do que de maldades. O monstro mata da primeira vez porque é brutalmente maltratado. Sua segunda investida é praticamente em legítima defesa, pois iria ser sacrificado e se salva matando o professor. Quanto à menina, trata-se de um mal-entendido lógico, do tipo que fazem as crianças pequenas. Elas colocam-se em risco em função da combinação perigosa de curiosidade com ignorância, tal como a que teve a criatura, que quis experimentar se a menina boiaria como uma flor. Quando a vê afundar, desespera-se e tenta retirá-la das águas de forma atrapalhada e inútil, resgatando apenas seu corpinho sem vida. O monstro porta-se como um bebê gigante, sem saber falar, sem entender direito o mundo, andando desajeitado, vaga mais perdido e digno de pena do que evocando terror.
O pai da menina leva a filha morta para a aldeia, que estava em festa, reunida para comemorar o casamento do Dr. Frankenstein. A cena da chegada do cadáver da criança, nos braços do pai desesperado, que vai estragando a festa por onde passa e transformando os aldeões em uma multidão de linchadores, é antológica da história do cinema. Quando ele chega lá todos compreendem o que aconteceu e saem à caça do monstro.
Trata-se de cinema para as grandes massas e essa história trágica precisa terminar bem: o monstro tem que ser eliminado, pois ele é um equívoco científico e o casal de protagonistas, o cientista e sua noiva, deve dirigir-se para um final feliz. As intermináveis conversas e encontros entre o monstro e o Dr. Frankenstein, que fazem o núcleo do romance de Shelley, estão eliminados. Além disso, agora ele se limita a uma visita a Elisabeth, sendo que nesse encontro, ao invés de ser assassinada apenas desmaia. Antes do cerco final, a criatura encontra seu criador e após uma luta ele carrega-o consigo para um moinho, mas o cientista escapa. O desfecho é previsível. O monstro acaba acuado em um velho moinho, em cujo interior ele é queimado vivo. Trata-se de um bem-sucedido exorcismo coletivo. Mas que demônio se expurga nessa cena?

Qual mito?

Se Frankenstein é um mito, a pergunta é qual seria, no sentido de sua filiação, ou então ele seria um mito novo? É claro que podemos ver traços de outros mitos nele, como o de Doutor Fausto, por exemplo. Afinal vemos uma equivalente paixão pelo conhecimento no Dr. Victor, já o monstro de Shelley lembra Mefisto pela eloquência, mas por certo essas comparações não dão conta da totalidade do tema, são pedaços de um todo mais complexo. A própria autora tenta nos convencer que se trata de um Prometeu moderno, isso está inclusive no título da novela. Provavelmente no sentido de uma insubmissão ao estabelecido, pelo roubo dos poderes e saberes celestes, e do castigo por tal ousadia, ou ainda de uma revolta contra uma autoridade despótica. Mas nada disso dá uma explicação da totalidade, apenas acrescenta aspectos. Nem a ideia de um Pigmalião sinistro, como já foi lembrado, nos traz muita luz, é apenas uma referência.
Certas interpretações colocam Frankenstein na categoria do Duplo. Parecem certas, pois não faltam elementos que apontem nessa direção: a criatura, como não tem nome, acabou sendo conhecida então com o nome de seu criador. De certa maneira, eles compartilham o significante, sugerindo que redundem no mesmo significado que se desliza entre eles, se completa. O monstro não tem infância, ele nasce adulto, possui quase a mesma idade de seu criador, não há uma geração que os separe e o fim de ambos é desaparecer no Polo Norte.
A criatura só se reporta ao seu criador, suas conversas são o centro do drama. Só o Dr. Frankenstein praticamente vê seu monstro. Cada um à sua maneira, os dois estão fora do sistema, ele não é aceito pela comunidade científica, por suas crenças, enquanto a criatura é fora de tudo, de uma genealogia, de um lugar no mundo. Os dois têm sérios problemas com a alteridade que o sexo coloca, são celibatários, os casamentos não se consumam, pois um mata a noiva do outro. Existe a espera de uma mulher, mas ela nunca chega de fato. Ou seja, nada de sexo, nem para nascer nem para nada. Os dois acabam ilhados em si mesmos, um fixado na destruição do outro.
Se de fato essa história pode nos dar então uma radiografia dos dilemas de uma alma partida, ela nos deixa sem respostas a uma questão central do romance: tanto a criatura pede o tempo todo que seu criador seja um pai para ele, que lhe dê um lugar e lhe diga por que o fez, quanto Dr. Victor foge várias vezes por não se mostrar à altura dessa empreitada. Nesse quesito a questão do duplo nos deixa sem respostas, não faz sentido ver apenas um homem acusando a si mesmo por não conseguir encontrar sozinho respostas para suas inquietudes. Como alguém pode acusar-se de abandonar a si próprio, de não ter cuidado de sua infância e educação? Existe uma reiterada denúncia da falta de ascendência, da falta de transmissão de uma educação efetiva. O monstro pede um lugar e pede para ser amado, é por ter esses direitos negados, dos quais ele se julga merecedor, pois não pediu para nascer, que se torna malvado.
Mas o que a criatura pede a Dr. Victor? Sem nome para se fazer valer, em outras palavras, sem origem ou, ainda, sem um passado para reivindicar, o monstro é um sujeito pós-revolução francesa. Filho da ciência nascente, ele é mais um herói do individualismo, afinal ele é único e ilhado, não tem pares, é inédito, desenraizado e intelectualmente muito lúcido.
As interpretações em que lançamos a ideia do duplo são onde o drama se desenvolve quando a um aspecto da personalidade não é permitido aceder à consciência do sujeito. É a cisão da personalidade que cria o duplo, ou seja, uma parte não quer saber da outra, o duplo é o outro de si mesmo. Como no caso clássico de Dr. Jekyll e seu duplo, o monstro Mr. Hyde, o qual, como diz seu nome, é a encarnação da face escondida do médico. Ou ainda como temos em Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray onde apenas no retrato a face narcisista da personagem envelhece. O que ele não suporta da alteração que o tempo faz a seu corpo está jogado para fora, não é reconhecido. Essa questão de uma suposta cisão da personalidade não é o aspecto mais relevante em Frankenstein, embora de fato caiba ao seu monstro o trabalho sujo do mal. Entender o monstro como a parte recalcada de uma suposta agressividade homicida, ou a personificação da sua melancolia renitente, ou ainda uma tendência antissocial é uma possibilidade, embora não abarque todo o sentido da obra.
A nosso ver, o aspecto central de Frankenstein é a procura por um pai, no sentido de alguém que forneça um lugar na sociedade e na genealogia, pois justamente estava-se em um momento histórico em que o lugar de onde provem a autoridade paterna sofria profundas mudanças. Na época do nascimento desse mito, início do século XIX, a Europa assiste ainda aos desdobramentos imediatos das revoluções industrial e francesa, à queda de várias monarquias, enquanto a autoridade da igreja começa a sofrer fissuras. Além disso, a autora, Mary Woollstonecraft Godwin Shelley, é filha de dois importantes pensadores dessa época, sendo que sua mãe, falecida em consequência de seu nascimento, foi uma das primeira feministas da história. Educada por seu pai com uma liberalidade inédita para seu tempo, sem uma mãe para identificar-se, a jovem escritora tinha todos os motivos para compreender os sofrimentos de uma criatura ímpar, inédita e sem referências palpáveis no mundo em que vivia.
Ora, o pai, ou melhor, sua função na estruturação de cada indivíduo, também é marcado por isso. Em um tempo de tantos rompimentos, apenas ser filho de alguém já não possui o sentido de antes. O sujeito da modernidade não se faz mais pelo nascimento, por quem seria seu pai, mas pela sua trajetória, pelas suas escolhas, pelo que ele consegue fazer de sua vida. Somente no seguinte sentido poderíamos compreender pai e filho como duplos um do outro: irmanados no desamparo, eles se repetem no sofrimento do pai que se sente órfão do próprio pai, do filho que acredita ter um pai insuficiente, no desencontro entre o desejo e a realidade que caracteriza a função paterna.
Há uma lição que é repetida inúmeras vezes nos mitos: um homem não pode fazer o que é atributo dos deuses. Criar um ser do nada, fazer algo vivo da matéria inanimada ou ressuscitar mortos é atributo divino, se os homens assim procederem, com certeza farão isso de modo imperfeito e seus resultados serão monstruosos e se voltarão contra o criador. Temos com Frankenstein uma versão agora científica deste mito de criar ou prolongar a vida. Frankenstein é o mito da onipotência da ciência, transposta para uma suposta onipotência paterna. É o fracasso atribuido àqueles que hoje responsabilizamos por apontar a direção que devemos tomar. Em seu encalço caminharemos até o Polo Norte.

Aventuras na vida privada de uma incrível família de super-heróis

(o capítulo IV do nosso “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia” chama-se “Uma família amorosa”, abordando várias histórias familiares já classicas da cultura pop: A Família Addams, Os Simpsons, De Volta para o Futuro e Os Incríveis. Reproduzimos aqui o trecho relativo à incrível família de super heróis, que trouxe para o cinema, para a cultura infantil e para nossas vidas a intimidade destes personagens, antes mesmo de que o filão virasse febre. A continuação das aventuras dessa simpática e conflitiva família é ocasião para retomar essas reflexões)

