Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?
Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?
O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:
“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)
A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)
“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”
Uma Cinderela ao contrário: vinte anos da morte de Lady Di.
Lady Di foi uma princesa diferente, casou-se para ser infeliz para sempre. Ascendeu e morreu como sua precursora midiática Grace Kelly, mas representou o lado obscuro das celebridades do fim do século XX. Cada tempo tem a princesa que precisa.
Lady Di foi a primeira princesa-celebridade à inversa: casou-se para ser infeliz para sempre. Foi célebre em sua transformação de uma nobreza obscura na princesa mais midiática que a monarquia britânica já teve. Não estou falando de presença em tabloides, fofocas e outras bobagens que oferecem o material que mantém o reinado em pé. No caso da nossa princesa, ela foi icônica em sua beleza, em seus segredos que nunca foram secretos, em sua oposição silenciosa e escandalosa à opressão real da rainha mãe. Todos sabemos sem saber dessas coisas, tão provavelmente inverídicas ou verídicas, tanto faz, mas certamente formatadas pelo interesse popular. Cada tempo tem a princesa que merece…
Diana foi a Cinderela ao contrário: foi escolhida, casou-se, caiu nas graças do povo mas não da casa real. Criou brilho próprio como diplomata e filantropa, teve vazadas suas depressões, anorexias e a dor pela frieza do marido. O príncipe, o mundo todo sabia, tinha sua paixão, que nunca foi ela. Diana é uma princesa mártir: ocupou seu lugar público, guindada a ele pela condição de esposa, sem nunca ter tido o direito ao trono no coração do aparentemente insípido consorte. Sua atuação pública, além dessa condição de uma certa marginalidade entre os nobres (apesar de sua linhagem), é de uma dedicação às causas humanitárias mais destacada do que havia sido visto em suas antecessoras.
O povo tinha de tudo para se identificar com ela: uma nobre que “não fazia parte”, como todos nós plebeus somos excluídos da nobreza; uma princesa com enorme coração, contrariando a vocação monárquica a ser mimados e indiferentes à fome. Lady Dy foi, então, uma nova síntese de verdadeira nobreza com seu oposto, os oprimidos, os plebeus sem valor frente à realeza, as mulheres abafadas e deprimidas pelo casamento. Ela ascendeu aos céus da admiração e também declinou em público, celebrizou-se pelo carisma e pelo sofrimento, em sua vocação para o martírio que angariou todo tipo de sentimento, menos a indiferença.
Muito se disse sobre a condição de celebridade que logo se colou à sua figura carismática, mas não podemos esquecer que a mistura de monarquia com show business já havia sido inaugurada em nosso tempo pela classuda Grace Kelly. A atriz loira e perfeita que subiu ao trono de Mônaco realizou o sonho de todas as plebeias: ser vistas pelo príncipe, escolhidas e levadas ao altar real.
Kelly já era icônica antes de tornar-se princesa. Como soberana, venceu, sem concorrer, todos os títulos de beleza nobiliárquicos e politicamente foi ativa em várias causas humanitárias e artísticas. Não é à toa que o casamento de Diana Spencer, 32 anos mais nova do que a mítica soberana loira do pequeno principado, foi referenciado no de Kelly. Este foi constantemente evocado durante a pomposa cerimônia televisionada da a transformação de Lady Di em Princesa de Gales.
Mas Diana era outro tipo de princesa, mais afeita à condição tumultuada das atrizes e figuras públicas contemporâneas, onde o escândalo não é feito de traições aos “bons costumes”, mas sim de exposição dos momentos de fragilidade pessoal, que também compõe o glamour. Por isso, nossa Cinderela britânica às avessas, é representante do “infelizes para sempre”. Hoje, fazem vinte anos da sua morte, em um acidente automobilístico, como James Dean, Grace Kelly e tantos habitantes reais do nosso imaginário. Eles foram mártires da velocidade e da nossa voracidade midiática.
Hoje as princesas são outras: anti-princesas, Valentes, Maravilhosas e guerreiras. Parece menos perigoso para as mulheres, pois lutam batalhas reais, arriscam suas vidas, mas, como se costuma nos contos de fadas, sempre vencem. AS herdeiras de Lady Di são soberanas feministas, adiam a escolha de um príncipe, privilegiam a sororidade. Elas protagonizam cenas perigosas, mas nenhuma delas vitimou tantas mulheres quanto a depressão, grande inimiga do passado, antes que pudessem combater no mundo real. Lady Di ficaria surpresa se pudesse ver quão longe as novas princesas puderam chegar, talvez o
13 razões para morrer em vez de crescer
Por que as fracas razões do suicídio de Hannah soariam convincentes para outros adolescentes?
E se a vida adulta fosse um lugar para onde ninguém quer migrar? E se nosso presente fosse um futuro que ninguém quer ter para si, nem nós? Há um rumor de que muitos dos que são hoje adolescentes correm o risco de desistir da vida antes de virar adultos. O medo de que esteja ocorrendo uma espécie de epidemia suicídio de jovens, similar ao mito do suicídio de lêmingues, diz muito dos adultos que os trouxeram ao mundo e dos que ocupam-se deles enquanto terminam de crescer. Talvez, para os mais velhos, seguir adiante, deixando a adolescência para trás, esteja equivalendo a morrer.
