Joelho ralado
quando precisam de nós uma acolhida, todo mundo é mãe
Certa vez me contaram uma cena infantil que nunca esqueci: um menininho caiu e, na ausência da mãe, sentou-se em um banquinho em frente à porta à sua espera; quando ela finalmente chegou ele começou a chorar mostrando o joelho ralado, como se aquilo tivesse acabado de acontecer. O consolo dela era imprescindível, não importando o tempo que tivesse que ser aguardado. Lembro dessa cena porque acredito que nossa tristeza precisa de alguém para acolhê-la.
Mesmo crescidos, estaremos dispostos a esperar para dedicar as lágrimas a quem possa recebê-las. É claro que também choramos sozinhos, nem todas nossas tristezas precisam de testemunho, mas há aquelas que são insuportáveis. A orfandade não é só a morte dos pais, é acionada e reeditada a cada vez que perdermos a esperança de que essa porta se abra.
Somos seres bastante queixosos, por vezes só queremos plateia, a dificuldade é saber quando necessitamos realmente uns dos outros, diferenciar uma cena em busca de plateia da dor precisando de acolhida. As mães de crianças pequenas têm um truque: quando os filhos caem, elas fingem não ter visto. O pequeno confere se ela está atenta, se o dano é insignificante e não há público, provavelmente irão fazer outra coisa mais interessante. É uma espécie de “teste da manha”, já que se for grave o sofrimento será expressado independente do ibope.
Crianças que estão sentindo-se inseguras e frágeis farão cenas trágicas, exigindo a presença da mãe por coisas nímias: o brinquedinho caiu, rios de lágrimas, hora de ir para a cama, gritaria. Nesse caso elas lamentam algo desligado do incidente, expressam uma angústia que está por um fio para desbordar. Não é manha, é sofrimento psíquico. Provavelmente o verdadeiro motivo sejam fantasias de abandono, ameaças imaginárias de privações ou terrores que as têm acuadas. Como temos uma nostalgia idealizada dos cuidados maternos, cujo aconchego seguimos buscando em todas as relações, talvez haja algo que possamos aprender a partir dessas cenas.
Por vezes, nosso joelho ralado é banal, já sacudimos a poeira e estamos orgulhosos da superação, só queremos contar a proeza. Mas há outras em que o olhar atento perceberá que é sério, está doendo muito, quer seja porque a pancada foi forte, ou mesmo porque um pequeno incidente despertou grandes mágoas represadas. Só a escuta atenta descobrirá o calibre do que nos abala. Vínculos capazes dessa delicadeza são raros e preciosos. Só podem ser oferecidos por aqueles que não têm medo do contágio, pois é preciso baixar as defesas para oferecer uma verdadeira empatia.
Como as mães, aqueles que se importam conosco fingem distrair-se, desejando que a queda seja boba, mas terão que abrir sua porta quando nossas lágrimas precisarem deles. A metáfora da porta aberta aqui não é banal: dar entrada à dor do outro provavelmente despertará nossas próprias fragilidades e desesperanças. Acolher nosso desamparo é coisa para poucos em nossa vida: os que estiverem dispostos a lidar com o próprio. Convém não esquecer de que precisamos maternar-nos uns aos outros, com a sutileza de diferenciar a manha da dor.
Caminhantes noturnos
Quando ficamos grandes os monstros de debaixo da cama mudam-se para dentro de nossas cabeças e ainda dão medo.É bom lembrar dos antigos medos pra acolher com empatia os pequenos caminhantes noturnos apavorados.
Por que as crianças vão para a cama dos pais e eles não conseguem tirá-las de lá? Essa pergunta é repetida à exaustão, inclusive por casais envergonhados desse pecado. Entre as explicações, há uma que pode lhes aliviar a culpa: à noite todos sentimos medo e os pais se identificam com a ansiedade demonstrada pelos seus pequenos.