Os Incríveis: Uma família que vence unida

Um menino e uma menina, irmãos envolvidos em uma aventura na qual acabam de escapar de um ataque inimigo, travam o seguinte diálogo: a mais velha diz ao menino – “eles estão em perigo”; – “nossos pais?” pergunta ele; – “não, pior, o casamento deles!”. Essas falas são do filme infantil de animação Os Incríveis (2004, direção Brad Bird, um dos envolvidos na criação dos Simpsons), no qual uma família é levada a uma missão de resgate uns dos outros, do valor do pai e do amor do casal.
Essa história poderia ser considerada uma boa revanche, um antídoto contra todos os pais inúteis, principalmente se comparados com seus filhos geniais. Embora pais idiotas cheguem a ser amados, no final das contas, como é o caso de Homer, não há esperanças de que ele possa algum dia valer alguma coisa. Nesse caso trata-se de um filme infantil com toques de humor, porém sem nenhum sarcasmo, e temos uma família onde todos os membros são dotados de poderes, principalmente o pai. O chefe dessa família é um expoente, até mesmo entre os super-heróis, graças à sua força imensurável, por isso seu nome: Incrível. O resto da família tampouco é, digamos, “normal”: a esposa, também uma super-heroína, é a Mulher Elástico. Os filhos nasceram poderosos, cada um com um dom diferente que os habilitaria para o combate ao mal. Parece um ótimo ponto de partida, afinal, que mal poderia afetar uma família tão abençoada pela “genética”?
O drama se origina porque temos, mais uma vez, como no caso dos monstros, uma família estranha ao modo de ser dominante, e com suas inevitáveis dificuldades de adaptar-se a ele, além de serem discriminados por uma sociedade que lhes é hostil. Enquanto parecia compreensível que os membros das famílias monstruosas não encontrassem aceitação social, fica difícil entender por que isso afetaria àqueles que seriam o retrato de nossos melhores sonhos: bonitos, poderosos, invencíveis e ainda admirados por todos graças a seus feitos heróicos. Certamente, Incrível e a Mulher Elástico ao se casarem só podiam prever um destino de glória.
Mas o mundo é mesmo complicado, e Incrível é processado por um homem a quem salvou, privando-o de se suicidar. Ele é julgado culpado, dando origem a uma onda de processos nos quais aqueles que haviam sido salvos se queixam de terem sido prejudicados pela brutalidade dos super-heróis e exigem indenizações. Junto com o restante dos super-heróis, ele entra em um programa de proteção do governo, no qual abre mão do uso de seus poderes e passa a viver oculto, restrito a uma identidade secreta, providenciada como forma de protegê-lo.
A obsessão jurídica da sociedade americana aparece como o vilão que amarrou as mãos até dos seus heróis. Trata-se justamente de uma consequência indesejável do controle social sobre todo aquele que possui responsabilidade sobre os outros. Embora ainda convivamos com abusos de todo tipo e com uma corrupção endêmica, as democracias se instalam em uma base de saudável desconfiança sobre toda instância de poder. Hipoteticamente, governantes, administradores, empresários, cientistas, policiais, juristas, jornalistas e profissionais de saúde, assim como os pais e professores encontram-se submetidos à estrita vigilância por parte de várias instâncias, governamentais ou civis, que podem vir a julgar a procedência de seus atos, se são benéficos ou prejudiciais àqueles que dizem atender ou cuidar.
Não poucos excessos foram evitados ou punidos graças a essa vigilância social, mas ela tem, como tudo, sua face problemática. Algumas obras de ficção têm abordado o tema desse controle incidindo justamente sobre aqueles que, em uma visão simplista, seriam os bons. A mesma vertente dessa trama sobre heróis aposentados pelo controle da sociedade, foi precedida por um clássico das histórias em quadrinhos: Watchmen, uma série lançada em 1983 (de Alan Moore e David Gobbons). Nesses quadrinhos, após uma revolta da população contra esses vigilantes, acusados de atuar acima da lei, a maior parte deles abandona suas atividades. Há uma frase, que é uma espécie de mote dessa obra, que traduz muito bem a problemática que abalou a vida dos Incríveis e dos super-heróis dessa história em quadrinhos: “quem vigia os vigilantes?” Na mesma linha, temos o Homem Aranha (de Stan Lee e Steve Ditko, criada em 1962), o qual é um super-herói que vive tendo que fazer escolhas dolorosas para minimizar os danos infringidos pelos seus inimigos em seus seres queridos. Um dos precursores dos heróis angustiados e sofridos das histórias em quadrinhos, Peter Parker, o Homem Aranha, é consciente de que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Essa é uma de suas frases e a consciência disso faz de seus poderes um peso difícil de carregar.
Mesmo aqueles que julgam estar salvando, beneficiando aos que correm perigo, não estão isentos de serem julgados, condenados e tornados inúteis pelo imenso coro dos queixosos. Parece não há mais lugar para homens enormes e protetores, que tomem as atitudes que lhes pareçam necessárias para proteger os mais fracos. O que são os super-heróis senão a recordação infantil do pai de uma criança pequena, esse herói forte e atento, que a levantará em seus braços no momento em que estava prestes a cair ou ser esmagada?
A novidade de nossos tempos é que o controle social impõe também vigilância sobre os poderes dos pais. Com medo de errar, eles optam por gestos medidos ou ausentes, já que qualquer atitude poderá ser considerada um abuso, causadora de perigosíssimos traumas e inibições nos filhos. Nesse clima de desconfiança, as escolas sempre julgam mal os pais de seus alunos, assim como as famílias têm uma postura constantemente acusadora e insatisfeita frente às instituições em que seus filhos estudam. Ninguém se sente habilitado a se responsabilizar, serão considerados incapazes principalmente aqueles que fizerem parte da vida familiar, melhor deixar as crianças aos cuidados dos profissionais: professores, psicólogos, autores de livros de autoajuda para pais. Sob risco de serem julgados prejudiciais e danosos, os pais se minimizam. Lasch observou: “A indústria da saúde assumiu a maior parte da responsabilidade pela criação dos filhos, deixando ao mesmo tempo a maior parte da culpa aos pais”.
Em sua identidade secreta o Sr. Incrível vê-se obrigado a levar uma vida civil medíocre, ocultando seus poderes e abstendo-se dos feitos heróicos que fizeram sua glória no passado. O trabalho que lhe conseguem é de funcionário de uma companhia de seguros. Assim como a função de Homer Simpson é de supervisor de segurança de uma usina nuclear, o que é uma piada frente à sua total incapacidade de zelar pela integridade de qualquer coisa, o trabalho do Sr. Incrível é também uma metáfora eloquente. Ele é pago para fazer parte de um sistema de tortura burocrática, conduzida de tal forma que os beneficiários não recebam o que a apólice prometia. Para ele isto é mais que absurdo, pois o mesmo sistema legalista que o condenou ao ostracismo obriga-o a tornar-se agente dessa engrenagem perversa. A alma boa do super-herói nega-se a isso e acaba sendo despedido.
Na banalidade da vida do Sr. Incrível, o quadro da depressão se aprofunda. Ele torna-se um homem triste, alienado em um cotidiano insignificante, em um trabalho burocrático e aviltante. Em família é um pai distante, comporta-se como se seus filhos valessem tão pouco como ele mesmo, já que são obrigados a viver escondendo os poderes com que nasceram. Violeta, a mais velha, é uma adolescente capaz de ficar invisível e de criar um escudo de segurança; Flecha é um garoto absurdamente veloz; enquanto do bebê da família não se sabem os poderes ainda, e existe a suspeita que ele teria nascido sem dons. Ao longo do filme descobrimos que o pequeno é um diabinho, que pode assumir várias formas, como um monstrinho, ou virar uma chama, atravessar paredes, voar, enfim, revela-se um bebezinho bem difícil de cuidar. A Mulher Elástico faz apelos ao marido, procurando interessá-lo um pouco pela vida doméstica, os quais ele evita, refugiando-se em um quarto onde guarda seu velho uniforme e as lembranças dos dias de heroísmo.
Evidentemente que ele sonha com a volta do seu prestígio e surge um convite para um novo trabalho que parece ser a redenção. Na verdade, essa missão secreta que lhe promete tal perspectiva, o leva diretamente para dentro de uma cilada armada por um antigo desafeto. Em um primeiro momento, quando o novo emprego parece um sonho de retorno aos velhos e bons tempos, Incrível emagrece, fica feliz, é atencioso com os filhos e mostra-se apaixonado pela esposa. Estava de volta ao que ele gostava de ser, só que nada revela à sua família sobre a missão, e omite o fato de ter sido despedido. A Mulher Elástico desconfia que ele lhe esconde algo, só que suspeita que ele a esteja traindo e parte para a investigação. Aquela que parecia ser uma crise conjugal acaba sendo uma aventura de resgate do amor do casal, da vida do marido, e do orgulho de todos os membros da família que acabam reconciliando-se com os dons que possuíam, uma vez que esses voltam a ser valorizados.
As crianças embarcam clandestinamente no avião onde a Sra. Incrível partiu para uma ilha, onde supunha que encontraria seu marido envolvido em uma aventura extraconjugal. A dona do fio de cabelo loiro que ela encontrou na roupa do marido é, na verdade, a secretária do inimigo, e é ele que constitui o verdadeiro perigo a enfrentar. Quando jovem, o vilão que agora ameaça a vida de seu marido, atendia pelo nome de Gurincrível, era um antigo fã que se julgou desprezado pelo seu herói. Em mais um caso de genialidade infantil, ele tornou-se o dono e criador da paradisíaca ilha onde Incrível é chamado para a missão-cilada. Gurincrível enriqueceu criando e vendendo armas, porém, apesar do sucesso, sua obsessão era provar que com suas invenções poderia tornar todos os super-heróis obsoletos. Para tanto, construiu um robô capaz de possuir todos os poderes, que só ele, rebatizado com o nome de Síndrome, pudesse controlar. Sua ideia é que alguém que não nasceu com poderes, teria condições de se sobrepor aos agraciados com essa benção, pelo uso da tecnologia que sua inteligência pudesse criar.
O inimigo era na verdade um serial killer de heróis aposentados. Ele foi matando sucessivamente todos os que descobrira na clandestinidade e copiava seus poderes para incorporá-los ao seu robô. Síndrome, o nome de super-herói que ele escolheu não deixa de ser eloquente: sugere uma espécie de insanidade em sua obsessão, assim como que ele é composto de um conjunto de poderes que se somam para formar um herói, como uma síndrome é a soma de sintomas que constituem uma doença. Em sua cruzada anti-heróis, seu antigo ídolo, o Sr. Incrível era a cereja do bolo, o mais importante e difícil de superar, mas não bastava apenas absorver seus poderes, também era fundamental exibir para ele a pujança de suas conquistas tecnológicas. Espécie de filho bastardo imaginário, Síndrome precisava fazer o Sr. Incrível pagar muito caro por não tê-lo reconhecido como ajudante, discípulo e admirador.
Síndrome é mais um dos queixosos que imobilizaram o herói, só que não basta desvalorizá-lo, ele quer também a vingança, quer ver sua morte e a superação dos seus poderes. Uma das particularidades do filme é reservar um lugar de grande importância para o prestígio do pai, por isso Síndrome não se conforma com relegar seu herói ao ostracismo, deixá-lo entregue à tristeza de ser uma personagem do passado. Esse admirador desde criança precisa medir forças com o Sr. Incrível para mensurar seu próprio valor. Para tanto, não lhe serve um herói derrotado, fora de forma, deprimido. Não por acaso lhe proporciona o emprego que o faz recuperar a autoestima perdida, arranca-o do cotidiano tedioso, devolve-lhe o prestígio e somente depois disso é que vai combatê-lo.
Aparentemente contraditória, a postura dessa espécie de filho imaginário do pai-herói é a de todos nós, que precisamos que haja algum tipo de figura paterna que nos infunda respeito para tentar enfrentá-la e superá-la. Para ser alguém não basta ser amado, como se espera que as mães façam, é necessário um pai que nos desafie a ser mais que isso. É ele que nos instiga a fazer-nos valer no mundo exterior ao lar, longe dos olhos da mãe. Ele é alguém em quem se inspirar e a quem se contrapor, para melhor poder identificar-se. Quando saímos das entranhas, dos braços, do aconchego do olhar materno, é ele que nos aguarda do lado de fora. Na verdade, ele também está à espera da mulher, de que se rompa a bolha formada em torno da mãe e seu bebê, para que ele possa entrar, e com ele o resto do mundo.
Como representante de uma figura paterna admirável, Incrível foi vencido por reivindicações que estavam além das suas forças. Gurincrível fantasiava tornar-se seu “sócio”, mas atrapalhava nas missões colocando-se em risco com as engenhocas que inventava. O importante para ele era ser valorizado pelo seu herói. A função clássica do super-herói, de ser forte e ágil suficiente para evitar o mal, passa a ser pouco frente à tarefa de administrar outros dilemas, como o do menino que exige atenção, o suicida que acredita que a morte é uma escolha, um ato ao qual ele tem direito. Essas duas situações, pelas quais nosso super-herói paga tão caro, revelam a complexidade do que é exigido dos pais: dilemas morais, éticos, reivindicações amorosas e o difícil trâmite de ajudar um filho a construir uma identidade fazem parte dessa missão impossível.
O tema do suicídio, em particular, é tocante, pois cabe a um pai zelar pela vida do filho inculcando-lhe que ela é um bem maior, um compromisso com todos os outros conectados com ele. Um suicida lida com sua existência como se fosse um bem que só a ele compete, e com o qual pode dispor como bem lhe aprouver. Entre as múltiplas causas que levam alguém a se matar, algumas dizem respeito à incapacidade de suportar a dor de seguir vivendo, mas há algo mais: o suicida é o único que fica realmente com a última palavra. Esse ato, forma terminal de autonomia, é uma maneira radical de libertar-se de todo tipo de dependência: não será objeto do amor de ninguém, nem obra da vida de outrem, será obra acabada de sua própria determinação. A autoridade paterna impõe, a princípio, o dever da vida aos filhos. Um pai deve proibir que o filho se mate, nos disse certa vez um amigo psicanalista. Por isso, o pai desta família é um salvador de vidas e tem entre seus inimigos um suicida (aquele que o processou por ter sido impedido de se matar). Esse, expressão de uma vida que não reconhece a dívida de existir, foi mais efetivo em imobilizá-lo que o gênio, filho queixoso, que se crê bastardo do super-herói, mas que de alguma forma o enaltece como pai.
A Sra. Incrível era, antes de ser uma simples dona de casa, a Mulher Elástico, em uma simpática metáfora dos inúmeros papéis e tarefas aos quais precisa dedicar-se uma mulher contemporânea. Ela fora uma heroína muito posicionada e feminista, mas a vida civil lhe negou qualquer pretensão: passou a limpar, cozinhar e cuidar de filhos como uma dona de casa sem nenhum valor público. Na verdade, na intimidade atribulada dessa mãe heroica, é preciso ter muita força para criar filhos poderosos, pois os seus são capazes de meter-se em confusões bem maiores do que as crianças normais. Flecha é rápido e eficiente para fazer tumulto; Violeta é muito conflitada, já que toma ao pé da letra esse problema que as adolescentes têm de sentirem-se invisíveis; enquanto o bebê, como qualquer um de sua espécie, exige de sua mãe que seja uma mulher muito “elástica”.
Além disso, para preservar a identidade secreta, essa família é obrigada a mudar-se o tempo todo, fugindo de contratempos criados pela existência dos poderes e pelas dificuldades de adaptação, principalmente por parte do chefe da família. Porém, ao contrário do marido, ela parece mais forte, dedicando à família a mesma perseverança e coragem dos tempos de combate ao mal. Mais uma vez, embora a tarefa de cuidar e conduzir uma família seja penosa, de tal modo que os pais sentem-se insuficientes para ser exitosos nela, as mulheres parecem menos frágeis e mais à vontade do que seus parceiros, como nas histórias que analisamos anteriormente.
Talvez a força dessa heroína nos elucide mais uma das razões do melhor prestígio das mães do que dos pais nessas famílias tão criticáveis da ficção infanto-juvenil e do humor para todas as idades. Para um pai, o valor dentro de casa depende mais do prestígio público do que da dedicação doméstica. A ele cabe a função de orgulhar-se, ou até de envergonhar-se de si e dos seus perante o mundo, intermediando a relação entre os espaços público e privado. É claro que as mães também participam da disputa de prestígio entre seus rebentos e os filhos das outras, mas é próprio da maternidade o fato de que ela amará seu filho como a si mesma, pois ambos se confundem no princípio, por isso diz-se que o amor de mãe é cego e infalível. Já o vínculo entre pai e filhos é uma conquista de ambos os lados, já que eles não partem da premissa simbiótica da gestação, da amamentação e de toda a fusão que os cuidados maternos primários impõem às mães e seus bebês.
É preciso que o pai e seus filhos se reconheçam em seus papéis, que se valorizem enquanto tal, assim como é necessário que a mãe seja intermediária desse encontro, atribuindo a ambos os lados a legitimidade que merecem. A Sra. Incrível sabia quão elástica teria que ser para garantir o funcionamento de uma família composta de gente tão estranha, administrando segredos e enormes forças que precisavam ser contidas, mantendo em pé os ânimos sempre abalados de seus heróis clandestinos. Ela não ignorava que sua vida privada já era uma missão de árduo desempenho. “Retraída pelas debilidades de um sujeito em sofrimento, (a família) foi sendo cada vez mais dessacralizada, embora permaneça, paradoxalmente, a instituição humana mais sólida da sociedade. À família autoritária de outrora, triunfal ou melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande fratura a psicanálise tentará assumir durante todo o século XX.” Tais são os desafios que requerem tanta elasticidade por parte da mãe desta e de todas as famílias.
Os filhos também viviam nessa berlinda de não poder valer nada fora de casa, Flecha era proibido de fazer esportes, para que sua velocidade não se tornasse visível e Violeta havia transformado seu poder de invisibilidade em um expediente para não ser vista pelo garoto que amava. Na vida pública, os membros daquela família estavam longe de ser “incríveis” e eles só pareciam ter valor, quando muito, aos olhos da mamãe.

No final vence o amor

O amor materno, com seu afeto inquestionável, parece ter conservado melhor prestígio do que o reconhecimento paterno do valor de um filho. Ser escolhido pelo pai como legítimo herdeiro, o que se dá quando este reconhece seus traços, valores ou gestos no filho, é algo que se desvalorizou junto com as genealogias. Cada indivíduo pretende-se uma obra inédita e acabada, quando na verdade somos apenas parte de um processo. Ainda que nos tornemos protagonistas importantes em nosso momento histórico, papel reservado para poucos, somos fatos passageiros no contexto de uma história maior. Hoje, cada ser humano gosta de imaginar-se autogerado em seus dons, e o que herda da família costuma ser mais um problema do que uma solução. No processo de individualizar-se, pensar-se como elo de uma trajetória familiar que nos precede e continua, pode ser pensado como um fardo, um peso do qual é melhor aliviar-se.
Aos olhos da mãe enamorada da primeira infância, um filho é uma projeção da perfeição que ela deseja para si mesma. Para ele, basta ter nascido; para ela, basta sabê-lo dela. É mais fácil acomodar-se a esse afeto, embora pareça alienante, que nos ama simplesmente por existir, do que entrar em uma disputa com todos os outros seres humanos, os quais também são, ou almejam ser, um tesouro para suas mães. O amor materno, portanto, é um refúgio muito especial, já que nega a importância de fazer algo para provar a que se veio, importante mesmo, para ela é que o filho chegou quando ela o convocou. Obviamente, essa satisfação da mãe com o filho cobra seu preço, pois ele nunca consegue ser tudo e que ela espera dele, mas sempre tenta. A valorização das mães, ou o fato delas terem sido poupadas das duras críticas que se destinam ao pai, pode provir da exaltação desse tipo de vínculo, onde o laço amoroso prevalece sobre a identificação, que é o tipo preferencial de ligação que se faz ao pai.
Contentar-se com a satisfação materna é uma cilada, como a que se meteu o pai desta família. Para o Sr. Incrível, tão charmoso, musculoso e bem-sucedido, bastava usar os dons com os quais nasceu, até que sua força deixou de agradar o público. Àqueles a quem ele salvava, só restava agradecer-lhe e admirá-lo, afinal, não eram poucos os que lhe deviam a vida. A chegada do herói em uma situação de perigo era sempre triunfal e na sua partida sempre era acompanhado pela glória.
“Restou aos indivíduos a identidade amorosa, derradeiro abrigo em um mundo pobre em Ideais de Eu.” “O indivíduo contemporâneo perdeu os suportes tradicionais de doação de identidade e é levado a se redescrever constantemente para se reassegurar do que, em si, é digno de inclusão na imagem do eu (Solomon, 1994, p. 199-208). Essa insegurança constitutiva da subjetividade moderna encontra no amor um lugar de repouso. Na relação amorosa, mais do que em qualquer outra, ganhamos um tipo de certeza que pacifica a inquietude da reconstrução de si sem garantia de amanhã.” Estas palavras, escritas pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, permitem-nos compreender as circunstâncias nas quais aposta-se no vínculo amoroso como forma de constituição e manutenção dos nossos parâmetros, álibis e formas de sustentação pessoal.
É por isso que, como referíamos anteriormente, os irmãos parecem mais preocupados com a manutenção do amor dos pais do que com a sobrevivência dos membros da família. A questão é que uma decorre da outra: enquanto o casal permanecer vinculado, desejando-se e admirando-se mutuamente, é possível que todo o grupo familiar possua algum valor. Hoje os filhos não são resultado de uma imposição ou convenção social, são fruto de uma fantasia amorosa, na qual representam uma aposta de um casal em sua perpetuação. Uma vez falido o projeto amoroso dos pais, será necessário que eles encontrem na relação com cada um o sentido de sua continuidade enquanto resultantes de um sonho abandonado. O amor materno, em sua capacidade de buscar respostas na relação com um objeto amoroso, o filho, é o que melhor se presta para dar forma ao que compreendemos como amor, fonte das poucas certezas que ainda podemos tentar coletar.
Em resumo, a vida privada era insuficiente para que essa família de heróis deixasse de sentir-se mais uma família monstro. A luta entre Síndrome e Incrível, a retomada do amor do casal no contexto dessa aventura, aponta para a necessidade de que o reconhecimento, e a constituição da identidade transcendam os limites da escolha amorosa.
O olhar condescendente de Margie não faz de Homer um herói, tampouco a memória da Mulher Elástico, dos tempos de glória do casal, é suficiente para que os filhos sintam-se orgulhosos de seus poderes. O amor encontra, nos dias de hoje, seu grande desafio e também seu limite. Transformando as palavras do Homem-Aranha, poderíamos dizer que “com grandes amores vêm também grandes responsabilidades”, e as relações sofrem com esse fardo.
Muitas separações e sofrimentos amorosos provêm das enormes expectativas que se depositam sobre esse vínculo que, infelizmente, não pode dar mais do que ele é: uma escolha de dois indivíduos para serem, entre si, o olhar privilegiado de quem se espera obter o valor que nem sempre os outros estão dispostos a lhes atribuir. O desejo sexual, assim como a fidelidade e o companheirismo, são o tanto que se exige que os amores possam prover. Não é difícil de compreender por que convivemos com tanta insatisfação, busca e fantasias sobre o que o amor pode nos oferecer. Ser sexualmente desejado, nesse contexto, funciona como prova física da importância que podemos ter para o próximo. Pode não ser durável, mas é forte o efeito de ser considerados objeto de satisfação de alguém.
Quer seja através de renovadas e incansáveis fantasias românticas, ou mesmo como resultado de intensos e inquietos anseios sexuais, para as muitas perguntas que nos fazemos o amor parece sempre uma potencial resposta. Não admira, portanto, que Flecha e Violeta tenham se lançado na missão de resgate do amor entre seus pais; nesse quesito as crianças são sábias.