Essa preocupação diz respeito, evidentemente, aos bem nascidos, os que “têm tudo”. Os outros são dizimados na guerra do tráfico ou na carnificina da prostituição, assim como ocorre com os que vivem em nações em guerra. Para estes, o futuro não é uma opção, a realidade incumbe-se de tirar-lhes a vida na flor da idade. Onde foi que falhamos para temer a desistência de tantos entre os que poderiam dar-se ao luxo de realizar os melhores sonhos que idealizamos para eles? Por que eles se negariam a receber essas dádivas que nossa sociedade injusta oferece a tão poucos? Precisamos vê-los aproveitar o maravilhoso pacote de diversões adolescentes que lhes vendemos para alicerçar a crença no ideal da eterna juventude. Pais e adultos em geral têm investido fortunas em produtos, elixires, comportamentos e promessas que lhes forneçam a ilusão de ter devolvida e preservada uma adolescência de plástico, de filme publicitário, provavelmente em nada parecida àquela que viveram.
Um encontro bem sucedido entre a indústria de entretenimento e seu público acendeu esse rastilho de pólvora: o pânico dos adultos de que seus adolescentes se suicidassem. 13 Reasons Why, o seriado, chegou às telas caseiras dez anos depois do livro que lhe deu origem, Os 13 porquês, de Jay Ascher, lançado em 2007. Trata-se da história do suicídio de Hannah Baker, uma garota norte-americana de classe média. Rapidamente os jovens jogaram-se em maratonas para assisti-lo, enquanto seus mais velhos passaram a alarmar-se com ele, temendo uma onda de suicídio coletivo. Um seriado não tem o poder de ser uma espécie de Flautista de Hamelin, cuja melodia levaria nossos jovens a jogar-se de um precipício como os ratos. Nossos temores dizem mais da relação que nós adultos temos com a juventude do que da vontade concreta dos adolescentes de tirar a própria vida.
Ao longo de 13 episódios, ou capítulos, somos convidados a escutar as gravações deixadas após a morte de Hannah, nas quais ela vai arrolando os acontecimentos que a motivaram a cortar os pulsos. Em cada uma das fitas cassetes, que ela deixa para serem ouvidas por aqueles a quem culpa pela sua morte, ela vai tecendo seus sofrimentos e responsabilizando uns e outros por isso. Ha situações graves, como por exemplo ter sofrido um estupro, assim como ter sido obrigada a presenciar situação similar ocorrida com uma amiga. Porém, encontramos também motivos mais pueris, como o desentendimento com uma amiga e o fato de uma poesia da protagonista ter sido publicada, anonimamente, à sua revelia, por um colega que admirava seu trabalho, e ter chamado a atenção na comunidade escolar.
A série foi considerada um alerta sobre os efeitos letais do bullying na adolescência. Na tela, a comunidade escolar e as famílias entram em uma espécie de histeria coletiva, como se todos os alunos estivessem em risco de suicídio, vitimados pelos maus tratos sofridos por parte de seus contemporâneos. Fora da tela, passou a considerar-se a série como um potencial gatilho que levaria seu público a imitar o ato da protagonista.
Quem consegue lembrar-se, sabe que os anos adolescentes não são fáceis de transpor, porém, se tantos se sobrepujaram a essas dificuldades, por que os jovens atuais não o fariam? A forma explícita em que o ato suicida é apresentado na série parece ter o potencial de funcionar como uma espécie de tutorial para ensinar aos jovens a matar-se, assim como muitos supõe que a violência nas telas ou games os levaria a empunhar uma arma e sair dizimando seus colegas. Embora o entorno social exerça fortes influências, tanto mais potencialmente negativas quanto mais frágeis sejam os indivíduos, o suicídio não funciona por simples contágio, assim como tampouco ocorre com a violência. Descartado isso, faltaria indagar por que as treze razões de Hannah soariam convincentes para sua audiência.
O que teria algum potencial para despertar identificação é a certeza da protagonista de ser vítima de maus tratos ou de descaso por parte, principalmente, dos outros jovens. Ela é branca, de classe média, inteligente, bonita e nasceu em uma família amorosa, com pais que tentam comunicar-se com ela, respeitar seus desejos e propiciar-lhe todas as condições possíveis para realiza-los. Mas Hannah sofre constantemente.
Ela enfrenta a selvageria própria da cultura fútil de aparências em que vivemos, ambientada naquele habitat, tão popular nos seriados norte americanos, em que o Ensino Médio equivale a uma espécie de ilha onde são confinados exemplares dos piores tipos de espécime humano. Nenhum de nós, após ter passado os anos adolescentes, discordará de que é um trecho da vida que pode adquirir tintas bem dramáticas, no qual somos destinados a viver em um lugar bem pouco arejado. Para piorar, somos uma péssima companhia para nós mesmos: a autocrítica feroz, tanto mais quanto espera-se tanto dessa etapa da vida, é a musa que canta durante todo o percurso adolescente.