Nunca esqueci dos terrores noturnos que vivi na infância, das artimanhas tentado acordar meus pais, desde choros propositalmente audíveis, percussões na parede, até visitas noturnas à sua porta, onde nem sempre tinha coragem de bater. Houve uma fase em que tinha pânico de um calendário que ficava no corredor visível do meu quarto. Brinde de uma loja de tintas, sua imagem abstrata mostrava somente cores misturadas formando belos (de dia) conjuntos. Naquela mancha colorida, mal iluminada pela luz da rua, eu projetava faces, olhos, narizes. Meus monstros tinham caras humanas. Paralisada pelo que enxergava naquele borrão, eu mal ousava colocar um dedinho para fora das cobertas. Além do mais havia o terrível e enigmático espaço embaixo da cama. Imagine a coragem necessária para descer e mover-se até o quarto dos pais pedindo socorro.
A cama de uma criança apavorada é como um barquinho rodeado de tubarões. Alguns desses pequenos marujos ainda dão-se ao trabalho de lançar-se às trevas levando consigo seu brinquedo preferido. Partir e deixar para trás seu urso de estimação seria uma covardia, além do que ele é um companheiro imprescindível na travessia. Levei um bocado de tempo até conseguir dizer à minha mãe que tinha medo do calendário, que foi imediatamente removido. Obviamente para ser substituído por outro abrigo de monstros: como um cabideiro, ou a porta entreaberta de um armário.
Os pais acodem aos filhos aterrorizados em seus quartos ou acolhem os visitantes noturnos em suas camas porque lembram disso. É duro ser rigoroso com quem está em pânico. Some-se a isso que para os pequenos, assim como ocorre até para os adultos quando estão assustados, é difícil diferenciar entre o que se sonhou ou pensou e a realidade
A noite não é fácil para ninguém, em época alguma da vida. É claro que dormir pode e deve ser repousante. Só que por vezes, frequentes para alguns, raras para outros, mas conhecidas por todos, os olhos insistem em encontrar seus monstros na escuridão. Essas criaturas vivem de tocaia, se convidadas pela imaginação, se lançarão sobre nós.
Depois que crescemos já deu para entender que essas coisas são imaginação e a noite uma tela em que se projetam nossos fantasmas. É como no cinema e no teatro: a luz se apaga para que a fantasia se acenda. Há noites que são uma batalha contra aquelas ideias que gritam em silêncio, do tipo que se mastiga sem conseguir engolir. Elas são os monstros favoritos dos crescidos.
Acredito que as tantas vezes em que não me acudiram forjaram a pouca coragem que tenho. Por outro lado, os aconchegos que recebi ensinaram-me a confiar, a continuar procurando-o nos braços de quem aprendi a amar.
Aliás, por que quando somos pequenos e assustados temos que dormir sozinhos e depois de grandes e fortes podemos partilhar o leito com alguém? Pensando bem essa é uma das maiores injustiças da humanidade.
Nosso aniversário também devia ser “Dia das mães”
Afinal, quem merece presente, quem já recebeu a vida, ou aquela que passou por maus bocados para que viéssemos a ser?
Nunca entendi a tradição dos presentes de aniversário. Claro que gosto de ganhá-los. Aprecio mesmo, fico deveras feliz. Acredito que estou sendo reconhecido. Aproveito para agradecer todos os presentes que já ganhei e que venha a ganhar.
Afinal, é o dia da minha fundação – meu dia portanto. O dia de ser centro do universo e tudo mais. O dia do porre narcísico autorizado e registrado em cartório. Sei que mereço festa, sei que todos a merecem.
O bom ou mau humor com que atravessamos nosso aniversário não depende do conceito que temos dele, se respeitamos – ou não – essa data, mas sim por como acreditamos ter sido recebidos por nossos pais. Revivemos nessa ocasião o cenário imaginário da nossa chegada na família. É um renascimento, é viver outra vez a vontade, a benção e o milagre que nos pôs no mundo. O aniversário celebra a força do desejo que nos fez existir.
Aniversário, portanto, nunca é pouca coisa. Como poderia não ser, se é a expressão do mito que nos funda? Por isso, queiramos ou não, o aniversário é um vórtice emocional. Por isso têm quem não goste nem consiga celebrar. Por isso os desejos mancos fazem aniversários aos tropeços.