A sociedade como um pai onipresente

Como se pode observar, o pai tal como representado nas histórias para crianças e adolescentes já não é o mesmo: a admiração por ele cai a níveis muito baixos, mas não o amor. Existe uma queixa tênue, mas ele sempre é perdoado, compreendido, aceito e resgatado das confusões em que se mete, mesmo depois de seus reiterados fracassos. Sua antiga função, de ser uma bússola moral e um exemplo a ser seguido, já não funciona. Os filhos se habituaram a seguir com ele ao lado e não na frente, mas que consequências isso traz? Em um raciocínio rápido podemos pensar em uma sociedade menos opressiva, afinal, o tirano não está mais presente a agora nos vinculamos de forma direta e não idealizada com um pai que sabemos que é de carne e osso.
Mas quem observar com cuidado nossa sociedade contemporânea pode não encontrar uma mudança tão significativa assim. As exigências sociais de rendimento escolar, com a competição por notas e prestígio já começando no jardim de infância, a demanda por ser esportista e ostentar um corpo saudável, magro e bem vestido, a obsessão pelo sucesso revelam uma sociedade extremamente exigente e impiedosa com quem sai da norma, ou melhor, da forma. Trata-se de uma sociedade superegoica, cruel com os ditos fracassados. Aliás, o exército dos que se consideram fracassados é cada vez maior, à medida que mais inclementes tornam-se os parâmetros de silhueta, popularidade, desempenho esportivo e sexual, posse de objetos e outros atributos dignos de serem exibidos. Sentir-se marginal em relação a um padrão dominante de comportamento é hoje um sentimento democraticamente muito bem distribuído, todo mundo tem ou teve direito a seu quinhão.
Porém, mesmo que amado e perdoado, como Homer e o Sr. Incrível, o pai contemporâneo é alvo de incessantes críticas: ele não impõe limites e é acusado de todos os problemas de comportamento de seus filhos, dos quais as escolas e instituições tanto se queixam; seria fraco, relapso, hedonista e os deixa sem parâmetros, pois se exime de ou simplesmente ignora como educá-los. Ele próprio compara-se com o próprio pai, considera-se menos poderoso e acusa seus filhos de serem sem qualidades porque ele não lhes exigiu tanto quanto supostamente o avô deles fazia com ele. Os defeitos de seus filhos são contabilizados pelos pais de hoje na conta de perda de sua autoridade e poder, porém eles não têm a mínima intenção de encarnar o papel do patriarca, nem saberiam como fazê-lo e sentem-se sempre incômodos quando se veem obrigados ao exercício de qualquer tipo de severidade, que já não lhes parece natural.
Philippe Julien nos lembra que essa figura, hoje mítica, do pai como soberano e criador, figura idealizada por aqueles que são pais, como fosse algo que eles deviam ter sido, corresponde a um desejo de cada filho de responsabilizar outro alguém pelo que se é, afinal, precisamos culpar alguém pela nossa imperfeição. Ele se refere ao “pai mítico”, que é “a imagem do pai como soberano, isto é, correspondente ao desejo da criança. […] A esse pai criador tem-se, sem dúvida, muitas críticas a fazer, por não ter realizado tudo, tudo o que poderia fazer, se ele o quisesse”.
Convém lembrar que é mais comum que as coisas mudem de lugar do que desapareçam, o famoso “nada se perde, tudo se transforma”. Assim ocorre com a figura do pai que nos cobra nada menos do que a perfeição, parâmetro imaginário com o qual precisamos nos medir, para motivar-nos a querer viver e ser mais do que conseguimos até então. Nessa fantasia do que deveria ser um pai de verdade, alguém poderoso a ponto de fazer-nos perfeitos, à semelhança de suas expectativas superlativas, coisa que nenhum homem consegue encarnar, vê-se o jogo de empurra-empurra do ideal e da cobrança, mediante a qual, ninguém está à altura do seu papel, nem de pai, nem de filho.
Constatamos o deslocamento de exigências que outrora eram atribuídas ao pai para um lugar maior. Boa metáfora para entender esse movimento, pode ser encontrada em um dos episódios do filme Contos de Nova York, de 1989, dirigido por Woody Allen. Essa história trata de um homem que tinha uma mãe tão opressiva, que não o deixava viver. Certo dia, para sua felicidade, ela magicamente some de sua vida. Porém, após um breve alívio, ela reaparece, só que agora ela já não é mais de carne e osso: a mãe transformou-se em uma entidade gigantesca que paira sobre o céu da cidade demandando as mesmas coisas que antes, mas agora é imensa, onipresente e pior, tece seus comentários inadequados em alto e bom som, em pleno firmamento de Nova York, constrangendo o pobre filho acuado frente a todos. Com o pai aconteceu algo análogo: desbancamos o pai que fumava cachimbo na sala, a encarnação do poder doméstico, mas ele reapareceu em todos os lugares exigindo o máximo de nosso desempenho, a eficiência das nossas condutas e o alinhamento militar de nossos corpos.
Não é somente sobre o filho que pesa essa difusa e onipresente exigência de performance, o pai também vive sob sua opressão. Ela se exerce sob a forma da comparação com uma figura paterna improvável: um pai próximo, dedicado à família, priorizando-a sobre todas as coisas, mas que ao mesmo tempo angariasse grande reconhecimento público. Esse pai tem que impor respeito sem ser autoritário, e ainda ser respeitável como um adulto, mas colocar-se próximo do filho como se fosse um amigo, em suma, um verdadeiro homem elástico.
São frequentes os filmes, em geral comédias infanto-juvenis, nos quais um medíocre marido e pai de família tem uma personalidade secreta, na qual é um incrível espião ou super-herói. Essas duas personalidades, a doméstica de pai próximo e abnegado, e a pública, de aventureiro, corajoso e bem-sucedido, são obviamente incompatíveis, por isso se alternam; quando uma aparece ofusca a outra. No entanto, espera-se que cada pai as unifique, e cada homem exige isso de si mesmo ao tornar-se pai. Não surpreende que frente a tal desafio a maior parte dos homens sinta-se aquém, ou, na pior das hipóteses, até desista.
Não bastasse a derrocada de qualquer idealização possível da condição humana, um novo desafio nos espera. Outrora, a dissociação entre a vida privada e a pública produziu muitos descaminhos, muita hipocrisia, mas também algumas facilidades. As mulheres presas entre lençóis, fogões e fofocas podiam até almejar e fantasiar com aventuras no mundo lá fora, mas não precisavam enfrentá-lo. Já os homens podiam ser como um rei em seu lar e tratar a esposa e os filhos como súditos, sem precisar explicar-se pelo que faziam lá fora, enquanto trabalhadores e cidadãos. Além disso, no mundo externo ninguém estava interessado em saber se um homem era bom pai e marido compreensivo, se no lar comportava-se de modo democrático e sensível. Hoje, o pai é, ou deveria ser, reflexo do cidadão e vice-versa. De certa forma, é uma queda das máscaras. Apesar de adorarmos dizer que habitamos um mundo de aparências, acreditamos que não é bem assim. Claro que vivemos para parecer algo, mas hoje não serve o enchimento do paletó, é preciso que o homem tenha músculos por baixo. Quanto à mulher, que podia restringir-se a ser mãe e imaginar-se executiva, intelectual, artista, cientista, e isso não passava de um sonho impossível, hoje tem como desafio a possibilidade de realizar essas fantasias. Frente a isso, passa a pensar que se quiser valer algo dentro de sua família terá também ela que chegar em casa carregando seus louros.
Para os criadores dos Simpsons não há muitas saídas: as inquietudes devem ser afastadas ou abafadas com algum tipo de anestesia mental. Os adultos dessas histórias abusam desses recursos. Há um alinhamento nas posições de pais e filhos, que se comportam como se pudessem ignorar tamanhas e inclementes exigências sociais de performances de sucesso. Comportando-se como a raposa da fábula, que despreza as uvas que não consegue pegar, as diferentes gerações tentam alinhar-se em um posicionamento hedonista, infantil e alienado, como se fosse possível ignorar os rumos que estão sendo tomados pelo mundo em que vivemos e nosso papel nessa condução.
Homer é o mesmo medíocre como pai e como cidadão: tenta ser o mais omisso possível e quando sua intervenção é inevitável, procura livrar-se imediatamente dessa demanda insuportável. A conduta de Lisa, cidadã consciente e crítica, capaz de dedicar-se a uma tarefa de transformação na qual ela acredite, é justamente o contraponto com essa paixão pela alienação de seus pais, do irmão e dos habitantes de Springfield. Por outro lado, essa omissão dos pais e cidadãos por vezes é uma forma de defesa a uma vida pública opressiva, que deixa quase nenhum espaço para a privacidade, que abomina a solidão e confunde reflexão com depressão e timidez. Impossível ter saudade do pai patrão, das casas que pareciam reformatórios, porém, os adultos que precisam tornar-se e manter-se pais parecem ter colado na testa uma mensagem jocosa que pode ser vista em alguns carros: “não me siga, também estou perdido”. Enquanto isso, nas imagens e textos midiáticos, como um firmamento virtual, alguém recita instruções precisas sobre o que se deve ser e parecer, como uma voz paterna. Talvez se trate do grande irmão, diria Orwell.

TODA FAMÍLIA É UMA ILHA (trechos do Capítulo II do livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia)

Em tempos de bem vinda ressurreição do saudoso (para estes autores) seriado “Perdidos no Espaço”, disponibilizamos um trecho do livro “Psicanálise na Terra do Nunca” (Ed. Artmed, 2010) escritos sobre ele. Porque sentimo-nos náufragos, toda família sonha ser uma ilha.

Na intimidade de um casal, ao longo de uma relação, ocorrem inúmeros e mutantes sentimentos de amor e ódio, indiferença e abnegação, tanto entre eles quanto em relação aos filhos que compartilham. Os filhos, por sua vez, também amam e odeiam àqueles que foram tudo para eles no início da vida, resultando em uma pesada carga de sentimentos tão ambíguos quanto fortes. Por isso a família contemporânea é dramática, intensa e complexa, como toda relação baseada no amor.
O hábito de fantasiar com a família que gostaríamos de ter tido, serve também para acusar a nossa pelas insuficiências que possui. É dessa fonte que bebem uma série de fantasias nostálgicas, onde são retratadas famílias de épocas passadas, nas quais encontramos toda a harmonia de que a realidade nos privaria. Provavelmente a crise e a queixa sobre a família é um fenômeno tão antigo quanto a própria família nuclear.
Fenômenos típicos dessa ficção nostálgica são duas famílias isoladas, ilhadas frente a um meio hostil, ambas inspiradas no relato do náufrago Robinson Crusoe (escrito por Daniel Defoe, em1719): são os Robinson Suíços, de um livro de Johan David Wyss, em 1812, e uma família de Robinson futuristas, do seriado americano Perdidos no Espaço, de 1965. Ambas as famílias reproduzem o isolamento e a luta do pioneiro de Defoe, abandonado pela civilização, administrando seus destroços e conhecimentos com perseverança e sabedoria. Na verdade, analisaremos neste ensaio histórias de três famílias ficcionais, a terceira é de um seriado americano muito popular na década de 1970, chamado Os Waltons, cujos episódios variam em torno da vida cotidiana de uma família interiorana da década de 1930. Embora esta jamais tenha se autointitulado uma família “Robinson”, como no caso das anteriores, consideramos que pode ser uma espécie de elo encontrado entre aquelas histórias de náufragos, factualmente isolados e a família nuclear contemporânea. A família dos Waltons era integrada na comunidade, mas fechada enquanto núcleo de resistência afetiva. Essas histórias são fantasias que se alimentam da nossa relação queixosa com a família possível, aquela que realmente constituímos e nos constituiu.

I – A Família Robinson: Robinsons Suiços

Relato de um Náufrago: o primeiro Robinson

A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe, de York, marinheiro: que viveu vinte e oito anos totalmente só em uma ilha não habitada na costa da América, próximo à embocadura do grande rio Orenoco; e que foi lançado à praia em virtude de um naufrágio, em que todos os homens pereceram exceto ele mesmo. Seguido de um relato sobre como ao final foi estranhamente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo. Foi com esse longo nome de batismo que a história de Robinson Crusoe chegou ao público, abrindo novos caminhos para a literatura.
O romance de Daniel Defoe relata em detalhes obsessivos, que ele assegura terem sido extraídos da vida real, a sobrevivência prática do náufrago: como construiu sua moradia, o que ele comia, seu sistema de defesa, caçadas, problemas de saúde, religiosidade. A aventura mesmo, as viradas na história, ficam congeladas por décadas, pois o primeiro evento empolgante é o surgimento de Sexta-feira, companheiro tardio de desventuras. O resgate não chega e tudo depende do protagonista, que sequer é verdadeiramente heroico, pois sua força não lhe traz outra glória além da oportunidade de sobreviver.
A novidade literária de Defoe foi elevar a perseverança humana à condição de destino heroico, assim como de considerar relevantes para o leitor as miudezas e mazelas da vida cotidiana. Crusoe narrou o ato de comer, dormir, sua higiene e cuidados de saúde. Definitivamente, revelou-se possível fabricar um mito com material prosaico, uma história tão simples que conquistou inusitada popularidade e rivalizou com os relatos mágicos e fantásticos, cheios de atos de bravura, paixões ou traição, das narrativas míticas ou folclóricas até aquela data. O homem só e sua determinação conquistaram seu lugar na arte, como o náufrago fez com sua ilha, por isso Crusoe é considerado por certos autores como primeiro herói do romance moderno e do individualismo.
Tenhamos ou não frequentado as páginas de Defoe, todos conhecemos essa história. Ela provavelmente se confunde com todas suas versões e a obra dilui-se em corruptelas, citações e adaptações infanto-juvenis. Hoje não é improvável que a narrativa de Defoe se misture com imagem de Tom Hanks e sua bola de basquete, na versão cinematográfica de Náufrago. Histórias oportunas sempre se afastam de sua versão original e geram uma rede imaginária que as amplia e esparge.