Os outros são considerados um inferno quando os imaginamos fazendo eco ao autodesprezo que sentimos. Nossos contemporâneos, cada um às voltas com os mesmos dramas, são incapazes de olhar para fora, também imersos em suas próprias ruminações narcisistas e autodepreciativas. Paradoxalmente, os adolescentes precisam de amigos e amores como de oxigênio, como contraponto ao vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços familiares. A tendência natural é, então, que amores sejam trágicos ou arrebatadores, enquanto as amizades envolverão pactos se sangue ou traições imperdoáveis. Se esse olhar amoroso dos pares não for capaz de curar as feridas do desamparo, os adolescentes sentem-se frágeis, inconsistentes, à morte, mas raramente morrem disso.
Na vida de Hannah, seus colegas, tão autocentrados como ela são acusados da mesma incapacidade de empatia que ela própria demonstra amplamente ter. Ela não liga para as dificuldades alheias: a timidez paralisante, o medo de assumir-se gay, as durezas de uma família devastada pelas drogas, a rigidez militar dos pais de seus amigos, a dor de ter presenciado o suicídio da própria mãe, a fragilidade dos que cercam lideranças perversas. Nenhuma das histórias dos outros parece ter a mínima relevância para a jovem suicida. No palco, os holofotes focam apenas seu único e precioso sofrimento.
Por que solidarizar-se com tanto egoísmo? Certamente isso é uma tentação para aqueles que ficaram presos a uma posição infantil ou são eternamente saudosos dela, pois acreditam ter nascido para ser cuidados e admirados incondicional e eternamente. Tal atitude majestosa só cabe às crianças bem pequenas, que iludem-se na condição de bibelô da casa. Os adolescentes e adultos que recusam-se a admitir qualquer protagonismo nos revezes sofridos querem ser como esses bebês, iludidos no amor supostamente onipresente dos seus pais. Ao longo da infância vamos percebendo que não é bem assim, que eles são mais fracos e desatentos do que gostaríamos. Graças a isso vamos desligando-nos deles, interessando-nos por outras pessoas, por assuntos fora do lar, por brincar e falar, por crescer. A adolescência é o trecho mais decisivo dessa separação, quando começamos a partir de vez. Por isso mesmo é uma fase tão difícil, na qual duvidamos fortemente ter forças, ou mesmo desejo, de fazê-lo. Nesse sentido, o que mais preocupa na popularidade desse seriado não é que ele pudesse desencadear uma epidemia de suicídios juvenis, é sim tanta empatia como uma personagem cheia de autocomiseração e tão pouco disposta a incumbir-se de suas amarguras e de sua própria vida.
Tal identificação de fato pode ocorrer, não no sentido do suicídio, mas dos sofrimentos daqueles que acreditam estar sempre no centro dos olhares, tal como Hannah. Trata-se de um expediente bastante simples para lidar com a perda do lugar central que as crianças supõe ocupar no amor dos pais: projetá-lo fora de casa, supondo-se igual importância, mesmo que às avessas.
A tarefa da sedução amorosa, a que se entregam os adolescentes apaixonados, é um antídoto contra esse narcisismo infantil. Tomar medidas para despertar o interesse daqueles a quem desejamos depende de uma sabedoria oriunda da experiência de desencontros com o afeto e interesse dos pais. O apaixonado supõe que é preciso fazer algo para chamar a atenção e fazer-se amar. Se a queda do trono de criança majestosa não tiver ocorrido, todo tipo de dificuldade será sentida como uma rejeição insuportável, uma estocada a mais na dor da separação com os pais. Se acrescentarmos a isso o ingrediente de famílias que colocam seus descendentes, até avançada idade, como príncipes e princesas cujos desejos são uma ordem, teremos muitos jovens como Hannah. Serão incapazes de enfrentar qualquer revés com outra reação diferente de uma chantagem: se não for como espero, não brinco mais, vou morrer e a culpa será sua. Para estes, se sua presença não puder ser majestosa, quem sabe sua ausência seria?
Mas estes são tipos raros, pois a maior parte dos adolescentes tende a não cair no canto de sereia dos mais velhos, que lhes oferece a comodidade hipnótica de ser mimado para sempre. Desse modo, seus pais nunca envelheceriam, jamais se tornariam superados e obsoletos e nunca criticariam os pais. Até os mais “malcriados” dos filhos acabam por revelar insatisfações com o ninho e apontam para fora dos limites do lar. Fora de casa, quer para os melhor preparados, quer para os mais imaturos, os desafios são assustadores e o convívio com os outros de sua geração a prioridade. Se pudéssemos dizer a um verdadeiro adolescente uma única frase, na tentativa de dar-lhe força para transpor os revezes dessa época seria: “acredita, isso acaba!”.
