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Aniversários que chegam em lotes

Alheios aos aniversários do calendário, os “aniversários da carne” acontecem quando de uma hora para outra nos conscientizamos das transformacões da nossa imagem, vulgo envelhecimento

Existe algo mágico nos nossos aniversários. Eles representam como foi nossa chegada ao mundo. Recriam o clima daquele dia. Traduzem como nossa família lidou com a nova aquisição. O peso da data é incontornável, por isso tantos amam ou odeiam seus aniversários. Festejam ou escondem-se quando eles chegam. A indiferença, nesses casos, tende a ser mentirosa.
Porém uma coisa é o calendário, os anos que se contam a cada 365 dias, outra é a idade do nosso corpo. As marcas que os anos nos fazem nem sempre coincidem com as efemérides. Inclusive, diria ser ao contrário. Completamente desavisado, um dia você se olha no espelho e nota que aquele outro aniversário chegou. Não fica clara a mudança, nem aonde foi, mas você percebe. Chamaria estes eventos de “aniversários da carne”. Apenas acontecem, são aleatórios, não marcam nos calendários quando resolvem comparecer.
Até aqui tudo bem. Não é um grande problema envelhecer. O que realmente incomoda é quando os aniversários corpóreos chegam juntos. Sabe-se lá o porquê, eles não os entregam todo ano. Gostaria de consolar dizendo que o corpo faz suas mudanças em anos bissextos. Mas não, ele é imprevisível. Talvez nem seja a burocracia que não permitiu despachar, seja por uma mera questão de economia mandarem dois ou vários juntos.
Aí então é que pega, quando eles chegam em grupo. Você está sozinho no banheiro, cedinho, arranjando forças para encarar o dia, e o espelho mostra que foi feito uma baixa de vários aniversários. Ninguém está verdadeiramente preparado para aniversários múltiplos. As pessoas ficam iguais a si mesmas por anos, até que vários aniversários caem dentro delas.
Como já tenho dezenas dessas experiências, acumulei sabedoria sobre sua chegada. Diria, antes de mais nada, que elas são furtivas. Gostam da noite, preferem o escuro para não serem notadas. Escondem-se porque sabem que não trazem boas notícias. Chegam manhosamente e simplesmente se instalam. Naquele infausto dia você acorda, olha para o espelho, e lá está estampado em ti, mais um bloco de aniversários.
Essa prática é realmente cruel. Deveria ser proibido envios de aniversários em engradados. Fico me perguntando onde está o STF frente a essa escabrosa prática de abuso ao consumidor. Para economizar no correio, o destino despacha nossa idade em pacotes.
Nem sequer há piedade: a pessoa pode ser cardíaca e igual eles entregam a idade na modalidade jumbo. Digo mais, eu acredito que também existem casos em que eles mandam antes. Sim, esse é o verdadeiro escândalo. Sem nenhuma justiça, até por não haver instâncias regulatórias nessa área, eles entregam aniversários previamente. Pergunte para um careca se não foi isso que aconteceu? Ainda nem chegou nos trinta, com o cabelo – ou falta dele – como o do avô? Isso é justo?

24/06/22 |
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História antes de dormir para minha neta

Brincando de contar uma história pra gente grande como se pequena fosse…

Havia uma vez um pequenino planeta na borda do sistema solar. Nem nome ele tinha. Só ganhou um em 1930. Foi chamado de Plutão. Ficou muito feliz.
Além de receber o nome do deus da riqueza e dos mortos romanos, ele foi convidado para fazer parte da elite do nosso sistema solar.
– Ester: ele tinha príncipe, baobás e vulcões?
Não, querida. Não tinha nada lá. Mesmo assim Plutão tornou-se o nono planeta do nosso sistema. Passou a fazer parte das maquetes, dos mapas, dos esqueminhas de lembrar os nomes dos planetas.
Todos os estudantes o conheciam. Por isso vivia cheio de orgulho.
Porém, num triste dia de 2006, foi desclassificado da categoria planeta.
Aconteceu que descobriram que um de seus supostos satélites, chamado Caronte, tem uma massa quase tão grande quanto ele.
Portanto ele não o orbita e sim os dois dançam juntos ao redor de um ponto externo no espaço.
Por isso, foi retirado da serie A e foi para a serie B, junto com outros planetas anões do cinturão de Kuiper.
Aliás, para arrematar a humilhação, também descobriu-se que existe um outro planeta anão maior do que Plutão chamado Éris.
Foi nesse momento que o planetinha veio me pedir conselhos profissionais.
– Ester: por que você vovô?
Por que é quem eles podiam pagar. Sabe como é, planeta pequeno, poucos recurso, sem lobby influente.
Só restava um psicanalista de um pais periférico com moeda desvalorizada.
– Ester: ele estava triste vovô?
Muito, não parava de chorar.
Dizia que ele estava quieto no seu canto – quer dizer, na sua raia orbital, afinal espaço não tem canto – e que nunca pediu nada para ninguém.
Então o encheram de honrarias, o convidaram para um clube maravilhoso, e depois, o mandaram embora.
– Ester: não é justo mesmo. Você foi até lá ou ele veio no consultório?
Era pandemia, teve que ser atendimento virtual.
– Ester: O que você disse?
Disse que ele devia nos perdoar.
Nós humanos o tratamos como nós somos.
Temos vida curta, nossa fama é transitória e finita.
Disse também que sofrer por hierarquia é coisa de humanos, que ele devia voltar para sua postura cósmica de indiferença planetóide.
Sabe Ester, infelizmente não percebemos que um astro não pode ser tratado com a nossa régua.
Acrescentei também que ele estava errado quando dizia que seria melhor que isso nunca tivesse acontecido.
É sempre melhor uma boa experiência momentânea, do que nenhuma.
Que ele conheceu a insana vaidade humana e agora sabe que ela traz nada de bom.
Além disso, que nada é para sempre, até o Sol, que ele reverencia orbitando, um dia vai apagar.
– Ester: Vovô, não gostei! Eu diria pra ele que um dia pegamos um foguete e plantamos baobás, que é árvore mais linda que tem. Daí só o planeta África, o B612 e Plutão terão baobás e ele será feliz outra vez.