Mas voltando a pergunta anterior, quem merece presente? A vida já é um presente. Nos foi dado o privilégio de sair do nada e abrir uma janela para o cosmo. Devemos ganhar mais um presente, ou retribuir a quem nos deu o mais importante?
Quem deveria ganhar um presente no nosso aniversário é nossa mãe. Aposto que tem um pai levantando a mão no fundo da sala dizendo: – e eu? Sim, você faz parte da equação, mas não foi teu corpo que abrigou um alien mal-educado e inconveniente. Não foi teu corpo, estufado até o limite, que um dia quase se rasgou para parir um ser birrento e chorão.
Winnicott falava que as mães passam por uma “loucura necessária” para nos ter. Depois de lhes exaurir fisicamente, psiquicamente as levamos ao portão do desatino. Tenho mais vontade de mandar flores para minha mãe no dia do meu aniversário do que no dia das mães.
Mas hoje é dia das mães, e todas as flores são poucas para homenageá-las pelo milagre de ter nos aguentado.
As sem panatufas
Ainda estamos aprendendo que ser mãe, ser mulher, não equivale a uma posição servil e sacrificial. Pode – e deve – ser compartilhado
com homens, com familiares, com escolas, creches e amigos, pode ser mais próximo da felicidade do que da tristeza.
O marido chegava em casa sentindo-se exausto. As pantufas o esperavam em frente ao sofá. Sua esposa havia se empenhado o dia todo para que esse momento fosse perfeito: o toque de recolher silenciava as crianças, a comida pronta e fumegante chegava à mesa com precisão suíça. A conversa devia ser amena, preocupações tinham que aguardar o momento certo para não exasperá-lo com miudezas domésticas. Ela se desesperava quando precisa comunicar-lhe problemas, confusões do filho na escola, um conserto que vai custar caro. Sua função primordial era zelar pelo seu repouso e bem estar.
Mas e ela, a esposa e mãe, que também trabalhou o dia todo equilibrando pratos no ar para que a família e o orçamento funcionassem, quando é que descansava? Donas de casa podiam até ter algum tempo ocioso, mas não era considerado de descanso, porque a ninguém ocorria que elas estivessem cansadas, afinal, “não trabalhavam”.
Faz décadas que essa cena familiar desapareceu da maioria das casas, o feminismo e a democracia familiar derrubaram o senhor e seu castelo. Hoje os chinelos não esperam por nenhum de nós. À noite não ocorre a pais e mães calar seus filhos, pois é hora do banho, de preparar mochilas. Quando dá, costuma ser a hora em que se conversa e brinca, num encontro marcado pela saudade e denso de culpa. No lugar do pai reverenciado e da mãe gueixa, a avalanche de tarefas e preocupações, cada dia mais equânimes para ambos. As questões domésticas espreitam o dia todo a volta do casal exausto e caem sobre eles no momento em que abrem a porta.
Porém, se bem não há mais tanta concordância para esses papéis sociais fixos, nós mulheres ainda carregamos muito das antigas donas de casa em nosso interior. Sempre alertas, nunca descansamos, a culpa nunca dorme. As diversas formas de comunicação virtual pioraram tudo, nesse sentido, eliminaram as barreiras entre dentro e fora de casa, dificultam a intimidade e instauraram o dia sem fim. Não há refúgio, toca, retiro.
Para nossos avôs patriarcas, o direito ao repouso era consequência da satisfação do dever cumprido. A submissão dos outros membros da família que transmitiam tal seriedade ao seu bem estar era como uma condecoração diária, um reconhecimento silencioso dos seus méritos. Ao chegar em casa era recebido como herói, presidente, general, mesmo que no trabalho nunca tivesse passado de peão.
Hoje ficamos dia e noite tentando acertar, numa jornada acompanhada de cruéis autocríticas, saudosos de parâmetros. Mas não nos cabem saudosismos daquelas famílias rígidas e injustas. Sobre o descanso que nós mulheres garantíamos aos patriarcas repousavam supostas certezas, era uma segurança presumida, ao preço da vida sem trégua. Foi só o (péssimo) costume que nos ensinou a confundir hierarquias rígidas, valores religiosos repressores e preconceitos com algum tipo de paz interior.