A ideia de passar vários anos em um convívio cotidiano com outros jovens igualmente destemperados, por horas imóveis em um único recinto, parece ter se tornado um pesadelo para boa parte das pessoas. Esse lugar é a escola. Se pelo menos tivéssemos clareza de que isso é temporário, ajudaria. Mas quando estamos lá parece que não haverá amanhã. O presente é opressivo, tem-se a sensação de estar preso em um filme infinito, sem cortes nem edição, em um único plano sequência. Do futuro, nada se espera, pelo simples fato de que um jovem custa a acreditar em sua capacidade de fazer algo com sua vida.
O futuro é tanto mais incerto quanto tem sido vendido como indesejável. Para muitos, ser adulto passou a equivaler a uma gincana de tarefas sem sentido, desprovidas de glamour. Pelo menos é assim que os desmemoriados dos pesadelos da juventude vendem o sonho de ser bonito, forte e sensual, como um estado que deveria ser ininterrupto. Mas são raros os adolescentes que realmente enxergam-se assim, mesmo os poucos que o olhar alheio coloca no pódio da existência. Isso sem contar o fato de que a maior parte considera-se carta fora do baralho das perfeições estéticas.
Hannah é linda, desejada por muitos e admirada por alguns, que lhe dedicam a amizade e lhe propõe alianças naquele ambiente hostil. O outro protagonista da série, uma espécie de narrador do seriado, é tão tímido quanto apaixonado por ela. O garoto custa a declarar-se devido à sua insegurança, essa teria sido sua falha, a razão que lhe coube. Portanto, o ambiente para nossa heroína não é mais hostil do que para seus contemporâneos, mas ela queixa-se, acusa, arma verdadeiras ciladas para os que convivem com ela de modo a provar a si mesma e à posteridade que não foi escutada, amada e respeitada o suficiente. Suas reclamações fazem eco em jovens e adultos porque gostamos de crer que alguém é mais responsável do que nós mesmos pelo destino que escolhemos.
Por outro lado, entre as motivações para seu ato, encontram-se, principalmente, as várias formas de opressão às mulheres, muito mais ameaçadoras quando elas encontram-se no auge de seus atrativos físicos. Constrangimentos verbais, postagem de fotos comprometedoras na rede, maledicência e, por fim, o abuso sexual propriamente dito, são práticas, infelizmente, correntes e tradicionais.
As adolescentes sempre lidaram com isso como se fosse inevitável, até que o movimento feminista começou a viabilizar-lhes a coragem para reagir e organizou uma pressão social para que suas denúncias fossem recebidas de forma respeitosa. Nossa personagem e suas amigas não partilham desses avanços, inclusive têm parca solidariedade entre si, mas a série revela sofrimentos que garotas e mulheres contemporâneas não têm deixado serem varridas para baixo do tapete. Portanto, poderíamos dizer que estamos frente a um seriado interessante, no sentido da denúncia feminista dos perigos do bullying contra as adolescentes. Curiosamente, não tem sido essa a razão de sua popularidade.
“Suicídio é para fracos”, diz uma personagem secundária, uma garota estranha, sofrida e forte que vai ganhando visibilidade ao longo dos capítulos. Ela é a única que realmente ousa criticar a protagonista principal, cujas reivindicações tantos, dentro e fora do seriado, parecem validar. Para a maior parte do público, estamos em permanente dívida com os adolescentes. É imprescindível provê-los de mais, sempre mais recursos e cuidados, ignorando que é justamente assim que se constrói uma gaiola dourada onde eles ficam presos em nossos sonhos e fadados a uma fragilidade poli-queixosa.
Se nossos verdadeiros sonhos forem os da juventude eterna, que gostaríamos de ter tido, crescer lhes seria proibido e tornar-se adultos uma derrota. “Viva rápido, morra jovem, seja um cadáver bonito”, é uma frase popularizada por James Dean, um dos primeiros ícones da adolescência tornada um ideal estético. A juventude tem deixado de ser um lugar de passagem para tornar-se uma espécie de Terra do Nunca, onde todos gostariam de ser congelados. Mas, assim como a ilha de Peter Pan, a tal adolescência eterna, associada a alguma forma de plenitude de prazeres e potencialidades, só existe no mundo da fantasia.
Criados no cativeiro
Há algo de podre no reino das famílias “normais”….
Todos sabemos que as aparências escondem muita coisa, mas tendemos a alinhar os que são convencionais com o que é certo e os desviantes com o errado. É difícil acreditar que entre os pais de família heterossexuais e religiosos, entre os esportistas saudáveis e populares, entre bons estudantes, maridos e esposas monogâmicos, funcionários e professores esforçados, boas donas de casa, gente trabalhadora e dita normal, pode haver algo de perverso, demoníaco e assustador.
O clã é um filme argentino, dirigido por Pablo Trapero, que nos confronta com esse paradoxo das aparências. Conta a história real de uma família de classe média, cinco filhos entre os quais um prestigiado jogador de rúgbi. Eles têm uma vida trivial, os mais jovens fazem temas e a mãe, professora, reúne a prole à mesa do jantar onde conversam agradavelmente. São donos de uma rotisseria, pequeno negócio de bairro, atendido pessoalmente pela família. Os pais são zelosos, o cotidiano é de uma família amorosa.