A família Stark

Um século depois, Johann David Wyss, um pastor suíço, criou uma história para distrair e instruir seus quatro filhos. Era uma adaptação da história de Crusoe, na qual uma família assumia o papel do náufrago. Fora essa modificação, o relato dos Robinson Suíços repete a fórmula da personagem de Defoe, na narrativa de cada detalhe da organização da vida na ilha. A história familiar foi tornada livro vários anos depois, quando um destes meninos, Johann Rudolf Wyss, já homem, concluiu e editou o manuscrito inacabado do pai. Dali em diante, vários tradutores foram ampliando e adaptando essa história para diversos públicos, incluindo uma versão cinematográfica dos estúdios Disney.
Esta história acabou sendo a soma de todas as suas versões, por isso convém tratá-la como um mito que se recria, adapta e transforma mantendo um núcleo comum, um cerne, uma essência que o torna reconhecível. A história da família suíça que naufraga em uma ilha tropical e de como eles se organizam para sobreviver, possui pouca ou nenhuma relevância em função de seu estilo literário, ao contrário da obra de Defoe, que lança a pedra fundamental de uma tendência ficcional. Considerado literatura infanto-juvenil, o texto é fraco, mesmo porque entre tantas versões ele quase se perde. Importante mesmo é a fórmula que inventa: a colocação de um grupo familiar restrito, composto apenas pelos pais e filhos, na condição de náufragos solitários, a vitória dessa família isolada do mundo sobre os revezes da natureza, ou seja, agora a família é a personagem principal. Se a partir da obra de Defoe podíamos pensar na metáfora de que todo homem é uma ilha, a partir do relato de Johann Wyss consideramos que toda família também o é.
Não se trata de um isolamento possível, mas sim fantasiado, como parte de um voto de autonomia, tão caro à sociedade que se desenvolveu a partir dos tempos modernos. Essa fantasia só tornou-se possível à medida que se rompeu com a univocidade com que a tradição fazia o homem: dificilmente, em tempos antigos ou medievais, alguém buscaria um destino que rompesse com seus antepassados ou transcendesse sua cultura de origem.
O ideal do self made man, que acredita ter vencido sozinho, apesar de suas origens, como se fosse possível partir de lugar nenhum, é uma marca do individualismo triunfante. Não há como negar: ilhar-se é impossível, todos temos ponto de origem, assim como nosso destino é ligado ao de todos. Porém, prezamos acima de tudo a fantasia de pensar-nos isolados, senhores de nossas escolhas, independentes de um meio que poderíamos domesticar para nosso uso, embora nos seja hostil.
O livro do filho do pastor Wyss é também um libelo pedagógico (em seus ideais, comparável a Emile, de 1762, de Rousseau), é o relato ficcional de uma experiência de formação. O naufrágio retira as crianças do contexto social e as coloca em contato com a natureza e as exigências de lidar com os desafios práticos de uma vida mais rudimentar. Orientadas pela figura de um pai-tutor compreensivo e culto, elas poderão desenvolver suas capacidades naturais, longe das deformações da sociedade e suas dubiedades morais. O isolamento da família, assim como a forte presença das reflexões teológico-pedagógicas do pai, oportunizam o diálogo entre o pupilo que desabrocha e a figura paterna que o auxilia a elaborar experiências, transformando-as em lições.
A experiência da paternidade é uma gestão cada vez mais socialmente controlada: partindo do poder quase absoluto que já teve, onde a autoridade paterna podia equivaler à lei em diversas situações, encaminhamo-nos para a realidade contemporânea, na qual não somente o pai precisa de reconhecimento legal para sê-lo, como ainda é vigiado pelo estado, pelos profissionais de saúde e educação, assim como criticado pelas mulheres. Nesse contexto, o sonho do pastor Wyss, de um pai livre dessa pressão social para incumbir-se da condução dos filhos, não soa estranho. Embora datado do início do Século XIX, trata-se de um pai contemporâneo, pois se ocupa pessoalmente da educação dos filhos, enquanto retém a liberdade do pai do passado, já que a vigilância externa fica suprimida pelo isolamento dos náufragos. Essa é outra característica que serve de estímulo a essa fantasia de família insular: a volta da autonomia dos pais, hoje tão criticados e vigiados por todos.
Do livro original, com suas enfadonhas lições de otimismo protestante, como resultado de um lento e contínuo processo de transformação, os tradutores foram inclinando a história para um relato mais pragmático de aventuras, nas quais a ênfase acabou colocada no contraponto entre a adversidade do meio e a eficiência do grupo familiar para enfrentá-las. O enfoque original na força da fé e nos ensinamentos paternos foi dando lugar a outra aposta: na família enquanto grupo de referência e abrigo, equipe vencedora no combate contra a natureza selvagem. Versões posteriores incluíram até homens maus, como os piratas, cuja presença ameaçadora servia para realçar a integridade moral dos Stark (que era o nome de família dos Robinson Suíços).
A liberdade tomada por múltiplos tradutores, adaptadores e diretores de cinema para transformar essa história ao seu bel prazer é surpreendente. É isso o que empresta a essa trama a característica de fantasia compartilhada, espécie de mito contemporâneo, flexível para ser reescrito de diversas formas. Cabe-nos detectar qual é o núcleo comum, a parte dessa trama que, a partir do relato do pastor Wyss, vai dando lugar às variações posteriores.
A família Stark é levada a emigrar para a Nova Zelândia, fugindo de complicações político-econômicas da Europa pós Revolução Francesa, ou conforme a versão para os Estados Unidos, em busca de uma herança. Ela é composta por Joe Stark, um pacato cidadão de Berna, sua esposa Elisabeth, uma mulher fabril e inteligente, e quatro filhos homens, meninos de boa índole, criativos, travessos, mas dóceis. Pouco ficamos sabendo sobre a vida que levavam na Suíça, dos outros passageiros ou tripulantes do barco naufragado, o foco é apenas na fé e na harmonia familiar. O resto do mundo sucumbe da mesma forma como a grande tempestade liquidou com os outros viajantes do navio.
Não acompanhamos maiores conflitos nem questionamentos dos membros da família Stark sobre a eminente transposição ao novo mundo, a respeito do qual deveriam certamente nutrir fantasias, ou mesmo saudades da Suíça perdida. Talvez algum comentário, uma breve inquietação, à qual logo se acrescenta imediatamente um rápido consolo e um momento de confraternização familiar agradável. Mais ainda, o convívio com uma ilha tropical, cuja natureza exuberante é capaz de impactar qualquer um, é rapidamente assimilado pela família. Surpreendentemente eles parecem saber identificar os alimentos e animais. Tudo o que encontram é facilmente classificado em comestível, cultivável ou utilizável para construir. Os animais são para caça, de criação ou domesticados. A família relaciona-se com a natureza de forma pragmática.
Os meninos, cheios de saúde e energia, até cometem algumas irreverências, preocupando pais e irmãos quando ousam partir em uma excursão arriscada e não previamente autorizada, mas a família jamais os repreende, pelo contrário, suas ousadias sempre redundam em algum tipo de descoberta que enriquece o grupo. É uma família tão boa que teria tudo para matar o leitor de tédio.
É intrigante como um relato construído a partir de personagens tão planos pode tornar-se um clássico. Mas o tédio não acontece e o livro seguiu fazendo carreira através da infância e puberdade de inúmeras gerações, sua história incorporou-se ao acervo comum das referências culturais. Esse sucesso decorre do acerto da fantasia, que apresenta sob forma de ficção todas as qualidades desse ideal, que se inaugura e consagra ao longo do Século XIX: o “casamento de companheirismo” fundador de uma família que funciona como uma “fortaleza emocional”.
É importante lembrar que algumas coisas que parecem óbvias para nosso tempo eram impensáveis em épocas não tão remotas. Por exemplo, supor que o casal possa ter uma relação fraterna e que a formação moral dos novos cristãos esteja aos cuidados de uma dupla de leigos, um dos quais é uma mulher. Mais difícil ainda é conceber que essa esposa seja instruída e conselheira nos assuntos mundanos que preocupam seu marido. Seria inacreditável que ele admitisse publicamente essa influência feminina e ainda que encontre na família apoio emocional em momentos de fraqueza, que eles sejam do conhecimento da esposa e filhos, chegando ao ponto de supor que haja amor e até desejo em relação à mulher oficial, mãe dos herdeiros. Em termos de vida doméstica essas novidades não possuem nem 200 anos.
Essa forma de organização familiar caracteriza-se pela educação das crianças por uma mãe instruída, capaz de prepará-las para representar a família em um mundo cada vez mais competitivo. A esposa do Século XIX já se beneficia com a incorporação das conquistas das primeiras feministas, mesmo que nunca tivesse ouvido falar das ideias delas, ou até discordasse radicalmente. A posição das mulheres se valorizou graças aos debates e reivindicações de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução Francesa aplicados também à desigualdade entre os sexos, conduzidos por visionárias como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft .
A luta feminista foi absorvida pela instituição familiar, ao invés de ajudar as mulheres a romper com ela, como se supunha que poderia ocorrer. Dentro do casamento, elas passaram a ter uma importância social maior, que se encontra muito bem retratada na dinâmica da família Stark. A voz de Elisabeth é sempre um exemplo de sabedoria e ponderação, é também dela que partem muitas das boas ideias que solucionarão os problemas do grupo, assim como exigências em termos de segurança e higiene, cuja importância sempre é confirmada. Como diria a historiadora Michelle Perrot, o feminismo age por uma sucessão de ondas, de tal forma que há os momentos de ruptura, cujas novidades, na sequência, são incorporadas na vida das pessoas comuns.

Freud, conflitos no lugar da ilusão

A família retratada por Wyss também ilustra o isolamento do núcleo composto apenas por pais e filhos, cada vez mais distanciado de avós, tios e primos. É a vitória do modelo de família nuclear sobre o da família extensiva. A psicanálise, inventada no final do século vivido pelos náufragos de Wyss, já toma como estabelecida a ideia de uma família centrada no cotidiano íntimo e cálido de pais e filhos convivendo como célula individualizada do contexto social.
Mas nem tudo é harmonia como quer Wyss; dentro desse caldo de cultura Freud constatou que germinavam as tramas amorosas, as neuroses e complexos que faziam sofrer seus participantes. Convém lembrar quão recente era esse núcleo diagnosticado por ele, quão rapidamente a harmonia proclamada pelos náufragos suíços revelou-se uma complicada rede de encontros e desentendimentos amorosos.
Pelo jeito, a família nuclear já nasceu complexa, talvez por isso a história de Wyss tenha feito tanto e duradouro sucesso, por propor uma família onde os vínculos amorosos e as identificações necessárias para crescer fluíam sem obstruções, problemas, ruídos ou sofrimentos. Afinal, cada nova família constituída baseia-se na esperança de que tudo vai dar certo, de que está se fundando um grupo capaz de enfrentar os piores contratempos, capaz de sobreviver por seus próprios meios, mesmo quando abandonado, esquecido e ameaçado pelo mundo externo. Esse grupo autossustentável, cujos membros só nutririam boa vontade uns com os outros, é o ideal de família de cada um de nós, é a intenção de cada casal que encomenda seu primeiro rebento, é o sonho de cada filho que se queixa dos seus pais, e destes quando criticam seus filhos.
Toda família gostaria de ser como os Stark, embora, na prática, pouco nos aproximamos disso. Essa foi a dolorosa descoberta da psicanálise quando encontrou no destino de Édipo, da tragédia escrita por Sófocles, uma boa metáfora para a família nuclear. A tragédia grega não reflete a vida real de família alguma, porém revela, como em um raio-X, o esqueleto das ligações amorosas e perigosas, que são tão inadmissíveis quanto fundamentais, principalmente os desejos incestuosos e letais que circulam entre pais e filhos.
Através de Édipo e Jocasta, nessa descrição psicanalítica de uma família literária cujo destino era a catástrofe, Freud realiza a antítese de Wyss, ao descrever o naufrágio dos vínculos. Após a psicanálise, passamos a ver a família de forma menos pueril: refletida também no aspecto insuportável do convívio, nos desejos proibidos e inadmissíveis que ele suscita, no necessário rompimento entre as gerações e nas previsíveis mágoas remanescentes da relação entre pais, filhos e irmãos. Crescer passa, a partir de então, a ser compreendido como parte da elaboração de uma complexa relação amorosa e uma ruidosa separação. Porém, mesmo que pareça complicado demais crescer, procriar e viver, ainda enfrentar os conflitos é a melhor solução. Evitá-los, permanecer “na ilha”, atrelado aos vínculos originais, tentando manter um idílio primitivo que na prática é ilusório, equivale a sofrer dolorosas consequências: sintomas neuróticos que encenam conflitos que tentamos manter afastados da consciência nos pregam peças, assim como as inibições para amar e trabalhar nos acometem; e isso nas melhores saídas, pois para os filhos que nunca crescem, que não constituem alguma autonomia psíquica e ou física, a vida pode ser bem hostil e impossível de ser enfrentada.
O relato das aventuras da família Stark tornou-se uma espécie de mito, que sintetiza a ilusão de uma família autossuficiente, encerrada sobre si mesma, isenta de conflitos, na qual os filhos jamais se afastam e ninguém nem nada chega para resgatá-los da prisão familiar. Assim é a família fantasiada pelos casais durante a gestação e relativamente preservada pelos pais de bebês ou de crianças muito pequenas. Nos primórdios da experiência parental, eles sabem ser o centro do mundo de seus bebês, fonte de todo o bem estar, causa de todos os problemas e até protagonistas dos conflitos que possam surgir.
De certa forma, ao colocar o amor incestuoso entre pais e filhos no coração dos complexos que expressam o conteúdo inconsciente, Freud realiza, nem que seja negativamente, esse sentimento dos pais de ser o centro, influência indelével, na vida dos filhos. Diz o ditado popular: “falem mal de mim, mas falem”, ressaltando essa necessidade de estar no centro das atenções a qualquer custo. O mesmo ocorre com os pais, quer seja como tutores geniais, guias espirituais ou dedicados cuidadores, quer seja como opressivos, descuidados ou incapazes de compreender os filhos, esperam que, por bem ou por mal, sejam centrais na vida dos filhos.
Versões contemporâneas dos Robinson Suíços já incluem a partida de alguns dos filhos, um pouco mais crescidos, assim como a formação de um casal entre o filho mais velho com uma jovem náufraga órfã, providencialmente encontrada em uma excursão pela ilha. A versão da tradutora suíça Isabelle de Montolieu para o francês praticamente reescreveu a obra. Ela inclui a necessidade de sucessão de gerações até entre os animais, pois os dois cães encontrados no barco originalmente eram machos, como os filhos dos Stark, e a partir dessa versão tornam-se um casal e têm filhotes. Dessa forma, essa história adapta-se enquanto fantasia coletiva, introduzindo algumas amenizações no confinamento dos Robinson Suíços. Mesmo refletindo a situação das famílias de crianças pequenas que inicialmente crescem restritas aos cuidados e referências dos pais, foi necessária para os leitores a garantia de que se tratava de uma família e não de um labirinto sem saída.

O pequeno reino da família nuclear

Chegada à ilha, a família Stark adaptou-se ao ambiente e transformou-o para seu uso, utilizando para isso todos os conhecimentos e instrumentos que traziam e puderam salvar dos destroços do navio. Foram por isso gratos a Deus, a quem atribuíam a dádiva da salvação, e à instrução que tiveram, que lhes permitia construir casas, pontes, barcos, armadilhas, reconhecer animais e plantas, saber criá-los e prepará-los como alimento. Eles traziam toda a bagagem que o velho mundo podia lhes dar: a fé, a ética e a formação, assim como alguns de seus objetos, mas utilizaram tudo isso para fundar um novo mundo, desbravaram e ocuparam a ilha, construíram sua cidade particular como os colonos que fundaram a América, mas, diferente deles, ao invés de fundar uma nação, usufruíam da supressão de qualquer vínculo social. Como Crusoe, mais do que esperar dos outros humanos a salvação, estes representavam o perigo que materializou-se sob a forma dos piratas. Em algumas traduções-versões dessa história, o destino do navio naufragado que havia sido imaginado originalmente por Wyss como sendo a Austrália, tornou-se os Estados Unidos. Em ambos os casos, tratava-se de colônias, mas a América do Norte foi sonhada e fundada, mais do as outras, como um novo mundo.
A ideia dos pioneiros, fundadores de um novo mundo, é um modo de vida que funciona de forma absolutamente inversa à da sociedade europeia pré-iluminista, organizada através de sucessões hereditárias, com suas hierarquias rígidas e castas medievais. Nascer em uma posição era praticamente um destino, morrer-se-ia nela. Após a era das revoluções (a Industrial e a Francesa), cada ser humano pode tentar constituir sua fortuna, seu pensamento, seu modo de vida, enfim, seu próprio reino particular. A reprodução, antigamente destinada a manter, preservar, dar continuidade a uma tradição, um patrimônio, passa a dar origem a um voto de refundação. Cada nova família carrega em si o sonho de fundar algo novo, sua pequena dinastia, nem que ela dure apenas uma geração, até que o sonho de cada um de seus filhos a suplante. A ilha da família Stark engloba o reino de uma só família.
Hoje ainda nos debatemos com a fantasia em que cada núcleo familiar pode e deve constituir-se em um pequeno reino de curta duração. As histórias folclóricas de reis e rainhas, que refletiam uma nobreza que ainda existia nos tempos em que elas se transmitiam por relato oral, passaram a ser dedicadas às crianças e deram lugar a uma identificação imediata destas com os príncipes e princesas, dos pais com os monarcas e de sua casa com o castelo real.
Tal expectativa de constituir um reino autônomo e de ocupar posição tão poderosa e elevada só serve para frustrar os pais, que no máximo possuem alguns aspectos da sua personalidade ou feitos da sua vida que são apreciados pelos filhos, graças aos quais ocupam um lugar de identificação para eles. Frustração também para estes últimos, que jamais herdam grande coisa, fora cálidas lembranças de infância e algumas lições de vida, quando muito. Nada que se pareça a um reino ou um título de nobreza.
A fantasia chamada por Freud de Romance familiar do neurótico lida justamente com essa distância entre o tanto que se espera e o pouco que se consegue na relação entre pais e filhos. Nela, temos um devaneio no qual imaginamos que na verdade somos filhos adotivos daqueles que sempre consideramos como nossos pais. Para nosso grande alívio, fantasiamos que descobrimos que na verdade seríamos herdeiros de gente de melhor estirpe, que apareceria para nos resgatar do contexto medíocre que a vida nos reservou. Para não dizer que essa é uma fantasia fora de moda, é justamente a base do milionário sucesso de Harry Potter, o qual no fim de uma infância miserável descobre ser famoso, pertencente a uma importante linhagem de bruxos, rico e pode distanciar-se da vida simplória dos parentes entre os quais cresceu.
Hoje, a prática mais disseminada das adoções, principalmente as internacionais, nas quais famílias de lugares mais prósperos resgatam crianças dos diversos infernos que a humanidade mantém sobre a terra, provavelmente está transformando essa fantasia. Se Freud reescrevesse seu texto e atualizasse essa fantasia, provavelmente a família idealizada viria sob a forma do desejo de que alguma celebridade tivesse retirado do ostracismo o filho queixoso da família que lhe tocou. Nossa nobreza agora é outra, formada por ídolos pop, mas, independente dessa mudança aparente, as famílias continuam parecendo pequenas para abrigar os sonhos de grandeza e sucesso dos indivíduos contemporâneos.