PS: A propósito, Minha neta é imaginária, mas a saudade da infância das minhas filhas é real…

Nosso aniversário também devia ser “Dia das mães”

Afinal, quem merece presente, quem já recebeu a vida, ou aquela que passou por maus bocados para que viéssemos a ser?

Nunca entendi a tradição dos presentes de aniversário. Claro que gosto de ganhá-los. Aprecio mesmo, fico deveras feliz. Acredito que estou sendo reconhecido. Aproveito para agradecer todos os presentes que já ganhei e que venha a ganhar.
Afinal, é o dia da minha fundação – meu dia portanto. O dia de ser centro do universo e tudo mais. O dia do porre narcísico autorizado e registrado em cartório. Sei que mereço festa, sei que todos a merecem.
O bom ou mau humor com que atravessamos nosso aniversário não depende do conceito que temos dele, se respeitamos – ou não – essa data, mas sim por como acreditamos ter sido recebidos por nossos pais. Revivemos nessa ocasião o cenário imaginário da nossa chegada na família. É um renascimento, é viver outra vez a vontade, a benção e o milagre que nos pôs no mundo. O aniversário celebra a força do desejo que nos fez existir.
Aniversário, portanto, nunca é pouca coisa. Como poderia não ser, se é a expressão do mito que nos funda? Por isso, queiramos ou não, o aniversário é um vórtice emocional. Por isso têm quem não goste nem consiga celebrar. Por isso os desejos mancos fazem aniversários aos tropeços.
Mas voltando a pergunta anterior, quem merece presente? A vida já é um presente. Nos foi dado o privilégio de sair do nada e abrir uma janela para o cosmo. Devemos ganhar mais um presente, ou retribuir a quem nos deu o mais importante?
Quem deveria ganhar um presente no nosso aniversário é nossa mãe. Aposto que tem um pai levantando a mão no fundo da sala dizendo: – e eu? Sim, você faz parte da equação, mas não foi teu corpo que abrigou um alien mal-educado e inconveniente. Não foi teu corpo, estufado até o limite, que um dia quase se rasgou para parir um ser birrento e chorão.
Winnicott falava que as mães passam por uma “loucura necessária” para nos ter. Depois de lhes exaurir fisicamente, psiquicamente as levamos ao portão do desatino. Tenho mais vontade de mandar flores para minha mãe no dia do meu aniversário do que no dia das mães.
Mas hoje é dia das mães, e todas as flores são poucas para homenageá-las pelo milagre de ter nos aguentado.

07/05/22 |
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Romeu e Julieta

Somos animais políticos, o litígio de ideias é o nosso estado natural. Pare de culpar as redes sociais, elas apenas são um novo instrumento para uma velha paixão.

Lembram da rixa das famílias de Romeu e Julieta? Quando encontravam-se por acaso na rua começava provocações que poderia terminar em briga e morte. Assim inicia essa peça famosa de Shakespeare, com sangue derramado já na primeira cena. Provavelmente uma família era partidária dos Guelfos e a outra dos Gibelinos. Facções políticas daquela época, se hoje não nos diz nada, mas para eles dizia tudo, duas visões de mundo opostas estavam representadas.
Trago a peça para lhes dar uma má notícia. Se você está cansado da polarização, da chatice que é quando qualquer fato torna-se polêmico, quando tudo ganha uma dimensão política, quando minúcias transformam-se em assunto e o bom senso parece que saiu de férias. Aquece a água do mate e senta porque, infelizmente, esse túnel é longo. Quem acredita que a polarização é de hoje, não estudou história o suficiente. Nós somos animais políticos, o litígio de ideias é o nosso estado natural. Pare de culpara as redes sociais, elas apenas são um novo instrumento para uma velha paixão.
Pode ser que você esteja mal acostumado, existem tempos de exceção. Quando a economia vai bem, não há crise política escancarada, e os terremotos do acaso não estão presentes, esquecemos um pouco essa dimensão e podemos cuidar da nossa vida miúda. Eu tenho saudades da época que a maioria dos brasileiros era técnico de futebol e não epidemiologista. Ou seja, não vamos ter este cenário tranquilo de volta em curto tempo. A economia vai mal, a pandemia empobreceu e enlutou a muitos, e não há consenso político sobre nada.
E outro fator maiúsculo vai dar as caras. A pandemia apenas adiou o questão sobre o aquecimento global. Preparem-se para milhões de especialistas em clima, formandos na prestigiosa WhatsApp University, nos ensinando o que está acontecendo e para onde vamos.
Fiz questão de Romeu e Julieta como exemplo para mostrar que o Cupido não respeita as regras desse jogo. Hoje precisamos de um historiador para nos contar as ideias que separavam as famílias rivais, mas nos é muito claro o encanto que uniu os jovens. Talvez seja uma boa lição da peça sobre quais as prioridades da vida, o que é eterno e o que é passageiro. Conheço pais e filhos que estão sem se falar por política, amigos que romperam, famílias que já não comemoram juntos as datas importantes. Daqui a uns anos, será que vamos conseguiremos explicar para os nossos netos porque rompemos?
Vai se sair melhor desses dias duros que nos aguardam quem apostar no diálogo e na tolerância. Quem souber costurar alianças com os diferentes, quem transitar entre quem não pensa igual. Fogo já temos em demasia, é hora de nos treinarmos como bombeiros.