O detalhe é que Arquimedes Puccio, o pai, é um psicopata de livro. Ele trabalhava no serviço de inteligência durante a ditadura, o que na época equivalia à prática impune de sequestros e assassinatos. Com a chegada dos primeiros ventos da democracia, ficou ocioso de seu ofício de executor dos negócios escusos do governo. Foi quando ocorreu a Puccio começar a praticar sequestros, assassinatos e extorsões em benefício próprio e não teve pruridos em fazer disso um negócio familiar.
Eles eram acima de qualquer suspeita: a participação ativa dos filhos homens mais velhos, a conivência da esposa e das filhas, e a imagem respeitável permitiu que o clã dos Puccio mantivesse as vítimas em cativeiro na própria residência. Entre os companheiros de esporte do filho havia vários jovens abastados, assim como gente bem situada das relações de Arquimedes, que não aparentava nenhum constrangimento em sequestrá-los e matá-los. Aliás, a lógica perversa desse homem é aplicada tanto em relação às vítimas, quanto a seus filhos, a quem via como parte essencial de seus planos. A vida e a morte, os destinos alheios não fazem questão para um psicopata, todos estão a serviço de seus propósitos. Seus planos são fins para os quais os outros seres humanos não passam de meios, mesmo que sejam seus filhos.
Preste atenção: Arquimedes Puccio era um pai dedicado, envolvente, lógico. Foi difícil desobedecer suas determinações travestidas de amor. Além disso esse chefe de família psicopata foi, por muitos anos, legitimado pelo estado. As ditaduras funcionam com a mesma lógica perversa, por isso ele custou a acreditar que seria punido e essa prepotência foi o fim dos Puccio. Como se vê, quem tem uma lógica perversa na vida pública, não deixará de aplicá-la na intimidade. O público é também privado.
Quero uma penseira
A esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.
Prezado Papai Noel:
Provavelmente não mereço, mas queria pedir um presente, ou melhor, um presentão. Não fui boa menina: pratiquei poucos exercícios, estudei pouco, comi muito, encontrei menos minhas pessoas queridas do que considero importante, queixei-me da situação política e econômica mais do que ajudei a debelá-la. Mas, mesmo assim, vou lhe dizer o que desejo.
Queria muito uma “penseira”. Como talvez o senhor não seja leitor de Harry Potter, lhe explico do que se trata o objeto cobiçado. O jovem bruxo desta saga estuda numa escola chamada Hogwarts, na qual seu diretor, Alvo Dumbledore, é um ancião muito sábio e sobrecarregado de preocupações. Estou eu também tornando-me uma senhora madura cheia de preocupações, embora a sabedoria seja questionável. Pois bem, para administrar a sobrecarga de pensamentos importantes, Dumbledore dispõe de uma penseira em seus aposentos.
Trata-se de uma bacia de pedra rasa, contendo em seu interior uma substância leitosa-prateada sempre em movimento. O diretor encosta sua varinha na têmpora e retira alguns dos pensamentos dos quais não necessita no momento. Eles saem sob a forma de uma espécie de raio e são depositados na penseira, onde ficam disponíveis para serem consultados quando necessário.
Pessoas dos cinquenta em diante, como eu, tendem a fiscalizar sua memória com a atenção de um cão pastor e o pânico de um animal acuado. Qualquer falha liga o alarme das fantasias do envelhecimento e da demência. Por outro lado, a esta altura, estamos sobrecarregados de um enorme acervo de rostos, vozes, eventos, ideias e fantasias. É muita gente e muita coisa para manter vivo na memória, óbvio que algumas delas terão que descansar em algum tipo de bastidor leitoso e prateado.
Quando não conseguimos lembar algo, mesmo que seja o nome de um ator coadjuvante de um filme dos anos setenta, entramos em pânico: é o Alzheimer batendo! Por isso, penso que se tivesse uma penseira saberia onde está tudo aquilo que não consigo evocar imediatamente quando preciso. Assim, poderia tranquilamente revolver a penseira com a varinha e resgatar a memória fugidia, considerando natural de que ela esteja lá e não dentro de mim. Teria certamente a calma que me falta quando começo a procurar a memória que não se apresenta à consciência com prontidão. Qualquer um sabe que aquilo que buscamos com angústia tem a teimosia de se esconder.
Na verdade, na falta de um objeto mágico desses, desenvolvi a paixão por cadernos, caderninhos e cadernões. Os tenho para todos os fins: anotações de leituras, horários, sonhos, pautas para colunas, finanças, planejamentos variados. Adoro essas minhas memórias auxiliares e os consulto o tempo todo. Portanto, caro Papai Noel, se não encontrares penseira no mercado vou precisar de mais caderninhos…
A menarca assassina
O sangue mais assustador escorre do corpo de uma mulher.