Nosso castelo não repousa mais em terra firme, assentado sobre essas pedras fundamentais, que eram boas mesmo para construir muralhas. Agora teremos que aprender a amarrar as redes e calçar os chinelos em nossas ilhas flutuantes de incerteza. Que podem ser lindas.
A cristaleira
Entrar na vida é como mudar-se para um imóvel usado, por vezes precisamos botar abaixo para fazer do nosso jeito, por outras vale a pena valorizar o passado que vem embutido em cada lugar.
No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutida, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.
A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao nascer, costumamos herdar várias “cristaleiras”, metaforicamente falando, mas passamos a vida obstinados em ser originais. Nem que seja na nossa própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como no caso da minha cristaleira involuntariamente herdada, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas estamos fadados a carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Como assinalou minha tolerante arquiteta, ao implicar com todas as heranças, você terá que arcar com os custos de preencher as lacunas do que erradicou. Já que na vida nosso orçamento de forças costuma ser limitado, é de bom alvitre decidir em quais renovações investir os esforços: não haveria uma cozinha que sem reformas seria impossível de usar? Tem certeza que a prioridade é a cristaleira?
Há heranças indesejáveis, como a mania de limpeza da sua vó, o humor infantil do seu pai, podem ser os antepassados perdulários ou que emprestavam o que não tinham, os sovinas, marcados pelo egoísmo, as mães severas ou desligadas, os pais ausentes ou policialescos, grandes ou pequenos dramas que recebemos ao nascer, embutidos no nome de batismo. Quem sabe vale a pena focar no que realmente obstrui o caminho, como uma família marcada pelas repetidas falências, ou pelos desentendimentos entre irmãos, ou pela incapacidade de mover-se do lugar de origem? Em caso de decidir no que investir o orçamento da reforma, chame um bom psicanalista. Esta profissão costuma entender da arquitetura da mente.
Em nossos tempos de gente que se orgulha de “ter feito a si mesmo”, heranças costumam ser incômodas. O valor maior está nas escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, em cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, além de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquet do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?
Virando caricaturas
A beleza é associada ao mal traçado esboço do que ainda não somos, enquanto é negada ao retrato detalhista que vamos nos tornando.
As cartilagens nunca param de crescer. Os músculos cedem sob os efeitos da gravidade. Nossa coluna vai adquirindo as torções ao sabor da expressão corporal, os pés incorporam a forma dos sapatos preferidos, as mãos traduzem nosso ofício, enquanto na pele se escreve a história da luz em nossa vida. Com o tempo, tornamo-nos mais estampados, angulosos, pontudos. Assusta um pouco, mas se observarmos melhor, veremos que isso não espera a velhice para acontecer. A transformação da nossa imagem é constante ao longo da vida. Como conseguimos um corpo para chamar de nosso se ele não para de mudar?
A imagem corporal é muito mais do que um retrato congelado no espelho. Ela é a tradução para o corpo daquilo que em termos psíquicos chamamos de “eu”, “self”, “ego”, os quais são nosso jeito de ser, consequente da identidade que tivermos construído. Ao longo da vida, criamos algum tipo de formato próprio, além de que nos movemos utilizando uma ginga particular, assim de longe alguém que nos conhece poderá antecipar que somos nós. Repare, o que nos caracteriza são as marcas do uso! Graças a esses traços típicos, conseguimos ver-nos no espelho todos os dias sem perguntar quem é aquela pessoa.
Por sorte, o nariz não cresce rápido como o do Pinóquio, nem acordamos uma manhã com as orelhas do Dumbo. São milímetros, todo dia um pouco, até irmos virando numa espécie de caricatura de nós mesmos. Os desenhistas que fazem esse tipo de retrato cômico buscam exagerar os traços sobressalentes, como uma espécie de crítica, mas também de caracterização inequívoca do personagem. A idade ao invés de nos fazer perder a autenticidade da imagem, vai acentuando-a.