06/04/22 |
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Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?

Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?

O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:

“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)

A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)

“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”

O tempo e o pó

O tempo se traduz em poeira

De onde surge o pó? Casa fechada, sem ninguém dentro, nada se moveu, de onde vem tanto pó? Voltamos de viagem e é poeira sobre as superfícies, novelinhos translúcidos crescendo nos cantos da casa. Seriam rastros de fantasmas? Seriam restos de uma festa de fadas domésticas que aproveitaram-se da nossa ausência para um baile?
Não acredito nestas magias, creio que a origem é mais prosaica. Estou convencido que o culpado é o tempo fazendo-se notar. Sendo invisível, come as beiradas de tudo para marcar presença. O pó é o suor do tempo em sua missão de desfazer o mundo. Seus dentes minúsculos não dão descanso à matéria. Sua língua áspera e seca enferruja, desbota, lasca, esfarela, tira o brilho e produz o pó. O tempo não é um relógio, o tempo é um hálito ácido, um nevoeiro invisível que a tudo envolve e corrói.
A Bíblia diz que viemos do pó e a ele voltaremos. Nada mais sábio. Mas não só nós. A gula do tempo não deixa nada de fora. Morde incansavelmente a tudo. Sua imaterialidade inveja as formas e as cores, por isso as lima.
Limpar a casa é uma tarefa infinita pois o pó brota ao virarmos as costas. A sujeira poeirenta nos desgosta por remeter intuitivamente ao decaimento da matéria, ao caos. Nosso inconsciente sabe que poeira carrega algo de morte. Talvez limpar seja algo socialmente rebaixado por esta conexão, queremos evitar contágio.
Nos cenários de filmes de terror o pó está sempre presente acompanhado da teia de aranha, sua companheira de apontar abandono, para criar a atmosfera sinistra e ressaltar a decadência. A poeira sinaliza que os monstros estão por perto. O pó é o símbolo da morte homeopática, cada dia um pouco. Os monstros da morte rápida, pois agem de um só golpe. Nos filmes de terror trabalham juntos.
Chronos, deus do tempo na cosmologia grega, é embaralhado a Cronos, o titã que engolia seus filhos. Normal, o tempo é aquele que tudo devora. Em algumas mitologias o fim do mundo é precedido de um monstro que abocanha o sol e a lua, não raro é um lobo. Como os astros são nossos relógios naturais, por marcar os ciclos, no apocalipse faz sentido serem mastigados por um monstro. E outra vez estamos na esfera da boca, o tempo de fato tem dentes.
Capitão Gancho é continuamente perseguido por um crocodilo, que além da sua mão engoliu um relógio. Peter Pan ainda não está na fase da vida em que se escuta medrosamente o tic-tac vindo da barriga do réptil, por isso o velho pirata o odeia.
Quando nos apaziguamos com a voracidade do tempo percebemos que, ao contrário de Cronos, são os filhos que engolem os pais. Vamos ao pó para seguir vivendo em suas memórias. Assim como nós carregamos na lembrança os que já se foram. Sozinhos não podemos nada, juntos, aceitando ser o elo de uma cadeia maior, derrotamos o tempo e o pó.

19/04/20 |
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Quando eu me aposentar

Os amanhãs da nossa vida, começam sempre hoje.