Em 1974 Stephen King teve uma ideia que abandonou porque algo naquela trama lhe dava muito medo. Foi somente por insistência da esposa que a retomou. Detalhe, estamos falando de King, o mais popular escritor de novelas de terror.
Era a história de Carrie, uma adolescente desengonçada, que vivia só com a mãe, uma beata delirante. Sua inadequação já fazia dela motivo de bullying (ainda não se usava esse termo), quando aconteceu-lhe de menstruar pela primeira vez no vestiário da escola. Sem saber o que estava lhe acontecendo, entrou em pânico ao ver o sangue espalhar-se pelo chão do chuveiro. As colegas reagiram aos gritos, fazendo troça e afogando-a numa chuva de absorventes. As reviravoltas da história culminam com a jovem sendo eleita rainha do baile de formatura e recebendo, junto com a coroa, um balde de sangue de porco na cabeça.
Depois de sofrer essa agressão, a jovem, que já revelava seus poderes de movimentar objetos com o pensamento, reage com fúria e desencadeia a completa destruição do baile e da cidade. Carrie provocou incêndios e esvaziou os hidrantes, produziu curto circuitos e caos. Quem não foi queimado, foi eletrocutado e sobraram poucos, principalmente entre seus colegas, para contar a história. Tudo isso só por causa de uma menstruação? Para uma história escrita na segunda metade do século XX, o que há de tão ameaçador no corpo de uma garota?
Mamilos femininos numa praia são uma afronta, até amamentando não são bem vistos. Já os masculinos mesmo que proeminentes e marombados são exibidos com liberdade e orgulho. A visão do sangue menstrual é proibida nas redes sociais, mas se a imagem mostrar uma virgem vertendo lágrimas de sangue tudo bem. A mulher é potencialmente suja, perigosa, diz-se que sua imagem provoca impulsos sexuais e agressivos incontroláveis nos homens. Por isso seria a culpada pelos abusos que sofre. Ela deve se encobrir. Se ficar grávida, mesmo que seja fruto de um estupro, deve gestar e parir o filho de um monstro. Acaba de ser aprovado um projeto de lei que lhe impede o acesso ao remédio que a livraria disso. O corpo da mulher não lhe pertence. O que há de tão ameaçador no corpo de uma mulher? Em pleno século XXI?
A história de Carrie continuou sendo re-filmada, a última versão é de 2013. Isso prova que a fantasia da feminilidade poderosa e demoníaca segue viva no inconsciente do nosso tempo. Triste persistência, num tempo em que a vida das mulheres começaria em tese a respirar ares de liberdade: estamos nos tornando uma legião de médicas, advogadas, pedreiras, pensadoras, líderes, soldadas e o que mais quisermos ser. Pelo jeito, ameaçamos levar nossos perigosos fluidos menstruais para contaminar a sociedade e destruir tudo, que dizer dos nossos seios, dos nossos ventres nada livres? Em pleno século XXI.
publicado em ZH em 8.11.2015
Verdades que divertem
Divertida Mente é um filme para crianças, quem diria…
Expus ao meu priminho Gonçalo, seis anos, uma questão que tenho escutado várias vezes: o filme infantil Divertida Mente é de fato para crianças? Com a seriedade dos pequenos, que nunca estranham que um grande lhes peça opinião, ele ponderou que sim, já viu duas vezes. As crianças de hoje não têm temores nem constrangimentos para abordar assuntos delicados. Uma vez informados do que se trata, não há sobre o que não possam, a seu modo, opinar: morte, justiça, famílias, velocidade dos carros, ecologia, religião.
A ficção infantil não precisa escolher temas fáceis ou soluções planas, se for bem feita, será bem-vinda. Isso garante o sucesso de filmes como Up, que trata da velhice, dos antigos Bambi, no qual a mãe de um bebê é assassinada, Rei Leão, que enfoca a morte do pai e a autoculpabilização do filho por isso, Os Incríveis, em que um pai super-herói sofre da depressão do desemprego, Shrek, que prega a valorização da autenticidade da imagem, e tantos outros.
O público adulto finge, bate palmas por convenção, tem medo de não saber discernir entre um espetáculo difícil e um ruim. As crianças fazem uma avaliação direta: se a peça, show ou filme forem cativantes, ficarão atentas, se não, a bagunça se instala. E não sejamos injustos achando que só aprovam pastelão, lutinhas e cantorias edulcoradas. Divertida Mente está aí para demonstrar o contrário.
Nessa história, as personagens não poderiam ser mais abstratas: a Alegria, o Medo, a Raiva, o Nojo e a Tristeza. Dentro da cabeça de uma garota de 11 anos que precisa enfrentar o desafio de mudar de cidade, eles cumprem seus papéis e, principalmente, disputam com a Alegria a condução da vida de Riley. A trama leva-nos a concluir que o protagonismo da Tristeza é decisivo para a adaptação dela. Sem as lágrimas necessárias, que também se devem ao fim da infância e à constatação de que os pais estão igualmente atrapalhados, não acontece a elaboração das perdas. O filme também é bem claro de que tudo o que não for enfrentado, por ser doloroso, levará consigo para o esquecimento as preciosas memórias. Aquilo sobre o que não se pensa tampouco é lembrado, pois enfocar algo significa descobrir em que parte da nossa mente vamos guardá-lo.