A beleza está mais associada ao esboço do desenho do que ao retrato detalhista. O traço rápido e inicial do alinhavo da imagem é considerado formoso, enquanto recusamo-nos a ver beleza naquela obra onde o artista deixou-se trabalhar com demora. As pálpebras emolduram os olhos, guardam uma história de olhares, a boca incorpora o hábito de rir, beijar e crispar-se. Tem um jeito em que nossos braços e pernas gostam de ficar, as gordurinhas fazem beiço e as costas esquecem a continência. Mas picaríamos em pedacinhos essa obra se nos fosse presenteada. Preferimos as linhas intactas. Belo equivale ao sem uso, ao contrário do visual expressivo, assim como da postura manhosa que se adquire com a idade.
Para aprender a ser alguém e ter um corpo requer-se tempo. Isso vai na contramão daquilo que consideramos uma imagem impecável: a que tem a falta de contornos, própria dos que ainda não sabem bem quem são. Só posso chegar à conclusão, que o alvo da nossa admiração é um corpo que não testemunha pertencer ao seu dono. Não parece estranho, então, que o chamemos de “objeto”, seja de desejo ou de consumo. Por outro lado, quem aprendeu a ser alguém de corpo e alma irá tornando-se autêntica e corajosamente numa divertida e orgulhosa caricatura. Terá um corpo eloquente, que antes das palavras já conta uma história, cujos olhos já antecipam respostas, cuja boca tem uma tradição de sorrisos. Um corpo usado tem mais gente dentro. Para mim, isso é belo.
Amigo é pra essas coisas
Precisamos de mais de um tipo de vínculo, as amizades são escola de diversidade e nos abrigam com sua paciência infinita. Cabe-nos retribuir com a mesma grandeza!
Você separou, durante semanas chorou no ombro dos seus amigos, derramou toneladas de indignação contra aquela pessoa egoísta e sem caráter que tanto amou. Você arrolou as inúmeras razões pelas quais já devia ter percebido que aquilo não ia dar certo. O amigo acolhe, consola, diz sinceramente que você merece alguém muito melhor. Só que o casal se reconcilia e ao amigo cabe brindar a felicidade dos pombinhos.
Ou ainda, você está entusiasmadíssimo com um novo projeto mirabolante. Vai, mais uma vez, desfazer algo que estava funcionando. É assim que você sempre faz: destrói tudo o que construiu. Ao amigo cabe acompanhar o novo sonho, comemorar mais uma inauguração.
É claro que os amigos tentam avisar, em geral quando consultados, por vezes à queima roupa. Eles alertam que essa relação é nociva, que você se desencanta de tudo o que conquista. Somos grilos falantes, lúcidos no que diz respeito à vida alheia. Sábios de plantão, nos iludimos: tudo indica que finalmente o amigo problemático está escutando a voz da razão. Porém, raramente eles seguem esses conselhos, o que fica na memória não é a esperteza das palavras, é a certeza da presença, do afeto fraterno. Nas verdadeiras amizades o que faz diferença é suportar as besteiras que o outro faz.
É por isso que não é a mesma coisa conversar com um amigo do que com um terapeuta. Do primeiro queremos somente seu amor incondicional, já com um terapeuta falamos porque desconfiamos que há algum significado nas nossas trapalhadas, intuímos estar repetindo erros. Amores tampouco cumprem essa função: sócios na empreitada da vida, o destino daqueles que se comprometem é enlaçado, por isso tendem à intolerância. Já a amizade não é eficiente para questionar, serve para acolher.
Amigos são como um zoológico, onde a variedade valoriza. Cada animal terá seus gostos, perigos e encantos. Cada um tem um habitat, a vantagem é que no zoo dos amigos não há grades que nos separam. Há aqueles com os quais rimos só de olhar um para o outro, outros parceiros para viajar, há os que se materializam nos momentos de dor, outros que abrilhantam as comemorações, os interlocutores intelectuais, os com álcool, os que servem para fazer algo juntos, há os que suportam e respeitam nossas confidências. São de diversos tipos porque também somos incoerentes e multifacetados.