Quando me aposentar lerei todos os livros que acumulei. Viajarei para inúmeros lugares. Aprenderei a tocar um instrumento. Estudarei uma língua nova. Vou me dedicar à família, aos amigos, a uma associação protetora de sei lá o que.
Quantas vezes vocês já escutaram as frases do parágrafo acima, dito por inúmeras pessoas? O espírito destas falas é: o tempo livre da aposentadoria será a redenção da vida tediosa que levamos. O sacrifício é agora, mas lá na frente será minha vez.
Estas são as promessas, mas como é na prática? Vi muita gente conseguir inaugurar algo novo em sua vida na maturidade. Mas para cada um dos que se reinventaram, vejo dez deprimidos na frente da TV, sem conseguir fazer nada do que prometeram a si mesmos. Como só sabem trabalhar no seu ofício estão sem missão, vagam avulsos procurando um encaixe impossível. Como adquiriam significação apenas da identidade profissional, sentem-se esvaziados, já não sabem quem são.
Entre aqueles que alcançaram seu sonho e os que não, a diferença costuma ser simples: quem começou antes, quem preparou-se-se para o porvir é que chega lá. Aqueles que acreditaram que o “paraíso” da aposentadoria era automático, bastava sair das obrigações e da rotina, se dão mal.
Vejamos os leitores do futuro. É óbvio que depois de anos afunilando o cérebro lendo Twitter e texto de Facebook, ninguém consegue ler um livro. Depois que o cano do entendimento estreitou, não passa nada complexo. Para suportar a arquitetura de um romance, de um ensaio, é preciso a musculação semiótica de toda uma vida. Não se aprende a ler de um dia para o outro, e se pode desaprender caso não haja treino.
O mesmo com as viagens, se você não sai de casa perde o espírito de aventura, a curiosidade, a coragem. Viajar é uma ciência de difícil doma. Vamos nos desafiando cada vez mais, indo mais longe, suportando choques culturais maiores. Quem postergar as peripécias só conseguirá passear no óbvio, junto a pessoas ainda mais óbvias.
Quem deixar para cultivar amigos e aumentar o leque de vínculos quando tiver tempo dará com a cara no muro. A vida social não é fácil. É a arte de decifrar olhares, de perceber as mil sutilezas, de sacar os subentendidos, que aperfeiçoamos a cada dia, e mesmo assim damos mancadas. Imagina quem começar tarde, a inépcia sabotará todas as abordagens.
Caríssimos, se há algo descobri nessa existência é que o futuro começa agora. Quando chegar esse momento de maior liberdade é preciso estar treinado. Não jogue seus anseios para uma hipotética vida futura, construa este amanhã desde já. Sonhos precisam de adubo, de cuidados. Nada florescerá se não for cotidianamente regado.

14/07/19 |
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o crime de Woody Allen

Na leitura crítica e na fuição estética, vale a obra e não a biografia… mas algumas biografias acabam dando o que pensar, a de Allen é uma.

Nenhuma editora quer publicar a autobiografia de Woody Allen. Este é mais um capítulo de um processo de isolamento do diretor. Ele está em litígio com a Amazon, por esta ter encomendado um trabalho e desistido após as acusações de sua filha voltarem aos noticiários. De qualquer forma, tampouco algum ator iria quer trabalhar com ele. O cerco se fechou.
Para quem não lembra, o diretor foi denunciado por abusar da filha em 1992, quando ela tinha apenas sete anos. Na época, dois processos de investigação paralelos foram abertos e ambos desacreditaram a denúncia. Na idade adulta Dylan Farrow volta a acusar o pai, sem efeitos legais, apenas morais, e conseguiu derrubá-lo.
A melhor versão sobre o caso é do filho Moses Farrow. Adulto, tornou-se terapeuta e por isso consegue descrever com mais riqueza os dramas de uma família dividida e com ódios não cicatrizados. Ele foi testemunha contra o pai e, quando adulto, conta suas razões: como foi coagido pela mãe a mentir.
Mas então, se não houve abuso, segundo vários peritos e segundo Moses, que insiste na impossibilidade de isso ter acontecido – ele estava lá na ocasião da alegado abuso – como alguém leva Dylan a sério? A questão é que ela acredita e isso a torna convincente. Ela alucinou um abuso e a vida dela marcha como se fosse real, sendo os efeitos quase tão danosos quanto se tivesse acontecido.
Mas por que ela fantasiou, e por que tantos acreditam nisso, passando por cima das evidências? A razão é simples: Woody Allen casou com a irmã dela, filha adotiva da sua mãe, do relacionamento anterior. Tecnicamente não há incesto, mas simbolicamente sim. Houve um embaralhamento das gerações e dos laços de parentesco.
A questão clínica que coloco: Dylan teria fantasiado a cena de abuso, com essa certeza psicótica, sem o relacionamento de Allen com Soon-Yi? Estamos no território da ficção, mas eu apostaria que não. Imaginem a cabeça de uma criança: ele transou com a minha irmã, por que não faria isso comigo?
E no pensamento das pessoas que hoje o condenam, será que o execrariam se não tivesse casado com a enteada? Ora, se ele não respeitou esta regra basilar, ele poderia não respeitar outras, então o abuso seria possível. Para meu juízo, ele está sendo condenado, não pelo motivo alegado, mas pela trama criada.
Legalmente falando, Allen é inocente, mas foi moralmente incestuoso. Mia, como qualquer mãe que casa-se novamente, tendo filhos do relacionamento anterior, precisa confiar em que o padrasto veja as enteadas com as mesmas reservas que um pai tem para com seus filhos.
Um dos dramas do gênios é acreditarem-se acima da lei. Já fomos mais tolerantes com estas faltas, Allen está tendo que lidar com novos tempos. Agora, boicotar sua obra, parece um castigo mais para nós do que para ele.

Frozen Gay

A princesa do filme Frozen, por emprestar novos horizontes às meninas, sofre difamações que seriam cômicas se não fossem perniciosas.