Patriarca diplomático

Nossa família ideal é liderada por um pai não mais despótico, agora ele é um diplomata. Esse pai ideal entra no Século XXI como um companheiro exemplar, cujos atributos devem incluir paciência, sensibilidade, senso de justiça, enfim, quase um monge, tão perfeito e equilibrado que não parece humano. Ele mostra-se capaz de administrar a tendência à super-proteção materna, compreende que seus rebentos são frágeis e precisam sentir-se seguros, mas ajuda a mulher a ter força para empurrá-los para fora do ninho quando precisam aprender a voar. Ele também se angustia, como a mãe, mas transmite segurança, impõe limites, é o mediador entre o colo materno e o mundo externo.
Esse pai confia pouco na força dos seus próprios ensinamentos, já que os recebeu de sua família de origem, e sabe que foram insuficientes. Frente a um mundo que vive mudanças vertiginosas na tecnologia e nos costumes, ele acredita que os parâmetros, conhecimentos e experiências de uma geração não servem tão bem assim para a seguinte. Por isso não raro sente-se incapaz para a paternidade, assim como sente medo pela incapacidade dos filhos de se sobrepor aos riscos da vida e não sabe muito bem como ajudá-los a crescer.
Essas incertezas são superadas através de uma renovada confiança nos vínculos, na riqueza das crianças, sempre consideradas inteligentíssimas pelos seus pais. Graças a esses incríveis dons que atribuem aos filhos, aliado à pouca estima das capacidades e pensamento dos pais, conclui-se que caberia aos adultos mais pastorear do que inculcar ou reprimir, como acreditava-se anteriormente. O pai não dá mais sermões, ele explica, quase suplica que levem em conta suas opiniões. Quanto menos seguros para criar seus filhos as famílias se sentem, mais elas apostam na própria criança, na sua suposta boa natureza e em intenções e projetos pedagógicos que possam administrar esses potenciais. A educação familiar vai tornando-se cada vez mais nivelada e socrática.
De certa forma, esse era o ideal já apontado pelos Robinson Suíços, por isso eles representaram uma fantasia que acompanhou as crianças e jovens dos séculos seguintes. Por mais que a história seja pueril na forma, ela acertou no conteúdo: o retrato dessa nova família era adequado. Os casais que tentam formar suas famílias tendem a essa fórmula, pois, o mundo lá fora, seja uma sociedade capitalista competitiva ou uma ilha tropical, é visto como um meio hostil a ser conquistado e dominado pelo grupo, para tanto, nada como uma boa equipe familiar.

Readmitidos no paraíso

Adão e Eva, os pais primordiais, foram banidos do paraíso quando expressaram seu descontentamento com os horizontes oferecidos pelo senhor. A família Stark faz o movimento contrário, do grande mundo passam ao reduzido e solitário espaço de uma ilha desabitada. Ao invés de voltar-se para a possibilidade do resgate, de tentar construir algum meio que os transportasse de volta à civilização da qual se perderam, eles investem toda sua energia na construção de espaços para a adaptação mútua entre a família e o ambiente.
Entre todas essas versões, permanece comum e sempre presente a resignação religiosa e bem-humorada dos membros da família, que jamais se revoltam contra o destino, quando sonham é com coisas que a ilha oferece, como uma casa na árvore, pérolas ou aventuras no local. As saudades do mundo perdido praticamente não lhes assombram a alma, apenas como temores a serem reconfortados com fé e aconchego familiar. Parece que Adão e Eva se acomodaram no paraíso e que o inferno ficou para trás.
Quando constataram que o naufrágio era inevitável, os marinheiros conclamaram a tripulação e passageiros aos botes, gritando “estamos perdidos”. Os membros da família Robinson estavam de fato perdidos do resto, em parte pelas ondas que jogavam o pai, que saíra para verificar o que se passava, de um lado para o outro, em parte porque os outros estavam isolados na cabine rezando. Perdidos da própria tripulação, mas encontrados entre si, em família, os Stark tornaram-se os náufragos escolhidos pelo Senhor para sobreviver. Ao contrário do resto das pessoas do navio que embarcaram nos botes e foram engolidas pela tempestade, eles encontraram a paz daquele que reza e espera a salvação.
Eles acreditaram que Deus ouviu suas preces, tal qual o fez ao escolher Noé. Só que na história bíblica, Noé foi designado para uma refundação, uma purificação dos homens cuja má índole tornou necessária uma seleção divina. No caso de Noé é também uma família, núcleo fundador do novo rebanho do Senhor. Os outros sucumbem nas águas, mas a família escolhida se salva e recomeça o trabalho de domesticação da natureza. Já os Stark salvam-se, mas sua missão não transcende os horizontes da própria família, ilhada em seus objetivos particulares de sobrevivência. Enquanto Noé e os seus significam um princípio, uma confiança retirada da mão dos homens corruptos e recolocada em uma família de justos, na nossa história não há transcendências nem utopias: os objetivos são pessoais, restritos ao usufruto grupal.
Em relação aos recursos naturais da ilha tropical, os Robinson não cessam de se surpreender e de festejar cada descoberta de um novo animal ou alimento, dos quais se servem com a tranquilidade dos protegidos do Senhor. A família enfim torna-se obediente, satisfeita com os recursos da ilha, nomeando criaturas e lugares do dadivoso paraíso insular. Por isso, quando o resgate por fim chega, somente querem partir alguns dos filhos mais velhos, pois os pais e as crianças não concebem lugar melhor do que esse. Por serem todos crentes, construtivos e essencialmente bons, os Robinson Suíços possuíam um forte aliado no céu. Mesmo que a ilha apresentasse alguns desafios e hostilidades, nenhum deles morre ou se machuca, há somente alguns sustos e o alívio posterior.
A autoria proveniente de um pastor protestante, assim como a época revoltosa do mundo em que foi concebida, tornam essa história boa representante do reflexo na vida privada das novas liberdades conquistadas na vida pública. As turbulências políticas demoveram qualquer certeza de que o ponto de origem de alguém selasse seu destino, pois quem nasceu para soberano havia sido decapitado por aqueles cuja função seria servi-lo eternamente, valendo o contrário, quando um imperador podia fazer-se do nada. Nesse mesmo espírito de abalo das estruturas, ocorreu que a fé, face às dissidências luteranas que corroeram o império católico, mudou-se das catedrais para os ritos despojados, ficando Deus ao alcance dos homens comuns e as virtudes do trabalho acabaram ocupando o lugar no altar que outrora era dos bem-nascidos.
A partir da era das revoluções, o poder passou a resultar de uma complicada conjuntura política e econômica, diferente das disputas e alianças entre nobres, assim como o lugar no céu já não estava tão fácil de comprar com oferendas econômicas ou de favores aos sacerdotes de plantão. A fé, pós-protestantismo, passa a ser o resultado de um acordo pessoal, que ocorre na consciência de cada um, entre seus desejos, atos e crenças; a vida eterna, portanto, é o fruto dessa negociação.
O próprio livro de Defoe, escrito no início da revolução industrial, situa-se no sentido contrário das relações de produção que ali nasciam e se consagrariam nos séculos seguintes. A vida atarefada e o ambiente estruturado no qual Robinson Crusoe planta, caça, estoca e organiza o fruto de seus esforços é o oposto do trabalho alienado e fragmentado da linha de produção industrial. Crusoe se regozija com todas as fases da produção de seus bens e alimentos, possui os instrumentos, as terras e armazena os produtos resultantes desse sistema que ele controla em todas suas etapas.
O mundo de Crusoe na ilha reflete uma realidade econômica idealizada, justamente porque está em extinção. Como sempre que algo se torna uma história a ser contada é porque já é passado, ou ainda é futuro, pois as fantasias ilustram melhor os sonhos do que a realidade. Mesmo quando somos realistas em nossos relatos, não é a realidade que retratamos na ficção, não é a veracidade dos fatos, mas sim a de nossos desejos, principalmente os que nos são mais inadmissíveis e incompreendidos, que aparecerá retratada. Fantasiar é uma forma de pensar o que ainda não se compreendeu.
Embora seja um escrito aparentemente pouco fantasioso em seu estilo, quase um relatório minucioso da rotina de sobrevivência do náufrago, é sobre uma relação já perdida com o produto de seu trabalho que Defoe escreve, o universo de Crusoe é pura fantasia, um sonho literário. O mesmo se aplica à família, que antes dos ideais iluministas que trocaram tudo de lugar, tendia a viver restrita a um espaço geográfico, fabricando os produtos para atender suas necessidades, unida em torno de um destino comum, por mais miserável que ele fosse. Nesse sentido, a história dos Robinson Suíços embora quase centenária é também nostálgica.
O pastor Wyss encabeça um núcleo que bem serve às famílias contemporâneas, representando as fantasias compensatórias à dissolução e ao desencontro que o regime de trabalho exigente e a pressa em que se vive lhes impõem. Uma família é hoje um grupo mantido unido também através da exaltação do ideal familiar, da idealização dessa missão e da resistência à realidade que já era tão mutante no Século XIX. Desde então, cada família que se cria e mantém, o faz em contraposição à realidade externa, que separa seus membros, os afasta do convívio comum, os leva a trabalhar em processos alienantes. Uma criança hoje não somente passa o dia longe de seus pais, como também tampouco saberia dizer exatamente onde eles estão, nem o que estão fazendo.
Quanto mais nossa vida real for distante da ilha onde a família vive e produz unida, mais essa história sobrevive como um conto de fadas: “era uma vez” um grupo familiar onde todos viviam sempre juntos, em harmonia entre si e com a natureza em seu redor. Os Robinson Suíços vencem as adversidades do naufrágio, provando a suficiência do grupo familiar, assim como a necessidade, agora subjetiva, de afastamento de influências e tentações que fizessem qualquer um de seus membros diferenciarem-se do resto, que o levassem a sonhar além dos paradigmas conhecidos pelos progenitores. Quanto mais frágil é a realidade da família, mais exigiremos do mito, quanto mais pobre a realidade, mais a fantasia será convocada e necessariamente será suntuosa.

II – Ilhados no cosmos: Perdidos nos espaço

Em 1965 é a vez de outra família Robinson naufragar. Desta vez trata-se de uma série de televisão e a família é de norte-americanos que estão Perdidos no Espaço (Lost in Space, de Irwin Allen, chegou a ter 83 episódios). Trata-se de uma missão americana de colonização de um planeta na constelação de Alfa Centauro, ambientada em um futuro que naquela época parecia longínquo: 1997. Conforme a projeção dos anos de 60, não havia muitas dúvidas de que no final do Século XX vestiríamos malhas prateadas e habitaríamos casas servidas por robôs, em um ambiente que agradaria aos Jetsons . Além disso, dominaríamos as viagens espaciais tripuladas, e com isso resolveríamos nosso problema de superpopulação colonizando o universo.
O casal John e Maureen Robinson parte nessa jornada, acompanhado das filhas Judy, Penny e do caçula Will, menino de uns 10 anos, cuja curiosidade e travessuras propiciam as tramas de muitos episódios. Com eles viaja também um piloto, Don West, rapaz charmoso, destinado a namorar a loirinha Judy. Mas a fonte de toda a confusão, que transforma uma missão de colonização em um naufrágio, repousa em uma personagem nada familiar: um espião, provavelmente russo…
O culpado era Zachary Smith, ou Doutor Smith, como ficou conhecido, protagonizado por Jonathan Harris. Esse vilão saído da guerra fria embarca sorrateiramente com o objetivo de sabotar a missão, reprogramando o robô para destruir a nave, saindo antes da partida. Tudo dá errado: o robô entra em pane e a decolagem acaba ocorrendo com Smith a bordo. Todos esses contratempos provocam o descontrole da nave, que sai da rota prevista e passa a navegar à deriva no espaço sideral.
Na maior parte dos episódios eles encontram-se ilhados em um ou outro planeta, todos inóspitos, envolvidos na tarefa de reparar a nave e sobreviver. Ou ainda navegam perdidos no espaço, na tentativa de voltar à missão original. Não há dúvidas neste seriado quanto à existência de vida lá fora: o espaço sideral possui inúmeros habitantes bizarros, a maior parte deles humanóides, dotados de poderes, tecnologias e índoles quase sempre malignas. Na melhor das hipóteses, o extraterrestre será apenas estranho e a confusão se gerará a partir de um mal-entendido, mas neste e em outros casos, não há dúvida das constantes más intenções do Dr. Smith.
A ilha da família suíça era abençoada por Deus, mas após duas guerras mundiais, bombas nucleares e milhões de mortos que incluem os horrores do holocausto, já não é mais possível tanto otimismo. O universo onde navegam os Robinson americanos é perigoso, quando lhes fornece provisões é a contragosto, e os encontros com outras criaturas raramente são amistosos. Por outro lado, apesar do ambiente externo hostil, seria impensável nessa trama que os problemas tivessem origem endógena. A família para esses astronautas é sinônima de abrigo, o encrenqueiro é um estrangeiro, pois o elemento que rompe a harmonia deve vir de fora.
A nave, que poderia ser sua ilha segura, vive estragando e descontrolando-se, é um frágil barquinho a mercê em um mar furioso. Mas esses são riscos com os quais os tripulantes a bordo estão prontos para lidar. Já as sabotagens provenientes das armações do Dr. Smith, sempre tramando contra seus companheiros de viagem em troca de tesouros, ou da promessa de transporte de volta à terra, envolvem perigos maiores, situações que ameaçam a integridade de todos e da nave. Seu companheiro de confusões, que escapa ao controle dos adultos, é o menino Will e em segundo plano sua irmã Penny. Juntos, o espião sabotador e o menino curioso e aventureiro fragilizam a segurança da família.
Os filhos dos Robinsons Suíços também davam suas escapadas, excursionavam por lugares proibidos, passavam a noite fora, causavam preocupação a seus pais. Jovens e crianças são assim mesmo: cheios de iniciativas e inconscientes dos riscos que correm. Porém, na história dos náufragos do Século XIX, a força da figura paterna e da onipresença divina era tão grande, que as travessuras dos garotos somente acarretavam preocupação, no máximo uma noite maldormida, e eram em geral coroadas por alguma novidade que beneficiava a família. Por mais ameaçadora que fosse a situação, o leitor sente-se partilhando com o pastor que escreveu a obra a confiança na proteção divina. Todos os contratempos naquela história, mesmo os originários do indomável espírito aventureiro dos jovens, acabavam somando para a família em bens, conhecimento do lugar ou experiência. Na ilha dos náufragos suíços, tudo termina em um belo jantar, onde a Sra. Stark preparava pratos exóticos com as iguarias da ilha.
O mesmo ocorre com Will e Penny. A menina é uma personagem mais apagada, cujas travessuras são provocadas principalmente devido à compaixão e sensibilidade femininas, aliadas à sua ingenuidade. Vê-se bem que na década de 1960 as meninas não tinham um lobby tão forte. Hoje seria impensável que não houvesse uma aventureira menina, tão ou mais ousada e inteligente que seu irmão. As travessuras de Will são perigosas, mas como as dos rapazes suíços, não poucas vezes resultam em descobertas importantes para o grupo. O que surpreende em ambas as famílias é sua capacidade de neutralizar qualquer fonte de conflito: tudo é compreensível, não há lugar para mágoas nem desconfianças, jamais pensam mal uns dos outros. Às vezes até parece que a subjetividade do robô seria mais sofisticada que a dos humanos.
Para nossa sorte, a família possui um inimigo a bordo: Dr. Smith, o espião astuto, mas trapalhão, um peso morto, que não partilha da faina diária de manutenção da nave, da subsistência e busca de rumo. Enquanto a família e o major viviam de forma parecida com os suíços na ilha, trabalhando e inventando soluções e melhorias para o grupo, Dr. Smith é um preguiçoso, um inútil, egoísta e desleal.
Esse tipo de inimigo é consonante com o clima paranoico, próprio da guerra fria, no qual a prosperidade americana pós-guerra se desenvolveu. A família suíça se fecha em uma experiência de autossuficiência do grupo, que unido na sua fé compartilhada, em um ambiente fabril e de mútua colaboração poderia vencer a natureza indomada. Por sua vez, os Robinsons americanos se deixam envolver pela fantasia de pertencer a um grupo ideal, em oposição a um inimigo externo bem delineado que para seu país eram os comunistas. Dificilmente um sistema de crenças mantém-se sem situar um opositor bem visível. Neste caso, trata-se de um contraponto ao american way of life, cujo oponente encarnado por uma personagem tão detestável como Dr. Smith, certamente tornaria a visão de mundo dos náufragos americanos muito mais atraente. O problema do homem, a origem do naufrágio, são agora os “homens maus” do outro lado da cortina de ferro, os que pensam um mundo diferente. À natureza não cabe mais o papel nem de vilã, nem de provedora.
Os americanos perdidos no espaço constituíram o canto do cisne da harmonia familiar, os últimos Robinson. Depois deles houve outras tentativas, outros enredos envolvendo famílias tentaram mostrar a força do seu vínculo, porém já abrigavam dentro de si o conflito de gerações.
As crianças dos anos de 1960, contemporâneas à série, viviam rodeadas de recém criadas geringonças automáticas que facilitavam a vida cotidiana. Os carros espaçosos e coloridos consumiam litros de petróleo no ir e vir das famílias que prosperavam. A oferta de todo tipo de máquinas domésticas para cozinhar, triturar, encerar, lavar, limpar ou cortar grama, tornava o consumo a grande meta da vida cotidiana. A televisão, cada vez com mais canais, foi se constituindo em um membro da família, se não o mais importante, certamente o mais “ouvido”. Com a prosperidade industrial conquistada após a segunda guerra, descobertas científicas transformaram-se maciçamente em recursos tecnológicos voltados para o bem-estar dos mais favorecidos. Esse fascínio tecnológico encontra-se sintetizado na figura do robô, cuja presença protagonizava todos os episódios, opinando e derramando sabedoria “científica” como a televisão faz até hoje.