Está certo, além da amizade seguido precisamos de alguma escuta que nos ajude a refletir, assim como andamos sempre em busca de amores que remem junto no barco da vida. A carência é enorme, precisamos de muitos e diferentes tipos de vínculo, por isso vale a pena aprender com a amizade a ser tolerantes: ninguém pode ser tudo, há momentos para paquidermes, outros para felinos, ou ainda primatas, sem falar das voláteis aves. Sempre me pergunto que tipos de bicho sou para aqueles que amo, mas lhes agradeço a infinita paciência
LEITURA DE BANHEIRO
Dos mecanismos a que recorremos (tipo ler rótulo de pasta de dente no vaso) para fugir do encontro com nosso próprio corpo
Por que, para tantos de nós, é imprescindível ler enquanto o corpo desempenha suas funções fisiológicas? Já aconteceu com todos: entrar apressado no banheiro e descobrir-se sem nada para ler. Nem um amarrotado jornal velho. É o momento de olhar com apetite para as embalagens dos produtos de higiene. Descobrir que o shampoo tem Lauril Sulfato de Sódio e o quanto de flúor sua pasta de dentes oferece para a Máxima Proteção Anticáries. Melhor a química antipoética que enfrentar o vazio do momento.
Dormir também requer algumas linhas, um pouco de televisão, um trecho de filme já visto. Qualquer coisa que faça companhia sem exigir concentração. Essas frases, páginas antes do livro tombar, ou as imagens da tela, cujo conteúdo vai ficando longínquo, nos ninam. Recuperam a ilusão infantil de um anjo da guarda, um imaginário escudeiro do sono.
Os órgãos prescindem da consciência para suas rotinas de organização, manutenção e faxina. Eles trabalharão alheios a quem somos e o que queremos. Ainda bem que temos os sonhos, esses filminhos que nosso cérebro cria, para lembram-nos de ser pensantes até quando estamos fora do ar.
Ir ao banheiro é como dormir e comer: ser lembrado da nossa natureza. A exigência de ingerir e processar energia a partir do alimento, de eliminar do corpo aquilo que não serve mais, revela nossa condição de organismo, mais um dos tantos que andam por aí. Embora mais complexos que uma ameba, como ela, em síntese nosso percurso se reduz a adquirir e gastar energia, até o momento de se apagar. Nosso corpo nos escuta, mas pouco, certamente menos do que gostaríamos. O coração movimentará uma precisa máquina fisiológica, iniciará e cessará seus batimentos, pouco ligado aos quereres do seu portador e ao amor do qual lhe supomos ser a sede.
Nada nos confronta tanto com essa insuportável materialidade como os desmandos do eloquente intestino. Ele costuma ser nervoso, opinático, é impossível não levar em conta suas expressões. Podemos até nos rebelar, mas no fim das contas, sucumbimos a seu comando e tomamos o rumo do banheiro.
Palavras – mesmo que esdrúxulas como Hidroxypropyltrimonium Chloride – ajudam a agarrar-se na crença na supremacia da inteligência humana, que supomos que nos distancia de outros seres vivos.
Distrair-se da nossa materialidade e do quanto nossa fisiologia nos governa é um consolo bobo. Faz parte da petulância humana de alienar-se da condição de organismo automático e passageiro. Mas terrível mesmo não é isso: é descobrir que se está sem óculos para acessar a informação imprescindível da fórmula do enxaguante bucal.
Olhos reclusos, imaginação que voa.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo
No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.
Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.
Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.
História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.
A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferência a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.
A terra estrangeira dos bebês
Na maternidade real, sabedorias e preparos têm imites: cada bebê é um novo mundo a descobrir.
Mesmo depois de meses de preparo, chegamos estrangeiras ao território da maternidade. Sem mapa, muito menos GPS, olhamos nossos recém nascidos assustadas, mas também embevecidas Um bebê nasce no parto, mas sua mãe não. Por sorte, a intuição dá a largada, pois amor não é instantâneo, mas o apaixonamento sim. A paixão, que é o cordão umbilical do lado de fora, é intensa, irracional.