É fundamental para as crianças ver seus conflitos psíquicos tratados com empatia e seriedade. É um alívio ver seus pais recebendo desse filme a lição de que elas têm direito à tristeza e não precisam bancar os bobinhos da corte. O dever de ser feliz e de gozar a vida é um fardo para a infância contemporânea. Como lucro suplementar, verão que, por dentro, é comum que os adultos tenham as mesmas minhocas, pois elas percebem nossas fragilidades. É como no teatro infantil: não adianta enganar ou ser falsamente simplório, seja verdadeiro e elas aplaudirão.
(coluna no jornal Zero Hora, 25 de outubro 2015)
Aprendendo com o Alzheimer
O que é bom lembrar antes de esquecer?
A professora de estudos de gênero da Universidade Cornell, Sandra Bem, Sandy, para os íntimos, pôs fim à própria vida em maio de 2014, cinco anos após seu diagnóstico de Alzheimer. A decisão era morrer antes que sua existência tivesse lhe sido totalmente usurpada pela doença.
Apesar das perdas intelectuais, os anos restantes permitiram-lhe testemunhar a chegada ao mundo do neto, assim como ajudar à filha nos cuidados dele. Para este último, a avó apenas levemente demenciada tornou-se uma querida bubba, que era como as avós eram conhecidas na família. Sob efeito da doença, Sandy apresentava uma doçura e uma leveza que eram estranhas àquela acadêmica de pequena estatura e grandes ideais.
O convívio com as perdas foi sendo suportável, principalmente graças ao seu bom humor. Até a chegada de um dia em que, ao despedir-se da filha perguntou à cunhada quem era a mãe daquela mulher que recém saíra dali. Obteve a resposta de que era ela mesma e tristemente arremedou: – desconfiava disso. Era chegada a hora. Já havia conseguido por correio a substância necessária, assinou e datou os papéis previamente preparados, eximindo todos seus seres queridos da responsabilidade pelo seu ato e, sem dramalhões, partiu. No espaço que havia destinado para “observações finais” nada conseguiu preencher, sua mente já não tinha esse alcance.
A história de Sandy, contada no texto Juízo final, da Revista Piauí número 106, é mais radical que o filme Para sempre Alice (2015), onde a pesquisadora não conseguiu levar seu plano de suicidar-se até o fim. O filme suaviza o espinhoso tema do suicídio. Na verdade, a transformação da linguista Alice na bobinha acompanhante de sua filha caçula, com quem ainda consegue ter uma postura afetuosa, atenua um pouco o drama da despersonalização tão temida por todos nós.
Recentemente passei o dia todo atrás de uma palavra que não recordo qual era, e tampouco sei se afinal a achei. Estou chegando à idade madura junto com vários de meus amigos e pacientes. Entre nós, sorriso nervoso nos lábios, já falamos por alusões aproximativas como: “aquele ator que fez o Sherlock, o mesmo que fez o cientista gay discriminado que quebrou o código dos alemães, como era mesmo o nome do filme?”. Ficamos, mesmo sem querer, monitorando o declínio visível da memória imediata.
A parte apavorante dessas histórias de Alzheimer é a abreviação do processo de envelhecimento até a vertigem. Alertas, muitas vezes confundimos as bobeiras normais com o desgaste do cérebro, mas como sempre fui avoada, acabo me surpreendendo menos com as lacunas de comportamento e memória. O que realmente esquecemos é que a memória costuma ser esquiva, se entrarmos em pânico não saberemos sequer responder o nome completo. E mais, as pessoas esquecem é que nunca tiveram de fato uma memória prodigiosa. Calma, tudo o que é imprescindível volta. Talvez essa rebeldia das evocações tenha o propósito de nos lembrar que a paciência é a principal aprendizagem que a maturidade nos reserva.
(publicado na Revista Vida Simples do mês de setembro de 2015)
Insanidades do destino
É possível criar uma Psicopatologia à la “Mynority Report”?
O recente episódio do copiloto que precipitou (propositalmente, até onde se sabe) o avião nos Alpes pode trazer um perigoso efeito colateral. Temo uma onda de preconceito contra qualquer abalo psíquico constatado. Não somente diagnósticos podem gerar perseguições, como creio que muitos possam evitar procurar ajuda temendo ser estigmatizados.
Quando a loucura ronda nossa vida, a sanidade revela seus limites. Quem teve um parente que se perdeu em delírios tem pânico de carregar dentro de si essa predisposição. Quem vê um amigo começar a ter pensamentos bizarros sente de perto a fragilidade da razão. Pode, afinal, explodir tal descontrole com qualquer um? A mente é como um campo minado? Não creio, sempre há um lento processo, em geral bastante visível, e é raro que seja completamente silencioso. Os agudos sofrimentos da alma devem ser acompanhados e os perigos podem ser reduzidos, mas nem por isso podemos prever tudo, como sugerido no filme Minority Report (Steven Spielberg, 2002).