A última da sinistra Damares, aliás, ministra, é um vídeo onde ela nos alerta que a princesa Elsa, do filme Frozen, seria gay. Ela viveria em um mundo gelado, de onde espera sair para dar um beijo na Bela Adormecida.
O que há de novo na princesa Elsa é que ela prescinde de um príncipe para ser quem é, essa é a sua revolução. Os príncipes do filme não ajudam, um é um pateta, outro um traidor interesseiro. Creio que aqui está a pedra no sapato de quem quer um mundo tradicional, como nos velhos tempo, quando as mulheres só existiam socialmente com aval masculino. Como assim, os machos não serem protagonistas na vida de uma mulher?
Mas o passo a mais, a questão gay, só existe na cabeça torta de quem enxerga rastro do diabo em cada manifestação que não seja os estereótipos de gênero. Elsa é apenas uma heroína, bem feminina aliás, que resolve os problemas de sua saga sem um príncipe. Isso não nos diz quem ela vai amar, ou como vai desejar. A mensagem é: meninas, não esperem um homem para resolver sua vida, vá e faça, vocês têm poder.
O que sim existe é um pedido dos fãs que sugeriram, na anunciada continuação do filme, que Elsa assumisse ser gay. Seria então a primeira princesa nessa condição. Se os estúdios Disney darão esse passo é pura especulação. Não há nada no filme tenda a isso. O certo é que a mera possibilidade já desperta desconforto. E se ela viesse a ser gay, qual o problema?
Para Damares, uma personagem gay, instalaria na cabeça das crianças uma espera para que ela também pudesse se comportar assim. A questão é que vir a ser homossexual é uma questão complexa que ninguém descobriu como se dá. Envolve genética, o que a família projetou para o bebê, o acaso de suas experiências de vida, a oscilação hormonal durante a depois da gestação, enfim, é multicausal, portanto sem gatilho único. O que já sabemos é não ser da ordem da escolha.
Passei dez anos, junto com a minha esposa, estudando os mecanismos de eficácia dos contos de fada e das histórias infantis, disto resultaram dois livros. Estou acostumado aos argumentos, que não se sustentam, do suposto perigo das histórias infantis como indutoras de “maus” comportamentos. As histórias infantis são uteis, dilatam a imaginação, dão contornos e nomes para sensações que assaltam as crianças, ajudam a representar sentimentos íntimos que elas pensam ser as únicas a ter, proporcionam um ensaio emocional para o mundo adulto, é uma das portas para a diversidade da cultura humana, mas elas não conseguem, e nem se quiséssemos torcê-las para tanto, modelar a sexualidade de ninguém.
Uma eventual personagem gay, no mundo das histórias infantis, só faria a alguém que já pressente em si algo assim, embora na infância isso muitas vezes nem esteja decidido, a não se sentir tão diferente.

Frankenstein: o filho queixoso

2018 encerrou, ano estranho, não por acaso ano do centenário da publicação da primeira versão de Frankenstein, escrito por uma das primeiras crias do feminismo, a jovem escritora Mary Shelley. Essa história ainda nos diz muito. Neste momento em que tantos exigem de uma figura paterna o que ela nunca pôde dar, em que tantos tomam decisões em nome dos mesmos ressentimentos que moveram o monstro, talvez seja hora de reler esse mito literário. Aqui, trechos do nosso livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, publicado em 2010.

“Lembra-te de que fui criado por ti;
eu devia ser teu Adão,
porém sou mais o anjo caído. ”