A maternidade real é muito diferente da que fantasiamos. Uma mãe não precisaria ser suave, altiva, dadivosa, adulta, ponderada, adequada? Onde está essa mãe? Certamente não sou eu, pensa qualquer puérpera novata.
As paixões servem como faísca, mas são fugazes, não garantem a fogueira que aquece, cozinha e salva. Só o amor perdura. Ele arde lentamente, pena que é demorado, chega montado numa tartaruga. Amor é filigrana, é decifrar, descobrir, acalmar-se, perder o medo do outro, respirar fundo. É acampar no desconhecido, desmanchar as malas e aprender uma nova língua. É assim com os amores duradouros, com a intimidade do erotismo, com as amizades e, principalmente, com os filhos. Cada maternidade é uma nova aventura e ter mais de um filho é habitar terras diversas ao mesmo tempo, como um poliglota, e diplomata. Foi assim com minhas duas meninas.
Uma era do outono, mas parecia ser de inverno; a outra, era da primavera, mas parecia ser de verão. Extremistas, elas. Uma sentia muito frio, adorava roupa, aconchego, ronronava. A outra fervia, só o calor a tirava do sério, nudista precoce, bastava a liberdade da pele para deixá-la de bom humor. Eram assim, minhas duas bebês.
Na nossa intimidade, uma disciplinava meu corpo junto ao seu, era ela que nos coreografava com graça e delicadeza. A outra fabricava encaixes perfeitos, sem roteiro. Ela jogava-se em meus braços, trapezista, voava além quando queria.
É como se elas fossem ao contrário, a que sentia muito frio pedia distâncias. Queria proteção garantida, mas regrada, queria calor, mas lento, sem labaredas. A que era fogosa colava, usava minha pele de sua, vestia e desvestia nossos encontros, como quem se liga na tomada, bateria cheia e segue adiante.
A primeira me ensinou que a previsibilidade é o que mais protege, saber com o que se conta, são as rotinas que mantêm a vitalidade do corpo. Frente ao frio da alma, o antídoto dos nossos ritos, que ela ia cuidadosamente criando em mim. Mamava lentamente, com pausas de descanso, digeria o alimento do nosso amor sem pressa. Ensinou-me a paciência de contemplá-la longamente, logo eu que sou tão agitada.
Fomos nos tornando calmamente previsíveis uma para a outra. Ela tem razão: já dizia Winnicott, em uma referência bibliográfica que jamais reencontrei, que a rotina é a herdeira dos cuidados maternos primários. Ela sempre prezou a independência e queria desde cedo tomar para si a autonomia dos consolos. Minha sorte é que são muitos os abismos da vida, requerem infinitos ferrolhos. Faço questão que ela os encontre também em mim. Por isso continuo tendo chance de acolhê-la, e pretendo manter isso até o fim.
A segunda, a que emanava calor, preferia os encaixes, nos quais rapidamente se abastecia, podia até adormecer neles, mas suava excessos. Parecia suportar melhor o descontrole, mamava rápido e intensamente, logo, cabelinhos molhados de suor, partia para a conversa. Dava discursos completos antes de que pudesse anotar na minha memória seus primeiros balbucios. Ela não tinha paciência de esperar que os lentos adultos não a entendessem. Caminhou sem engatinhar, antes que tivéssemos tempo de organizar seu primeiro aniversário, tinha pressa de ver e tocar sem esperar que a levássemos. Quando cansava de tanta aventura, era capaz de aninhar-se como ninguém, nos abandonávamos uma na outra. Hoje ainda fazemos isso, falando atropeladamente, juntas e diversas, fabricamos sínteses muito maiores do que cada uma por si.
Uma desabrochava de dia, recolhia-se com o sol, aproveitava a jornada do sol, seus passeios iam de flor em flor, de amoras a pitangas, conhecia os roteiros botânicos da vizinhança e os donos de cada jardim. A outra foi notívaga desde que nasceu, seus roteiros diurnos a levavam a conversar com os animais do bairro, encantava-os sem medo, as feras sucumbiam a seus pés.