O filho e o traidor

A partir da segunda metade do século passado, as famílias sentiam-se inseguras para preparar seus filhos para um mundo que as fascinava e assustava. O mundo evolui demasiado rápido, os adultos “sucateiam” com a mesma velocidade das máquinas, cada geração torna-se rapidamente um modelo superado, inferior aos novos lançamentos, dotados de novos recursos: as crianças e os adolescentes. O menino Will é travesso, mas também é excepcionalmente inteligente e frequentemente pensa soluções criativas que salvam o grupo. Era com ele que os telespectadores se identificavam. As outras personagens parecem figurantes perto da riqueza da dupla de encrenqueiros, Will e Smith, que anima o programa.
O Doutor Smith é mais complexo do que a simples figura do traidor, pois ele é companheiro constante do menino, o único que realmente sabe onde ele está e no que está metido. Em geral, ambos são designados para cuidar da mesma tarefa ou mesmo vigiar um ao outro. Há inclusive episódios nos quais Smith revela uma particular sensibilidade para os anseios do menino: ele é o único que percebe quando Will passa por uma crise pré-adolescente e que dialoga com seus questionamentos. Seria difícil compreender semelhante modulação em um seriado de personagens tão simplórias, como bem cabe ao papel de mais uma estereotipada família de náufragos fabris e otimistas.
Provavelmente, Will e Smith são personagens mais próximas entre si e mais identificados um com o outro do que parece. Em termos de convívio, é fato que o menino passa mais tempo com o ardiloso trapaceiro do que com seus simpáticos familiares. O espião mais se assemelha a um avô meio maligno: ele é de fato mais velho, queixa-se de dores nas costas e cansa-se rapidamente. Por essa condição de velho, além de preguiçoso, não se ocupa da faina diária da família e fica disponível para a criança curiosa, que não se resigna a ficar encerrada dentro do acampamento familiar. Nas suas aventuras enfrenta perigos dos quais sua família não fica nem sabendo, ou só descobre quando a confusão já é grande.
O que faz do Dr. Smith um potencial companheiro de aventuras para Will é justamente sua posição externa e avessa à família. Ele é um velho, por isso pode ser ridículo e fraco, a personagem bufão colocada como oposto aos adultos mocinhos. Porém, por ser um traidor, torna-se uma figura ativa e encontra energias para buscar no mundo lá fora formas de satisfazer suas ambições de enriquecer e voltar à terra. Cheia de possibilidades, a figura de Smith mistura-se bem com a “traição” que o jovem precisa cometer para desejar além dos horizontes do quintal familiar.
Enquanto todos os adultos responsáveis estão envolvidos com as coisas necessárias da sobrevivência, Will, por ser criança, Penny, por ser uma jovem sensível, e Smith, por ser traidor, ocupam-se de desbravar os planetas em que sua nave pousa ou outras dimensões às quais são jogados. Graças a isso, podem conhecer alienígenas, encontrar máquinas e lugares surpreendentes e muitos monstros assustadores, além de piratas, donos de circo, mercadores, princesas, cavalheiros, inventores malucos e todo tipo de personagem que a imaginação possa invocar. Na maioria das vezes, os adultos são convocados na última hora para salvar a situação e reverter a confusão. Graças a isso, participam também das aventuras e ficam sabendo por onde andaram seus travessos rebentos. Na verdade, o fator de risco e emoção, a fonte da aventura, para esta família está colocado do lado de fora da sua missão de retorno e sobrevivência, reside na irresponsabilidade e ingenuidade das crianças, na ganância do velho traidor, no desconhecido a ser desbravado pelos membros não responsáveis do grupo.
Embora o seriado hoje pareça ridículo, com seus cenários de papel, seus risíveis monstros de látex e ritmo arrastado, a temática é extremamente contemporânea. A globalização e a agilidade das descobertas tecnológicas propiciam às crianças e aos jovens explorar um mundo que transcende totalmente a circunferência da nave familiar. Os pais estão muito ocupados em sobreviver e subsistir e facilmente tornam-se defasados. As crianças e os jovens, que poderiam ser considerados “traidores” como Smith e Will, abandonam, rompem e fazem com que os adultos sintam-se frágeis, desconectados e insuficientes para educá-los.
Mais do que alienígenas e viagens interplanetárias, hoje é a internet, que captura a atenção desses jovens traidores. A família nuclear, ninho idealizado, sede das fantasias românticas que se materializam em frustrações e queixas, tenta resistir, sobreviver, enquanto, em seu próprio seio, em uma inocente tela, o estrangeiro se materializa. Não há mais como prender aos mais jovens em uma rede de referências familiares, uma teia muito maior espera para capturá-los. Sempre se disse que os filhos não são dos pais, são do mundo, serão um dia abduzidos por ele. Hoje poderíamos dizer que eles já nascem em um mundo no qual os pais podem até reinar nos primórdios, mas em breve tornar-se-ão alienígenas. Sobra, incólume, a eterna fantasia da família insular, como uma miragem, um oásis virtual. Isso vale na hora de engajar-se na aventura de viver, é dali que vem os desafios, mas a família não resiste enquanto ideal à toa: ela ainda é um refúgio, um lugar último, o único que deveria nos receber nos momentos de fraqueza. Muitos grupos familiares passam longe dessas atribuições, neles seus membros em vez de acolherem somam-se às hostilidades que a vida já reserva para todos: não se cuidam quando doentes, não se consolam quando tristes, não se valorizam uns aos outros. Qualquer família, por mais dedicada que seja, deixará a desejar nesses itens, porque um ideal está aí justamente para empalidecer a realidade com seu brilho e a idealização da família surpreendentemente tem sobrevivido a todas as intempéries.

Corpos ilustrados e enfeitados: tatuagens e marcas corporais (por Mário e Diana Corso)

A cuidadosa arquitetura do corpo, hoje imprescindível na construção da identidade.

Tatuagem é vestimenta definitiva, é um adorno perene. Quando alguém se tatua, é comum ser alertado dos perigos do arrependimento, pois livrar-se dos traços colocados sobre a pele é difícil, caro e doloroso. Porém o aviso é inútil, pois o efeito que se quer produzir com a tatuagem é justamente o de ser um traço que não pode ser apagado ou ignorado. Da mesma forma, piercings e alargadores de orelhas, assim como escarificações e outras modificações corporais visam introduzir enfeites ou marcas que passem a fazer parte do corpo, diferentes dos enfeites e joias dos quais é previsível e possível se despir. Por que teriam eles se tornado tão comuns e característicos dos jovens, assim como em alguns adultos, constituindo um fenômeno que não dá mostras de arrefecer?

Fazer inscrições, traços e alterações decorativas definitivos na pele não é de hoje, é impossível datar seu começo e os usos são os mais variados, desde diferenciar clãs entre uma população até marcar crianças para serem reconhecidas em caso de rapto. O uso do corpo para portar mensagens simbólicas com cicatrizes e pigmentos é transcultural e milenar. Durante muito tempo, em nossa civilização, houve um declínio dessas manifestações dado o predomínio das influências religiosas. Especialmente as tatuagens costumavam ser de uso não mais que eventual na população em geral, embora tenham se mantido presentes nos grupos marginais e em instituições fechadas. Por isso, fora raras exceções, um corpo marcado tenderia a ser pensado como fora do sistema.

Durante as últimas duas décadas vemos uma mudança significativa quanto ao uso da superfície corporal para fins estéticos e ou simbólicos. Especialmente entre os jovens há um grande incremento de tatuagens. Os piercings acompanharam a tendência, e em menor escala, mas nessa mesma direção, as escarificações para fins decorativos e os implantes subcutâneos.

Tentaremos entender esse fenômeno dentro de um contexto maior quanto à significação que o corpo ganhou nos últimos tempos. Nossa questão é descobrir o que mudou: estaríamos apenas diante de um uso mais livre, como se nos reapropriássemos de nossos corpos depois de um inverno de repressão religiosa, ou existem novidades no estatuto do uso do corpo como apoio à subjetivação?

É difícil fazer interpretações generalizadoras quanto à disseminação dessas formas de uso da superfície corporal, no entanto, acreditamos que certas linhas de força podem ajudar a entender o fenômeno. Analisaremos aqui três questões que nos aproximam da compreensão do crescimento da prática das marcas corporais.

Primeiro, o corpo nos parece ser hoje palco imprescindível na construção da identidade, com maior importância do que já teve. Fazer-se a si mesmo, passa por uma cuidadosa arquitetura do próprio corpo, ao qual serão agregados os valores e, portanto, as modificações necessárias para a identidade que se quer, ou se consegue portar. Por isso, cada vez mais os enfeites serão pensados como parte indissociável de si, constitutivos, formadores de personalidade. Consideramos a tatuagem como uma forma de inscrição na pele de conteúdos que se sente prazer de ressaltar, mostrar, ou que têm maior necessidade de consolidar-se no interior do sujeito. Aqui estamos no terreno do caso a caso, não existem simbolismos fixos, cada marca corporal vai ter um significado para cada sujeito.

Segundo, acreditamos que a pele demarcada pelo seu dono constitui uma forma de fazer resistência ao olhar invasivo da sociedade atual, pois hoje nos é imposto transitar com os corpos perfeitos e seminus. As liberdades que conseguimos para várias coisas, não se estabeleceram ao nível do corpo, ou mesmo houve um retrocesso em relação à autonomia possível. Vemos nas últimas décadas um incremento de exigências dirigidas a um corpo que deve ser trabalhado e disciplinado. Portanto um olhar para conferir a relação dos corpos enfeitados com essas exigências seria interessante.

Por último, as dificuldades de crescimento dos jovens, que hoje vêm-se amarrados por décadas à casa paterna, criam a necessidade de colocar no próprio corpo algum limite a esse amor que não se descola deles. Trata-se de diferentes tentativas de delimitação de uma identidade, nesse caso, no limiar da pele. Esse vínculo indissociável e sufocante entre as diferentes gerações sucedeu ao conflito e ao abismo entre adultos e jovens que existia em um passado recente. Faz poucas décadas, os adultos e os adolescentes falavam línguas diferentes, praticavam costumes diversos e viam-se com os olhos críticos do choque entre culturas. Hoje, herdeiro da estética unissex lançada pelos Hippies, temos o que poderíamos chamar de estilo “unigeracional”. Este consiste na eliminação de traços diferenciais de diversos momentos da vida, como outrora eram as calças que com o crescimento deixavam de ser curtas.

Observamos a intensa identificação dos adultos com a geração que os sucede e o medo deles de afastar-se dos jovens. Temem ser deixados à mercê da maturidade e do envelhecimento. Os filhos têm dificuldades para sair, enquanto os pais não estão prontos para ficar longe de sua juventude. O embaralhamento das gerações e a proximidade física gera mecanismos de afastamento e diferenciação.

São três eixos, três tentativas de aproximação com algo que é tão recente, ainda em construção. É arriscado tirar conclusões sobre uma situação que ainda não teve tempo de dizer a que veio, mas vamos tentar.

Para sempre

A experiência clínica é eloquente de que as tatuagens sempre portam um sentido, porém, seu significado mais profundo e sua relação com o sujeito são múltiplos e provavelmente do tipo inefável. Pode ser uma significação consciente, mas que pede um apoio real, por exemplo, um luto em que a pessoa tatua um nome ou um signo que remete ao falecido. É comum encontrarmos tatuados o nome de irmãos que morreram jovens, assim como de pais perdidos precocemente, ou filhos que partiram sem ter tempo de terminar de crescer. Todos sabemos da dificuldade de um luto assim e a tatuagem permite uma dupla operação: o falecido não será esquecido, mas como está na pele, a cabeça pode se ocupar de outra coisas. Diríamos que a inscrição facilita o luto, pois nesses casos é necessário esquecer um pouco para seguir a vida.

Nesses casos em que a morte assume um caráter traumático, a dificuldade de assimilar algo que chega a beirar o impossível é ajudada por uma marca corporal. O medo e a necessidade de esquecer fazem com que se use um signo indelével, e fica-se sem chance de perder essa memória. Se algo não consegue entrar, se não temos um lugar para tal fato, é melhor que fique na borda do que em lugar nenhum.

Acreditamos que todos lembram que Freud dizia que a morte não tem representação inconsciente. Como nesses casos trata-se de uma representação de árdua assimilação, a marca corporal é tanto uma tentativa de simbolização como a resistência a significações quase impossíveis.

Ficando no limite da pele, as tatuagens corporais penetram, alteram a superfície, mas pouco se aprofundam. Embora passem a fazer parte da imagem, portanto do sujeito, os conteúdos representados por essas marcas, quer sejam lembranças, sentimentos, ou questões pendentes, não habitam o interior do seu portador, como o faria um pensamento, ocupando sua mente. Eles estão sempre lá, mas não passam da porta, comportam-se assim como traumas, sendo resistentes à significação, tanto quanto insistentes em sua presença.

Pensando as neuroses de guerra e traumáticas, Freud1 lembrava que os mais afetados pelo horror do que tinham vivido eram os que não portavam nenhuma marca visível[*]. Quem ficou com uma cicatriz, uma lesão, ou perdeu um membro, paradoxalmente, estava menos vulnerável às más lembranças. Ora, um dos dramas de quem passou por experiências limites é não encontrar interlocutores que tenham verdadeira empatia com suas memórias. Nesse caso a marca no corpo cristalizava o intransmissível da sua experiência de horror. Os traços visíveis do sofrimento ajudam a certificar-se de que aquilo realmente ocorreu, ou seja, aquela dor procede.

Saindo do campo do traumático, de interpretação mais direta, geralmente as tatuagens e marcas tendem a ser mais enigmáticas. São símbolos evocativos de uma trajetória, de virilidade, de feminilidade ou ainda de filiação: ressaltam algo que necessita ser visível e óbvio. Esse tipo de tatuagem costuma ser acompanhada de um discurso que a justifica mas que nem por isso a esgota. Como todo ato, fazer uma tatuagem, quando submetido à análise revela uma outra camada.

Um exemplo: um rapaz que tatuou um enorme dragão, tomando todo seu braço, o qual envolve o símbolo do seu time de futebol. Diz que se identifica com time, e com o dragão por tratar-se de ser um ser que ninguém derrota. No decorrer de seu tratamento isso se confirma, mas evoca também uma garra e virilidade que não vê no próprio pai, o que o fazia sofrer. A tatuagem lhe garante algo que deveria vir da filiação, mas que precisou de um apoio externo, como que fundando-se a si mesmo ao imprimir esse valor agregado na própria pele. Um time de futebol é um simulacro de totem paterno, algo para se pertencer e amar; já o dragão representa a agressividade que gostaria que o pai tivesse frente à vida e frente à mulher. Mais adiante, sem negar essa função, ele diz que a mãe se afastou muito dele desde que fez a tatuagem pois a achou horrível, excessiva. Isso era o que ele não sabia que queria, só depois deu-se conta que a imagem o ajudou na separação de uma mãe extremamente invasiva. Deixou de ser o bonitinho da mamãe, agora aquele corpo já não era mais infantil nem se apoiava tanto olhar materno. A tatuagem foi necessária para reposicionar o corpo fora da infância, fora da aprovação materna e com marcas de filiação ao pai.