O nascimento de Frankenstein

Tão popular como um monstro do folclore, Frankenstein nasceu na literatura, no livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley, uma jovem inglesa de 18 anos. O fato é que decorridos quase dois séculos, todos ainda sabem quem ele é. Podem não saber exatamente detalhes da história original, pois esse personagem ultrapassou muito as páginas do romance de Shelley, mas algo de sua essência continua reverberando em uma época tão distinta daquela que o viu surgir. Isso faz dele um dos mitos literários da era individualista, ao lado de Fausto, Robinson Crusoe, Dom Juan e Dom Quixote; ou seja, são personagens que nasceram em livros, mas já habitam a imaginação popular.
Essa novela nasceu de um desafio literário realizado por um grupo de amigos: isolados pelo mau tempo durante umas férias, Mary Godwin Shelley, seu marido Percy Shelley, junto com os amigos Lord Byron e John William Polidori, lançaram-se a escrever histórias de horror para divertir uns aos outros. Dos convivas, foi a jovem Mary a que mais seriamente cumpriu a tarefa. O primeiro livro saiu em 1818, mas em na sua terceira revisão, em 1831, é que se estabelece o texto clássico tal qual foi traduzido em várias línguas.
Como era comum na literatura da época, principalmente entre aqueles romances que caíram em gosto popular, a história lança mão do recurso das cartas, misturadas ao relato em primeira pessoa do protagonista: Dr. Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais, o homem que descobriu como dar vida à matéria morta.
A novela começa pelas cartas do capitão de um navio que rumava para o Polo Norte para sua irmã, contando uma estranha aventura que lhe acontecera. Nessa paisagem inóspita ele se deparou com o Dr. Frankenstein, e o recolheu em seu navio mais morto do que vivo. Ele lhe contou a triste história da fabricação de um monstro e sua missão de persegui-lo e destruí-lo. Como o trajeto do navio lhe convinha e estava fraco para continuar a caçada sozinho, o doutor segue a bordo e morre após terminar seu relato. A maior parte do livro consiste nessa história, transcrita pelo capitão, do nascimento do monstro, o destino trágico de criador e criatura, finalizando com um pedido de Frankenstein de que, em caso de sua morte, alguém se incumbisse de eliminá-lo. Na cena derradeira, Walton ainda tem um encontro com a criatura que subiu ao navio para o último adeus ao seu criador. O monstro parte, prometendo dar fim à sua própria existência.
Frankenstein teria decidido revelar sua triste sina para que o navegante não se deixasse destruir pela sua ambição de atingir o Polo, como ocorrera com ele anteriormente. No derradeiro fim, aquele que, como veremos, não conseguiu ser pai para ninguém, que perdeu tudo e todos, restando só o maior dos seus erros, entra em nossa história em uma posição paterna: a do sábio que aconselha o aventureiro, tentando ensinar-lhe a viver. Enfim, como nunca antes, ele consegue fazer um derradeiro gesto de cunho paterno. A história do monstro e do seu criador, ambos conhecidos pelo mesmo nome de Frankenstein é a história do quanto esse homem sofreu para que esse simples diálogo pudesse ocorrer, nem que fosse apenas à porta da morte.
Depois de escutar Frankenstein, o capitão desiste de sua obsessão por atingir o Polo Norte. A conquista do polo, feita quase um século depois desse livro, em 1909, já era meta de aventureiros que queriam marcar seu nome na história, indo até onde nenhum homem ainda chegara. O Polo Norte tem uma mística própria, serve de símbolo do fim do mundo, de ponto de orientação, pois é para lá que a bússola aponta. Talvez seja essa mesma lógica que faz do Polo a moradia de Papai Noel, um lugar extremo e ao mesmo tempo central, orientador. Se boa parte da queixa que perpassa o livro é a de que vivemos desorientados, que não existem referências paternas sólidas, de que o pai nunca fornece um norte, não deixa de ser irônico que seja justamente próximo desse eixo do mundo que ocorra o encontro entre Frankenstein, seu monstro e o viajante que se tornará o porta-voz de sua história.
Conforme seu relato, Victor Frankenstein foi primogênito de uma importante família genebrina e aos 17 anos, quando se preparava para sair de casa e frequentar a universidade, perdeu sua mãe. Junto da família vivia Elisabeth, adotada pela família quando ambos tinham cinco anos e eles se tratavam como primos. Porém, apesar do vínculo familiar que o ligava à moça, a mãe pede em seu leito de morte que eles se casem, e é a essa noiva que o coração do rapaz estava entregue. A perda da mãe, embora já não fosse uma criança, o deixa desconsolado, com muitas questões sobre a morte e pouco disposto a aceitá-la. Victor já possuia curiosidades científicas, e uma vez na universidade em Ingolstadt, volta-se para as ciências naturais, mas com uma ênfase muito particular: seus estudos são norteados pela obsessão à qual vai dedicar a vida, que é vencer a morte. Essa sua inclinação particular o afasta dos seus pares, por isso acaba conduzindo sozinho as pesquisas mórbidas a que se entrega. Ele estuda os mecanismos da morte, a putrefação e norteia-se pela sua crença de que poderia revertê-la ou impedi-la.
Na história escrita por Mary Shelley não há detalhes sobre a fabricação da criatura, a maior parte deles foi acrescentada pelas versões posteriores, principalmente as cinematográficas, que relançaram a história em novas inflexões. Shelley apenas cerca a gênese de mistérios e de discursos filosóficos, nos faz crer que o Dr. Frankenstein domina a ciência moderna, mas não dispensa a tradição alquimista antiga. Após o frenesi que domina sua vida através de anos de pesquisas, ocorre o esperado “nascimento” de um corpo de mais de dois metros, composto a partir de restos de cadáveres. Mas o ser por ele criado, desde o momento em que abre os olhos, desafia seu criador como algo bem maior do que um experimento científico.
Paradoxalmente, ao invés de comemorar a vitória da ciência sobre a morte que ali se consagrava, a conquista do objetivo que consumira suas forças até ali, o cientista ficou tomado pelo horror. Ele considera que a origem do pavor que sentiu emana dos olhos mortiços do espantalho que acabara de animar. Após realizar os procedimentos necessarios para a animação do corpo que construira, viu “abrir-se o baço olho amarelo da criatura (…) seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das órbitas onde se cravavam”, descreve ele. A partir daí, o cientista caiu imediatamente em uma mistura de sono e desmaio, na qual sonhou que estava beijando Elisabeth, mas ela se transformava no cadáver decomposto de sua mãe.
Após esse sonho, acorda apenas para ver a criatura que já estava em pé, ao lado de sua cama, contemplando-o: “seus olhos, se é que assim podiam ser chamados, estavam fixados em mim”. Em uma inversão de papéis, desta vez é o criador que desperta e encontra sobre si o olhar do “cadáver demoníaco ao qual tão desgraçadamente eu havia dado a vida. Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. O horror do cientista parece ser um fato naturalmente inspirado pela sinistra imagem de sua criação, cabe a nós compreender a fonte desses desencontros de olhares.
Assim que pôde, Frankenstein fugiu do local, abandonando o monstro à própria sorte, e nos dias em que se seguiram caiu enfermo, em estado de inconsciência, sendo amparado pelo seu melhor amigo que justo chegou para encontrá-lo. Por isso, a formação da criatura que vai progressivamente aprendendo a compreender o mundo, a pensar, a falar e até a ler se dará em total isolamento, de forma indireta, isenta de qualquer tipo de olhar que lhe dê suporte e reconhecimento. O monstro tudo vê, mas nunca pousaram sobre ele quaisquer olhos que não o quisessem matar. Para ele, que era um corpo inerte, abrir os olhos equivale ao nascimento, significou estar vivo. Porém, no princípio de sua existência ele provocou o desejo de que ela não tivesse acontecido. Isso é ainda pior do que ser rejeitado ao nascer, a criatura invoca no criador o horror, o impulso de negar esse fato. Victor Frankenstein renega o que fez, arrepende-se.
Desde a primeira centelha da vida de sua criatura, o cientista não lhe desejou mais que a morte. Pior, pois matá-lo talvez não fosse tão difícil, desejou que seu experimento não tivesse dado certo. Mais do que matar o monstro,Victor gostaria de eliminar sua obra, mas isso era impossível. Mesmo que a criatura tivesse sido destruida ao despertar, o cientista continuaria perseguido pelo seu feito. O rastro de violência que segue o monstro é somente a encarnação dessa culpa pela descoberta da reversão da morte. Após este ato de negação da morte, o Dr. Frankenstein não faz mais do que reencontrá-la. Aliás, a morte o persegue, encarnada no monstro, que elimina todos seus seres queridos. Enquanto isso progride, Victor não consegue matar seu monstro, em uma mistura de impotência com vacilações, como se a destruição só pudesse se alastrar após semelhante experiência.
Mas de onde vem essa mudança de rumo tão brusca? Uma pista pode ser o pesadelo que Dr. Frankenstein teve depois do “nascimento” do monstro: “… tive a impressão que segurava em meus braços o cadáver da minha mãe; um sudário envolvia-lhe o corpo, e eu via os vermes rastejando pelas dobras do pano”. Esse sonho não seria tão revelador se não estivesse ligado ao que acontece imediatamente, ele desperta e o monstro o está contemplando, tentando falar e tocá-lo. Ele se desespera e foge. Na sequência do texto há uma continuidade entre a monstruosidade do corpo da mãe, por estar morta, e a do monstro, passando de um horror a outro, e é o horror da morte que está no fundo. Em outros momentos da história já intuíamos que obsessão do cientista por vencer a morte era fruto do luto malsucedido da perda de sua mãe, e aqui é a visão da mãe morta que retorna em sonhos quando ele finalmente “vence” a morte.