A bebê suave tinha pesadelos intensos, gostava da sua cama, mas nos convocava constantemente. Ela era como aqueles guardas noturnos, que percorrem os corredores e espaços desérticos de que cuidam, tendo que marcar um cartão ponto em lugares, para garantir que estão vigilantes, em movimento. Nos chamava, seguido, requeria consolo, canções de ninar, carícias suaves, calmamente adormecia novamente. Até o próximo monstro. Havia muitos em seu quarto.
A bebê intensa tinha noites tranquilas, a seu modo. Gostava de vivenciar suas noites, brincava sozinha, antes das primeiras letras contava-se histórias com livrinhos no colo, lia do seu jeito. Ela não sentia muito medo. Mas, ioiô que era, essa autonomia também tinha prazo. Acabada sua farra noturna, seu destino era aninhar-se conosco. Como aqueles gatos, que após as noites pelos telhados assumem a cama dos seus humanos como própria. Depois de um tempo desistimos de leva-la de volta.
Se mais filhos tivesse, teria mais diversas histórias para contar. Cada mãe, cada bebê, um encontro peculiar. Conselhos de como cuidar e criar os filhos ajudam, muito. Mas as regras são tão ímpares que praticamente considero cada maternidade como o encontro com uma cultura diferente, cuja linguagem temos que aprender a falar.
Das minhas experiências como mãe, a única lição que posso transmitir é que cada filho tem que ser descoberto. Mulheres cobram-se muito em todos os campos, mas é na maternidade que somos mais inclementes. Com as outras e com nós mesmas. Carregamos o fardo histórico da sacralização da maternidade, da culpabilização das mães por qualquer percalço na vida dos filhos. Queria contar que nunca estamos preparadas, nunca seremos especialistas genéricas. Carregamos alguns dons no corpo, outros herdamos de centenas de anos de devoção exclusiva. Porém, essas facilidades não ajudam se transformadas em perfeccionismo, se movidas a cobranças.
Lembro de uma jovem amiga que já havia iniciado uma jornada de culpabilização materna maior do que o volume do seu ventre. Maternidade e culpa nascem juntas. O motivo das auto recriminações que se fazia era que estava despreparada. Seu envolvimento com a gestação foi considerado, por algumas mulheres que lhe eram próximas, como tardio. Ela demorou para apaixonar-se pela filha mais do que o prescrito nos blogs, sites e portais de maternidade. Até a metade da gravidez pensava mais no trabalho do que na bebê, o futuro quarto dela permanecia escritório, estava atrasada com o enxoval e não buscava muita informação na internet.
Apesar disso, sentia que ia acabar entendendo-se com sua filha. Era uma mulher muito corajosa, estudou e trabalhou por muitos anos em diversos lugares e línguas, movia-se pelo mundo sem grandes planejamentos e certezas. Amadurecida e calejada, voltou ao país de origem para assentar-se, trazendo na bagagem a confiança em sua capacidade de adaptação. Já que sempre acabou sentindo-se em casa nos tantos lugares que vivenciou, por que a viagem da maternidade teria que ser tão diferente?
Acreditava no encontro que ambas teriam, justamente por ser uma mãe poliglota e porque cada bebê chega falando sua língua. A diferença entre os marinheiros de primeira viagem e os mais experientes não está nas certezas, mas sim na capacidade de suportar o desconhecimento, a desorientação inicial.
Ler e escutar cada bebê como se fosse uma língua que se quer muito aprender, tocá-lo como se fosse uma cidade nova cujo mapa quer se conhecer, requer entrega. Prever e planejar tudo, sem deixar lugar para o improviso e para a surpresa, vai na direção contrária.
Esperar que no estrangeiro não se padeça com as estranhezas, é coisa de quem só viaja em excursão e olha o que lhe mandam ver. Uma mãe capaz de lidar com as surpresas nunca será uma novata. A capacidade de entregar-se ao que é novo e diferente é o único item essencial na mala que levamos para a maternidade. Aliás, não é por acaso que vai-se para o parto levando uma mala.