Almejamos o conforto da lógica, negando que a loucura e a morte nem sempre são “justas” e previsíveis. É com certo alívio mórbido que descobrimos uma imperícia da vítima entre as causas de um acontecimento trágico ou triste. Se teve câncer, é porque fumava; se sofreu um ataque cardíaco, é porque era obeso; o acidente deveu-se ao álcool, a violência ocorreu porque a vítima se expôs. Nesses casos, parece que basta ser cauteloso e seguir as recomendações de saúde para estar a salvo. Quem dera.
Não conheço o caso do moço e sei que tudo o que lhe diz respeito será arrolado no cortejo das causas que tornariam previsível seu ato. O mesmo acontece em casos de suicídio e de atiradores de escola. Presume-se que alguém falhou na decifração das pistas que o sujeito foi deixando escapar. Porém, para cada suicida ou assassino em série, há milhares de pessoas que perdem a esperança de viver ou que nutrem graves mágoas e ressentimentos contra alguém ou contra todos, mas nada fazem. A maior parte dessas pessoas apenas rumina coisas que lhes intoxicam a alma nos momentos de angústia, tristeza e melancolia. Outras, poucas, vão enlouquecer de fato, ficar agressivas com os familiares, ouvir vozes. Raras, em número ainda menor, provocam tragédias. Para diferenciar um caso do outro, o melhor é proporcionar a todos os que sofrem oportunidades de receber acolhida e escuta.
Infelizmente, não temos uma previsão exata das consequências de determinados pensamentos e sentimentos. Dirigir com cuidado e viver saudavelmente contribuem para diminuir os riscos, mas não impedem as maldades do destino. Não podemos isolar e maltratar qualquer um que não se sinta psiquicamente bem como se ele fosse atirar um avião no chão. Cuidado com nossas fantasias onipotentes, a morte sempre ri por último.
Amigos até que a morte nos separe
Amizade, hoje mais eterna do que o amor. Eis o segredo do sucesso de Friends!
Há vinte anos estreava Friends (setembro de 1994 a 2004), uma série cômica norte-americana que segue na nossa memória. Seus personagens são comuns, gente como a gente, não se pode dizer que corram riscos, cumpram missões, tenham inimigos, destinos ímpares ou uma visão de mundo relevante. Com poucos cenários, alguns pequenos apartamentos, cujos móveis e objetos os fãs conhecem como se fossem seus, e uma cafeteria onde se reúnem, a série retrata o cotidiano de um grupo de seis amigos, jovens adultos ainda em fase de aprender a amar e trabalhar. Eles têm o viés cômico do precursor Seinfeld (1989 a 1998), mas são mais pueris. O valor de Ross, Rachel, Monica, Chandler, Joey e Phoebe para prender boa parte do planeta durante uma década em frente à tela da televisão é a amizade como laço afetivo fundamental.
Quando vislumbro o horizonte da maturidade que se avizinha, penso em um futuro povoado de amigos. Por muitos anos a vida adulta nos centra no trabalho, que exige um aprimoramento profissional ou intelectual, e na família, quando formamos uma. São jornadas pesadas, noites mal dormidas, temporada de incertezas, ao longo da qual não priorizamos os laços com o grupo de pares que eram o centro da nossa vida adolescente.
No fim da infância os amigos esperam do lado de fora de casa com o coração aberto para suprir o buraco deixado por aqueles que eram nosso mundo até então. O pai deixa de ser herói, o amor da mãe torna-se sufocante, os irmãos já não importam tanto. Quando nos tornamos adultos maduros também há esse tipo de perda: os filhos, se os tivemos, precisam cuidar da própria vida, nossos pais enfraquecem ou nos deixam, muitos casamentos se distanciam ou desfazem, o trabalho encontrou alguma estabilidade e o ritmo desacelera. Portanto, tanto para os indivíduos como para os casais sobreviventes, são os amigos que partilham a intimidade e os momentos de lazer. Nessas duas fases, a adolescência e a maturidade, há um movimento similar, onde as fragilidades dos laços familiares são compensadas pelos fraternos.
O grupo de amigos da série é uma rede de apoio afetivo marcada pela tolerância, as críticas são amorosas e eles sempre estarão uns pelos outros, como diz a música tema do seriado. Pequenos conflitos, erotismo e amor atravessam suas vidas, a ponto de formar dois casais entre eles, mas o tema central sempre diz respeito à preservação da amizade. Seu sucesso, para além do doce bom humor, é também o crescente prestígio desse laço, que é o grande vitorioso depois do ocaso da família extensa, do inverno dos patriarcas e do extermínio do casamento indissolúvel. Friends acabou, mas é inesquecível por retratar um tempo em que a amizade tornou-se o maior e mais duradouro tesouro de uma vida.