Um exemplo de linhagem similar, mas com objetivo contrário, encontra-se numa tatuagem da palavra “nômade” em torno do umbigo. Sobre ela, o jovem em questão diz: – “não me sinto ligado a nenhum lugar ou país, sinto que onde deito minha cabeça é meu lar. Nada me acorrenta”2. Como se vê, quando nenhum lugar nos acolhe, resta o cordão umbilical como única corrente capaz de ligar o sujeito ao território chamado mãe.

Esses casos sugerem que uma tatuagem não é exatamente uma decisão consciente, ela é como um sonho, uma produção sintomática a respeito dos quais temos pistas, mas não uma compreensão sobre o significado do que sonhamos, estamos fazendo ou pensando. Porém, diferente dos sonhos, que se dissipam ou nos escapam, dos sintomas que subvertem certos caminhos ou momentos da vida, as marcas corporais chegam para ficar. Elas passam a fazer parte da pele, da imagem, perpetuam um simbolismo pessoal que nunca se despe.

Os jovens têm uma peculiar relação com a poesia, graças a sua característica de dizer sempre mais do que saberíamos explicar. Ao caráter enigmático e evocativo das letras, próprio da escrita poética, deve-se, em parte, a importância da música na cultura adolescente. Uma boa estrofe parece compreender-nos mais do que ser compreendida.       Essa forma de arte bem pode ilustrar a força de muitas dessas imagens, que são charadas que funcionam como auto-descrições, por vezes em palavras, outras em imagens, ou mesmo no casamento das linguagens escrita e visual.

A arte permite um encontro do inconsciente do autor com o daquele que frui dela, que ocorre fora da consciência e é tão efetivo quanto inexplicável. Nesse sentido, o artista seria o próprio sujeito, sua pele a superfície, a tela, o tatuador o instrumento dessa obra que se oferecerá a todos para sempre.

Tatuagens podem ser poucas, ímpares, delicadas ou recobrir quase toda a superfície do corpo. De qualquer maneira, mesmo os mais discretos ponderam fazer novas ilustrações no corpo, enquanto os mais entusiastas o encaram sua pele como uma obra em curso. Apesar de ser um processo doloroso, é com júbilo que a perspectiva de novas tatuagens se coloca para os que iniciaram nelas, pois trata-se da aquisição de uma forma de expressão, um novo recurso para simbolizar conteúdos difíceis de assimilar ou que se deseja perpetuar.

O tatuador é escolhido pelo seu estilo e capacidade de traduzir os desejos do cliente, é um trabalho colaborativo. Eles discutem a obra, as cores, tamanho, tipo de traçado e sombreado, localização, por vezes trabalham sobre a base de uma figura pré-estabelecida, por outras, o tatuador produz a imagem que ilustra o desejo do cliente. O tatuador é mais do que um artista (por vezes eles se autodefinem como artesãos), é um intérprete, capaz de gravar na pele do interessado o que ele supõe que o olhar dos outros quer ver ou vê nele.

Tudo o que é difícil de internalizar, quer seja por insuportável, como um luto ou trauma, quer por ser um vínculo frágil, quer por ser importante e incompreensível, poderá ter o destino de ser escrito sobre a pele. Assim fazem os amantes, principalmente quando temem a fugacidade das relações, tatuando os nomes dos que querem que sejam para sempre seus, o que em geral deixa-os com um problema quando a paixão acaba. Nesse caso, a intenção era justamente solidificar algo que deveria durar, lembrar aos dois que deveriam insistir na relação.

Da mesma forma, chama a atenção o fato que muitos pais têm tatuado o nome dos seus filhos, como forma de consolidar esse vínculo. Antigamente era a palavra “mãe” que víamos tatuada nos braços dos marinheiros, prisioneiros, daqueles que não tinham paradeiro, órfãos de pátria ou casa *[†]. Essa inversão, na qual não são mais os filhos desgarrados que se tatuam, mas sim os pais amorosos, leva-nos a questionar em que tipo de exílio sentem-se os pais hoje, para precisar carregar seus filhos na pele, evitando perder-se deles.

Práticas de apropriação do corpo

O corpo funciona como uma superfície onde se descreve e explicita nossa identidade. Se o hábito não faz o monge, ou seja, parecer com algo não garante que se é tal coisa, em contrapartida podemos afirmar que o monge não se faz sem os trajes que o caracterizam.

Em nenhum momento de nossa existência nos deixam estar nus: somos vestidos já ao nascer e mesmo após morrer. Ao chegar e partir nos arrumam conforme a tradição ou costumes em que vivemos, quer sejam panos rituais ou roupas enfeitadas, não há momento da vida cujas leis suntuárias não regulem a apresentação do corpo. Em determinadas épocas observam-se regras fixas sobre o que usar nesses casos, porém constatamos uma crescente tendência à personalização desses momentos de iniciação e luto.

A primeira roupa que se recebe tem hoje a forma dos sonhos dos pais investidos no filho, enquanto a última será uma tentativa de representar o que fomos, ou melhor, o que pensam que teríamos sido. Ao nascer, o menino será caracterizado com a cor do time do pai, a menina usará babados ou cores mais ousadas conforme for a fantasia de feminilidade da família. Os mortos usarão uma vestimenta que lhes era peculiar, um terno ou vestido enfeitado com os quais raramente foram vistos, a farda de seu ofício, seus enfeites, poderá ser apresentado de modo formal para sua última jornada, ou carregará aquilo que o faz parecer autêntico, similar à vida que o abandonou.

Nesses momentos iniciais e finais de nossa vida não escolhemos, mas ao crescer tendemos a opinar cada vez mais sobre a indumentária, a forma de dispor sobre os cabelos e pelos, a administração do que é visível e invisível. Vamos apropriando-nos do que supomos ter que ser, construindo nossa versão disso, ou seja, o que conseguirmos transformar em parâmetros pessoais. Houve tempos de menos liberdades, formas mais rígidas de pautar a imagem corporal, hoje aparentemente somos donos do destino de nossa imagem. Ou pelo menos, aparentemente donos.

A mulher que se submetia ao rigor do sufocante espartilho, em nosso imaginário equivale à pior representação da submissão feminina às regras de vestimenta que a oprimiam. Paradoxalmente, ela vivia uma liberdade que hoje não mais existe: ao chegar em casa após a festa ou cerimônia, uma senhora desatava as cordas e liberava suas carnes. Confinadas por estarem mal distribuídas, suas gorduras eram libertadas para que retornassem ao seu lugar: o ventre avultava, os seios podiam abandonar a posição de sentido. Hoje, ao chegar da festa, o desnudar-se revela outros espartilhos, desta vez internos: a barriga negativa, os seios fartos e duros, as curvas delineadas corretamente não deveriam desaparecer. Enquanto ideal, a nudez não mais se contrapõe à vestimenta.

A cultura de opressão dos corpos vai e vem, em geral ao sabor da cotação das liberdades sexuais, às quais são sempre associados. É interessante essa ideia de que o corpo se formata univocamente ao sabor do erotismo próprio a cada época, recobrindo maciçamente os prováveis objetos de desejo em culturas mais rígidas, ou editando o olhar em tempos que se dizem mais libertos. Mesmo nesses, homens e mulheres vivem preocupados em mostrar curvas e músculos os lugares certos e cuidadosamente delineados e sugeridos, emoldurados pelas roupas.

O sexo é leitura soberana sobre os outros usos do corpo porque nele fica encerrado o olhar alheio como razão de ser de uma imagem. Na condição de objeto de desejo sexual é como se existíssemos integralmente para ser o que alguém gostaria que fossemos. A maior revolução sexual hoje passa pela liberação do corpo, do qual o sujeito se reivindica proprietário, quer seja em debates sobre o aborto, assim como nas pouco toleradas indefinições ou escolhas diferenciadas de gênero.

Herdeiros da revolução de costumes dos anos sessenta, considerada a melhor sucedida entre as tantas reviravoltas do atribulado século XX, os corpos pareciam ter se libertado das regras que os escondiam e pautavam. O sexo livre, o direito da andar nus, de não depilar-se, os longos cabelos que caracterizavam a cultura do Unissex, teriam aberto precedentes para novas formas de expressão corporal. Mas a história sempre nos presenteia com fluxos e contrafluxos e os anos oitenta viram nascer uma nova paixão pela disciplina dos exercícios, das corridas, das dietas. Com ela vieram a anorexia, a bulimia, a crescente obsessão pelas plásticas.

Os jovens, que poderiam ser considerados netos da geração de Woodstock, também andam com pouca roupa, mas de modo diferente ao de seus vovôs Hippies. Alheios à temperatura externa, tentam andar por aí com as pernas, coxas, barriga e ombros sempre expostos: meninos em calções, mesmo no inverno, garotas com a barriga à mostra e saias tão curtas e apertadas que surpreenderiam a própria Mary Quant. As gestantes orgulham-se de exibir o ventre abaulado, que antigamente ocultavam sob recatadas batas, enquanto os mais velhos tentam manter um corpo que pareça jovem o suficiente para envergar a indumentária adolescente. Nunca fomos tão obrigatoriamente pelados.

É preciso ter uma disciplina espartana para dar conta do ideal de corpo cultivado e despido, da menina magérrima, de cabelo alisado por produtos químicos e do jovem malhado. Plásticas, remédios que inibam a fome e uso de anabolizantes não são parceiros incomuns nessa cruzada pela perfeição da imagem. Outrora era a gordura que representava a opulência, assim como a pele alva significava o ócio dos nobres. Hoje a magreza, o bronzeado, músculos não vêm do trabalho em si, mas dão um bom trabalho para serem montados, são atributos que igualmente mostram que seu proprietário tem muito tempo livre. Vestimentas e formas do corpo são como uma linguagem, dizem do seu portador como um discurso de auto-apresentação.

Tão disciplinados e expostos estão esses corpos, que, como forma de defesa ou de reapropriação, precisam ficar recobertos de insígnias “indespíveis”, fronteiras últimas sobre as quais o olhar insistente e desejável dos outros não passará. A pele tatuada, permanecerá para sempre oculta sob o pigmento, o olhar que pousa nela será conduzido ao ponto em que seu dono espera encontrá-lo.

Nas imagens ou letras gravadas permanentemente na pele há uma mensagem, quer seja de sedução, talvez ameaçadora, intimidatória, ou um nome que marca uma relação afetiva, amorosa ou familiar. São imagens ou palavras que definem as convicções e os vínculos do portador. O sujeito tatuado não será desprovido desse símbolo que escolheu para si, não se desnudará dele jamais, faz parte do seu corpo, por escolha. Na tatuagem há uma demarcação territorial, um limite para o olhar.

Nesse sentido, a tatuagem e a colocação de piercings, que são também enfeites permanentes, comungam mas também divergem de outras transformações corporais que visam adequar o corpo à norma, como as plásticas, implantes de silicone, preenchimentos, dietas e musculação. Todas essas modificações visam modelar a própria imagem com o objetivo de encarnar indicativos do Ideal do Eu, ou seja, nossa resposta ao que supomos ter que ser.

Quando nos aproximamos da norma, construímos um corpo obediente, sempre alerta ao ideal vigente, cuja forma seja uma flecha certeira em direção àquilo que se convencionou como desejável. Já nas inscrições, perfurações e escarificações em geral, a intervenção visa demarcar uma peculiaridade. É como assinar sobre si mesmo, fazer-se obra da própria imaginação. Se algum desses enfeites produz desejo, jamais será genérico, nem tampouco passará do limite que a pigmentação ou a presença do metal impõe.

O hábito corrente de usar alargadores de orelha leva o piercing a uma categoria mais profunda. Como qualquer brinco, ao ser retirado um piercing deixará apenas um orifício, enquanto o alargador ao sair deixará um lóbulo deformado, por isso passa a fazer parte do corpo do sujeito, como os alargadores de lábios dos índios Botocudos.

Ao contrário do corpo obediente construído pelos frequentadores de academia e cinzelado pelos cirurgiões plásticos, o corpo tatuado ou perfurado possui-se a si mesmo. Evidentemente, que um piercing pendente de um umbigo, por mais clichê que tenha se tornado, representa uma possessão pessoal da sua dona (é um adereço predominantemente feminino). É uma obstrução disfarçada do olhar, que revela o orifício, enfeitando-o, mas afasta o olhar e o toque com sua assinatura de metal brilhante.                Mesmo os mais acostumados sabem que aquilo foi um ritual de dor, de ferimento e que daquele pedaço de corpo tão a mercê dos outros, o dono se apossou de forma corajosa.

Prisioneiros dos sonhos dos pais

Nunca foi tão árduo crescer. Os jovens têm grande dificuldade de escolher um caminho, sentem que se desejarem algo específico estarão perdendo inúmeras outras oportunidades de prazer e realização. Para manter todas essas supostas potencialidades, suas vidas acabam tornando-se eternas promessas que tendem à frustração. Os pais também têm dificuldade de crescer, pois temem a velhice, o desafio de reprogramar a vida quando restam-lhes menos opções, pois já fizeram algumas escolhas e nem todas são reversíveis. Nesse sentido, a infantilização dos filhos serve aos pais como tentativa de parar a corrida do tempo. Fabricam-se marmanjos criados, vivendo com a família, mas alguma coisa neles tenta rebelar-se contra essa impossibilidade de tomar sua vida nas mãos e partir para fazer dela nada mais que o possível.

Para os filhos, colocam-se em paralelo duas demandas impraticáveis: de ser feliz e original. A primeira é a de garantir que se alcançará a felicidade através das escolhas certas, quer sejam amorosas ou laborais. Os pais fantasiam que a eles faltaram oportunidade e liberdade para traçar os caminhos conforme seu desejo, por isso supõem que com subsídios e sem restrições seu filho alcançará metas em relação às quais eles sentem-se em dívida.

A demanda de ser feliz traduz-se na proposta tão comum, que brota com naturalidade dos lábios de qualquer pai contemporâneo, quando afirma a seus filhos: “escolha o que quiseres para tua vida, só me importa que sejas feliz”. Obviamente a felicidade é a única garantia de sucesso que o filho não pode oferecer ao pai, pois ela é fugaz e geralmente passa despercebida. Sem falar que é intransitiva: ser feliz como? Não aponta para nada e pede tudo.

A segunda exigência é a de que cada gesto, atividade ou obra seja uma pequena revolução, estando uma suposta criatividade no topo dos atributos mais desejáveis na trajetória de uma vida. Dessa forma, cria-se uma cultura onde a rotina, o tédio e a entrega a qualquer escolha que tenha sido feita são vistas e temidas como expressões de acomodação e mediocridade, quando não de falta de inteligência.

A combatida epidemia de hiperatividade, o problema dos sujeitos que não se focam onde deveriam, é sintomática de um tempo onde é considerado menor deter-se sobre qualquer coisa, no qual não se pode parar3 **[‡]. O problema é que a maior parte das escolhas, principalmente as mais visadas, que são o amor e o trabalho, decorrem de uma solução de compromisso entre desejos e exigências culturais e familiares.

Nossa vocação, assim como os vínculos que constituímos, na prática são expressões que podem ser consideradas mais sintomáticas do que símbolo de liberdade. Cada um faz o que pode, negociando entre o que supõe que se espera dele, o que ele se julga capaz, seus temores, inibições, os desejos que consegue assumir e as oportunidades que surgem. Sobre esses caminhos, que mais nos escolhem do que são escolhidos, o sujeito poderá fundar uma reflexão, criar uma versão ou até uma reação a eles, mas precisará acabar reconhecendo que ninguém tem um leque de opções tão amplo quanto se imagina.

Ao contrário das décadas anteriores, não há hoje um impulso de sair de casa. Pais e filhos já não disputam valores, e sim territórios. A discussão já não é sobre o que pode ou não pode, mas quando vai se poder. Sexo na casa dos pais já não é tabu, consumir drogas ditas leves como maconha também não. “Para que sair de casa, se bem ou mal, posso tudo lá dentro?”, pensam os jovens, aderindo, sem dar-se conta, à demanda de procrastinar o crescimento.

A permanência junto aos pais alongou-se. Colocar marcas corporais, em muitos desses casos, é uma tentativa de afastar esse corpo crescido do zelo parental que se prolonga em moços e moças que têm segurança, casa, comida e roupa lavada, quando já poderiam estar providenciando tudo isso por conta própria. Frente a isso, muitas vezes fazer uma tatuagem, colocar-se piercings, são tentativas de demarcação do território corporal.