A educação do monstro

Depois de ser abandonado por Frankenstein, o monstro deixa o laboratório e aprende a alimentar-se, abrigar-se e a decodificar suas percepções. Solitário e sorrateiro, sobrevive às intempéries isolado dos seres humanos, que sempre que lhe pousam os olhos gritam, fogem ou o apedrejam. Em uma ocasião, ocupa um esconderijo ligado à casa de uma família constituída por um ancião cego, seu filho e filha. Eles acolhem uma estrangeira, noiva do rapaz, e lhe dispensam uma série de ensinamentos, desde a língua e as letras, até literatura, ciência, política, filosofia. Em segredo, escondido e espiando por uma fresta, o monstro apropria-se das lições e torna-se letrado e pensante. Grato pelo que indiretamente aprendia, ele lhes dispensava pequenos favores sempre oculto pelas sombras.
Quando se sente suficientemente forte, sai de seu esconderijo e apresenta-se ao cego, seu professor involuntário, para demonstrar-lhe sua gratidão, esperando ser aceito pelo grupo. A conversação com o velho vai bem, mas se interrompe quando o filho entra no recinto, o vê, e o costumeiro comportamento de agressões e fuga se repete. Só que desta vez a criatura, que se sentia muito ligada aos seus benfeitores indiretos, sofre e se vinga, colocando fogo na casa que eles haviam deixado para trás em sua fuga.
Entre as roupas que saíra vestindo do laboratório de Frankenstein, o monstro descobre em um bolso o diário do cientista, onde se encontra narrada em detalhes a aventura de sua origem. Lê com horror: “neles está relatado tudo o que se refere à minha origem maldita. […] Encontrei minuciosa descrição de minha odiosa figura. […] Maldito o dia em que recebi a vida! Exclamei cheio de agonia. Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado?” Mary Shelley criou nesse monstro um ser filosófico que em sua reclusão havia feito várias leituras, entre elas O Paraíso Perdido, de Milton. Portanto, ele já se comparara com Adão, ao qual invejava a proteção recebida pelo seu criador. A epígrafe do livro contém uma citação de Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para que me arrancasses das trevas?”.
A revolta contra o criador principia-se aí, quando reflete sobre os motivos de seu desamparo e solidão. Para o monstro, ele não estava à altura do gesto de originar a uma vida e no decorrer da história o fará pagar caro por isso. A intenção de dar-lhe origem, como fica claro nessa epígrafe, partiu do criador, portanto ele precisa responsabilizar-se por ela, pois o monstro, como um filho qualquer, não pediu para nascer. Inicialmente a mágoa não mostra o potencial destrutivo que assume quando ele tem a desilusão com essa família do pai cego, pois mais uma vez é rejeitado por aqueles de quem esperava alguma filiação. Trata-se de uma renovada experiência de frustração, na qual novamente aquele de quem espera uma adoção não pode olhar para ele.
Parte então em busca do criador, a quem culpa pela sua desgraça. Tendo localizado, através do diário, a cidade onde residia a família Frankenstein, ele se dirige para lá em busca de vingança. Assim que teve oportunidade, estrangulou o irmão menor de Victor e colocou a correntinha do falecido no bolso de uma criada da família, que foi enforcada injustamente, considerada culpada pelo assassinato.
Após esse crime, ocorre um encontro entre Frankenstein e o monstro no qual este lhe conta sua história e reclama do abandono. Em troca de deixá-lo em paz, exige que lhe seja fabricada uma companheira, sua Eva. No início, o cientista chantageado, aceita, mas quando a está concluindo e se vê frente a mais uma obra sinistra, se apavora e a desmancha em pedaços, o que deixa o monstro ainda mais furioso. Mais adiante, ele também matará o melhor amigo e a amada do criador, em plena noite de núpcias. O monstro não se contenta em destruir Frankenstein, quer secar-lhe a linhagem, salgar sua terra, fazer dele alguém tão solitário e ímpar como ele próprio. No final, voltamos ao ponto de partida do romance, onde criador e criatura vão aos extremos do mundo um no encalço do outro, sem conseguir eliminar-se mutuamente. “Tu, meu criador, me detestas e me abominas, a mim que sou criatura tua, a quem te achas ligado por laços só dissolúveis pelo aniquilamento de um de nós. Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? Cumpre teu dever para comigo, e eu cumprirei o meu para contigo e o resto da humanidade.”
A demanda não poderia ser mais clara, é uma mágoa contra seu pai, exigindo-o a assumir a responsabilidade sobre sua presença no mundo. São centenas de páginas de exortação para que o cientista se responsabilize, de alguma forma pague pelo abandono e rejeição da sua criatura. O monstro é um filho que acredita ter direito à acolhida e orientação por parte daquele que considera seu pai: “eu aprendera pelos seus papéis que você era meu pai, meu criador. A que outra pessoa poderia eu recorrer senão a você, que me dera a vida?”
A condição irreversível da paternidade é um dos pesadelos da função. Para a mãe, o uso de seu corpo por parte do feto já se incumbiu desse trabalho de convencimento de que o filho passará a ocupar espaço para sempre na sua vida. Já o pai, irá descobrindo isso aos poucos, convencendo-se, muitas vezes de forma dolorosa, de que seu destino passou a ser inseparável daquele que gerou. Observamos que quanto mais paranoide o homem for em relação a isso, mais seu filho tenderá a tornar-se um pesadelo, um perseguidor, exatamente como ocorreu com a criatura de Frankenstein. A paternidade dita biológica, não assumida espontaneamente, comprovada por exame genético, é a versão jurídica desse pesadelo. Nesse caso, um homem se descobre eternamente ligado a um filho que ignorava, renegou ou nunca desejou.
Nas inúmeras adaptações da obra que se seguiram, inicialmente no teatro e depois nas telas, a criatura de Shelley perdeu o direito à palavra. Os longos discursos de ressentimento e cobrança deram lugar a um monstro tosco, abrutalhado e balbuciante. Mas em quase todas perdurou esse impasse inicial, no qual o cientista se horroriza frente à sua obra, desfalece e abandona-o. O monstro vaga solitário, incompreendido e acaba reagindo a tanto desamparo com raiva e sede de vingança. O cerne do mito, portanto, pode ser entendido a partir da criação e abandono de um filho, que por isso torna-se monstruoso; mas também o pânico causado pelo ato de originar um ser é uma das fontes do horror contidas nesse mito literário que atravessa os tempos.