Numa vida na qual os pais se apossam tão gulosamente do destino dos filhos, em que vampirizam sua juventude, não surpreende que o corpo seja a última fronteira de si, de possessão pessoal. Trata-se daqueles que, embora possam estar entre os que “têm tudo”, não têm mais do que seu computador, um quarto ou cama, em geral arrumados pela mãe, como lugar próprio, por isso precisam recuar as defesas para o derradeiro território do corpo.

A pele é, neste caso, um limite último para a invasão e as marcas são tentativas de cercar essa propriedade. Trata-se de uma forma de rebeldia bastante regressiva, pois almeja-se muito pouco além de que gerir a própria superfície, o que deixa os outros com grande liberdade sobre o resto de suas vidas. É uma situação muito similares à nudez desejável na indumentária dos jovens. Estes, obrigados a expor partes do seu corpo supostamente perfeito, por ser de pouco uso, ao olhar dos outros, pelo menos as enfeitam com marcas que lembram: esta barriga, este torso, este braço, esta virilha, são meus, ou “são mim”, como diria o psicanalista Ricardo Rodulfo.

Ele lembra-nos que a “formação de superfície” é uma das funções do brincar5. Conforme o autor, para o bebê faz parte dessa atividade de delimitação de si o recobrimento, para o qual ele tratará de se besuntar, de espalhar suas babas, papas e cacas. O pequeno coloca todos esses revestimentos sobre sua pele e acontece mesmo dele ficar desorganizado ou furioso quando a higiene o priva disso. Com esse recurso, o bebê não demarca algo que ele tem, mas sim algo que ele é. Tatuar-se, desenhar a própria pele, poderia ser entendida como atividade herdeira dessa forma rudimentar de brincar, pois a infância deixa restos que carregamos ao longo de toda a vida.

A tatuagem é uma mistura da atividade de desenhar, ou mesmo de brincar, quando se viabiliza uma expressão imaginária para os desejos e conflitos, utilizando esses recursos primitivos de formação de imagem corporal. Se puder funcionar como uma formação de superfície que ninguém poderá limpar, talvez seja como a vingança do filho que já cresceu contra uma nova versão da higiene materna inclemente. Pode, nesse caso, operar tentativas de resistência contra o caráter prepotente das expectativas alheias, e mesmo ser uma forma de proteger-se e minimizar a força da imposição dos sonhos de adultos que se sentem tão invejosos e maravilhados com sua adolescência. Através dessas práticas artísticas de intervenção corporal, os jovens tentam resistir, para ficar menos à mercê, evitando que sua mente seja tratada como antes faziam os cuidadores, que dispunham do seu frágil corpo de bebê.

O corpo cresce numa tensão ambígua, entre a alienação e a separação, ou seja, entre constituir-se apoiado num olhar de fora, a função especular do olhar materno, e a necessidade da demarcação pessoal. Esta última é uma tentativa de separação entre o dentro e o fora do corpo, entre o íntimo e o público. É aqui que uma certa rebeldia nos gostos, a irreverência indumentária dos jovens, a colocação de um piercing, uma tatuagem, uma alteração na pele, podem ser tentativas de fabricar essa assinatura.

Uma assinatura é uma forma pessoal de grafar-nos. Ao mesmo tempo em que aceitamos o nome que nos deram e os códigos da lecto-escritura que nos ensinaram, ao criar uma assinatura descobrimos um modo de escrever o nome que é original e particular. Já um apelido é uma corruptela do nome próprio, é um nome recebido a partir de nossos atos entre os pares e familiares.

As tatuagens e demais marcas corporais fazem com o corpo o que a assinatura e o apelido fazem com a nomeação. Elas são uma personalização, ao mesmo tempo que uma forma de aceitar e acrescentar à nossa identidade, de forma digerida, a influência dos outros.

Traços de conclusão

Os jovens tatuados são filhos e netos de adultos que se horrorizam ao ter seu corpo marcado pela vida. Lutam contra rugas e traços de expressão, como se o envelhecimento fosse uma gradual possessão a exorcizar. Em contrapartida, a tatuagem chega como uma marca indelével do vivido: “Vejo meu corpo como um livro, as tatuagens estão lá para documentar diferentes momentos e histórias da minha vida”, declarou um jovem inglês de 31 anos5. Trata-se de desenhos e inscrições que funcionam como uma estilização das marcas do tempo, como uma ruga bonita. Vai nesse sentido a afirmação de uma jovem que, habituada a lutar contra a acne, colocou um piercing que dizia ser “sua espinha bonita”, mostrando que ao introduzir uma marca pode-se de fazer ativamente o que o tempo e as doenças submetem um corpo passivo.

Tatuar-se é uma forma lúdica de introduzir mudanças que também ocorreriam no decurso da vida. É o oposto, ou talvez um diálogo, com o hábito das plásticas, que quer manter o corpo ilusoriamente intacto. Se para os tatuados seu corpo é uma tela pintada, para os entusiastas das plásticas ela deve permanecer sempre em branco. Poderíamos pensar as tatuagens, adereços e modificações corporais como reação a esses hábitos disciplinares do corpo, o corpo tatuado como o contraponto ao corpo de academia. Enquanto um é singular, único, o outro tenta adequar-se a padrões estabelecidos. São atitudes antagônicas mas que respondem à mesma demanda de montar uma aparência compatível com uma identidade socialmente desejável. Ambos são uma tentativa de resposta às questões suscitadas pelo olhar do outro.

A vida é passageira e ela anda mais rápido que nossa capacidade de compreendê-la, produz mais eventos do que temos condições de armazenar. Alguns tatuados, fazem de sua pele sua autobiografia. A cada nova figura, inscrição, vão acrescentando as marcas do vivido, os nomes das pessoas amadas, as referências culturais e posicionamentos políticos importantes.

Muitas dessas pessoas voltam-se para a tatuagem como uma forma de arte, fazem dela um ofício, constituem grupos de tatuados e chegam a ter todo o corpo recoberto dessas citações. Nessa forma extrema, confirma-se a condição de linguagem e de estabelecimento de identidade dessa prática, que se estende a outras formas de modificação corporal. Se da vida pouco se leva, pois as transcendências estão em remissão, e só temos esse corpo, como forma de “eu”, não nos estranha que tantos estejam a escrever nele o que não pode e não deve ser esquecido.

Levando em conta a tendência histórica, os tempos são de incremento do individualismo, ou seja, cada vez mais uma subjetividade se apoia menos nos outros que a circundam, extrai menos significação dos grupos a que pertence, e joga-se na ilusão de ser único e singular num mundo tão plural. Ora, nesse sentido as marcas corporais ajudam muito a ser um exemplar especial e ímpar. É preciso tomar cuidado para não confundir individualismo com narcisismo, como tantas vezes ocorre: esses corpos enfeitados estão numa perspectiva do olhar dos outros, eles não se esgotam em si mesmos, incluem esse olhar em sua constituição.

São tempos em que tudo que é recebido precisa ser personalizado. Ninguém se permitiria ser meramente uma consequência de sua origem, educação, desejo dos pais, hábitos e costumes de um lugar. Todos querem orgulhar-se das versões particulares que produziram, a partir de uma herança que nem sempre reconhecem. O “fazer-se a si mesmo” deixou de denominar, como originalmente acontecia, uma ascensão social que seja fruto de esforços e capacidades do sujeito, que o levaram além do que sua origem lhe proporcionaria.

Hoje é preciso fazer-se lançando as próprias bases, pelo menos é isso que se gosta de acreditar. Para tanto é preciso formatar um corpo, construir uma identidade sexual, ser parcimonioso em relação às formas de vincular-se com os familiares, principalmente os antepassados, questionar e revolucionar a hierarquia. O mesmo ocorre com o conhecimento que passa de geração em geração: outrora mediado pela valorização da experiência dos mais velhos ou antepassados, hoje precisa funcionar como um saber disponível que o sujeito em formação vai dispor, questionar e usar à sua medida. Tudo deve ser ativo, criativo e de preferência original. Dessa forma, a “desnaturalização” das identidades sexuais, assim como etárias, responde a esse modo de funcionamento6 ***[§]. Cada um encontrará sua forma entre os parâmetros da feminilidade e masculinidade, assim como entre as condutas esperadas para cada época da vida, de preferência subvertendo essas expectativas sociais de um modo sempre pessoal e particular.

Vivemos uma explosão de identidades sexuais, que já foram definidas apressadamente como uma recusa à castração, a submeter-se o que o acaso genético nos deu. Seria, no entanto, mais produtivo entender esses fenômenos como um sintoma do paroxismo dos tempos individualistas, nos quais se espera que cada um se torne algo, faça a si mesmo, à sua própria medida. Então, por que não, definir sua própria identidade sexual? Por que não modificar o corpo e “fazer-se”?

As marcas corporais, portanto, devem ser entendidas nesse contexto maior, no qual hoje nos apoiamos mais em nossos corpos para ser alguém. Acreditamos que fazem parte do mesmo quadro histórico que produz tantas academias, dietas, disciplina corporal. Há uma preocupação obsedante com a saúde e com a aparência, que redunda num exagerado cuidado com o corpo. Talvez essas diligências apontem para novas formas de subjetivação cujos significados ainda nos escapam. Por isso, seria uma pena simplesmente encaixá-las em velhas fórmulas. Por que não permitir que essas novidades também tracem, imprimam, ilustrem novas sutilezas para pensar a juventude, a sexuação, a construção da identidade social?

Referências

1. Freud  Sigmund. In:  Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976. p. 23.

2. Macnaughton  Alex. London Tattoos. Munich-London-New York: Prestel Verlag, 2011, p. 17.

3. Kehl  Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, P.276

4. Rodulfo Ricardo. O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

5. Macnaughton  Alex. London Tattoos. Munich-London-New York: Prestel Verlag, 2011, p. 17.

6. Costa Ana Maria Medeiros. In: “Se fazer” tatuar: traço e escrita das bordas corporais. Revista Estilos da Clínica, 2002, Vol. VII, número 12, p.60.

(texto publicado na Revista Brasileira de Psicoterapia 16(1):138-150)


[*] …um ferimento ou dano inflingido simultaneamente operam, via de regra, contra o desenvolvimento de uma neurose.

*[†] Trabalhei na década de 80 com perícias no sistema prisional gaúcho, foi onde constatei um bom número de prisioneiros que tatuavam a palavra mãe ou o nome da sua progenitora. (nota de Mário Corso).

***Maria Rita Kehl faz essa leitura da hiperatividade, considerando-a sintomática de sujeitos que dão seu melhor para corresponder a essa demanda de ser tudo: “ São crianças acossadas pela demanda, cujo tempo psíquico foi atropelado pelo excesso de investimento da mãe e dos outros adultos à sua volta.”

****A psicanalista Ana Maria da Costa lembra que essa desnaturalização é intrínseca à constituição do sujeito: “não há um suporte natural para nosso corpo e, por outro lado, não há assimilação completa da representação do nosso corpo. Por essa razão estamos sempre fazendo passagens, traduções, interpretações. Temos sempre que inventar possibilidades de inclusão, ou formas diferentes de circulação.”  Portanto, trata-se de investigar as características que, em cada época, essa insuficiência da representação do próprio corpo vai assumindo.

Barbies Monstruosas

Seja você mesma, seja única, seja uma monstra! (interpretando as Monster High)

Frankie Stein é uma garota interessada em moda, só tem um inconveniente: as vezes se desmonta. Sem problemas, depois se recostura. Draculaura é uma vampirinha vegetariana que precisa lidar com a dificuldade de não se enxergar no espelho, enquanto Clawdeen Wolf tem problemas que não há depilação no mundo que resolva. Um dos amigos destas e de tantas outras garotas diferentes é Jackson Jekill, que evidentemente sofre de dupla personalidade.

Essas personagens são bonecas, você já deve ter visto alguma nas mãos de uma menina ou em uma vitrine de loja, fazem parte da coleção das Monster High, produto da Mattel. Elas servem para brincar de vestir e desvestir como qualquer boneca. Poderíamos, por isso, colocá-las na vala comum dos brinquedos que servem mais para ostentar e para garantir a transmissão dos clichês femininos do que para brincar. Porém, seria uma pena fazer isso sem parar para olhá-las melhor.

Por trás da sua aparência de patricinhas, essas bonecas importam algo das conquistas do universo do Shrek para dentro dos tradicionalmente estereotipados brinquedos para meninas. Mesmo quando confinadas ao universo restrito de roupa e casa das Barbies, definitivamente, nossas meninas já não são as mesmas. Pelo menos na aparência. Claro, nem todas as barreiras caem, infelizmente as Monster High são todas magérrimas, a gordura ainda é imperdoável até entre as monstras.

As crianças contemporâneas têm insistido em seu gosto pelo susto, assim como pelo monstruoso, pelo que é feio. O ogro verde mostrou que o feio pode ser bem mais bonito, que o desejo de perfeição e a discriminação ao que foge do padrão podem ser a verdadeira feiura, que o que dá medo pode ser interessante. Além de que as pessoas de verdade fazem pum, têm chulé, mexem no nariz e isso não as torna monstruosas.

O medo é um importante instrumento para organizar o mundo: através dele classificamos o que é perigoso e o que é confiável, o que é seguro e o que inspira cuidados. Sabendo o que temer podemos também relaxar quando estamos longe e a salvo do que nos apavora. O medo nos livra da angústia que é mais insuportável. Por ser constituída de sensações vagas, portanto não ter um objeto claro que represente a ameaça, ela nos deixa reféns de tudo, é puro sofrimento. Quando elegemos algo para ter medo nos livramos dela.

As Monster High são uma amálgama de todos esses elementos: as bonecas tradicionais, a importância do susto, a abertura aos diferentes padrões de beleza e de comportamento. Vampiros, múmias e zumbis são mortos, lobisomens são obrigados a se comportarem como animais, frankensteins são assustadoramente remendados: como vemos, maldição e morte estão longe de serem tabus para as crianças contemporâneas. Elas deixam explícito seu gosto pelo terror, assim como pelo monstruoso, pelo que é considerado feio. Como os mexicanos que no seu Dia dos Mortos brincam e festejam com o que mais tememos, as crianças estão nos lembrando que não adianta colocar o que assusta, questiona e impressiona para baixo do tapete, pois aí sim é que vai nos assombrar. Seja ativo com o medo, como diz o lema do grupo: “Be yourself, be unique, be a monster”.

Ora, um dos temas de quem está transitando entre o fim da infância e entrando na adolescência, ou seja, o árido e áspero território da puberdade, é justamente a questão da imagem corporal. Nesse momento estamos mais frágeis quanto ao lugar que nosso corpo ocupa, e como somos vistos pelo outro. É a época da feiura, senão real pelo manos fantasiada, e também quando afloram problemas de dismorfofobia (ver-se deformado). São também comuns versões mais brandas desse litígio com o próprio corpo, como por exemplo engordar de tal forma que as curvas sexuais fiquem borradas e com o corpo ainda não tão sexuado como o corpo infantil que foi recém abandonado, assim como emagrecer a ponto de eliminar todos os volumes. Enfim, que uma boneca traga esse tema, que capte o mal-estar com o corpo da puberdade não é de se espantar, poderíamos até pensar o contrário, como que elas só chegaram agora.

Outra questão que as Barbies e outras bonecas não trazem é a forte marca da herança. Essas senhoritas monstruosas são como seus pais, trazem na carne uma história que não se pode negar. Embora em nosso tempo a maior parte das pessoas se iluda que devemos ser desenraizados de nossos pais, fazermos nós mesmos nossas trajetória, é óbvio que não partimos do zero.

De certa forma, o peso dos nossos pais é uma maldição a carregar. Entenda-se maldição dentro do universo das crenças contemporâneas, se negamos a sociedade tradicional, onde éramos uma continuidade lógica dos nossos antepassados, hoje eles são um pesadelo para nossa tarefa de construir-se por si mesmo. Essas bonecas retomam o peso da origem que recalcamos com tanta força. Na verdade, só admitimos uma herança no terreno formal e frio da genética, mesmo assim sob a forma de doenças herdadas, portanto, persiste a ideia da maldição. Pelo menos as crianças estão se permitindo brincar de serem marcadas por um destino

Os clichês da identidade feminina não vão cair do dia para a noite, mas enquanto meninas não costumam brincar de carrinhos, nem meninos de boneca, essa profanação estética ao modo de Barbies monstruosas já vem a calhar. Meninas também querem acesso livre ao mundo monstruoso e fantástico, chega de cor de rosa, que já não condiz com o tipo de mulher corajosa, franca e guerreira que irão se tornar. Por que não, então, brincar de bonecas no trem fantasma?

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