As mutações do monstro

Mary Shelley teve um encontro feliz com uma ideia que sintetizou um feixe de fantasias muito úteis a seus contemporâneos e a muitos que ainda estavam por nascer. Assim que ela publicou seu livro, ele foi transposto para o teatro, com imenso sucesso de público. A partir dessas adaptações teatrais algumas novidades somam-se e modificam a história original. A história dessas versões demonstra, conforme Hitchcock, que “certos elementos permaneciam constantes: um ser criado horroroso e de estatura desmedida, a presença de raios e eletricidade nos acontecimentos da história e a relação psicológica íntima entre criador e criatura. Ao mesmo tempo a história já começara a agregar novos elementos, estranhos à versão de Mary Shelley, muitos dos quais vinculados tão fortemente que sempre aparecem desde essa época: um monstro incapaz de articular palavras, um assistente de laboratório desastrado, uma multidão irada em busca do monstro e um final cataclísmico no qual a criatura e o criador perecem juntos. O público devorava avidamente essa história de monstro, contada e recontada, remodelando-a muitas vezes”. Essa descaracterização tanto da solidão e isolamento do cientista, quanto, e principalmente, da criatura, que no romance é tão discursiva, não irritou a autora. Pelo contrário, ela ficou sensibilizada pela comoção da plateia, que parecia entender o espírito de sua obra. A partir de então, o livro original, que segue nas prateleiras após quase dois séculos, assim como a personagem emudecida pela sua versão dramática firmaram-se enquanto um mito literário.
Um mito não tem autor, ele pretende estabelecer a história da origem das pessoas, do mundo, dos objetos e extrai sua veracidade da provável fonte sobrenatural da narrativa. Seu uso busca amalgamar o máximo de elementos possíveis, pois ele não existe para gerar interrogações, mas sim para dar explicações, para fechar questões. Para tanto, um mito engloba em seu interior todos os elementos úteis que puder angariar: referências históricas, fantasias comuns, elementos do cotidiano de cada época. O mito é uma tentativa de dar explicações através de histórias para o que é frequentemente inexplicável, e se não se ocupasse das fronteiras do nosso conhecimento, não seria necessário recorrer a argumentos fantasiosos para dar conta do assunto. Já os mitos literários são assinados, sua fonte é humana e claramente estabelecida, porém eles possuem a mesma característica de imantar elementos de um momento histórico, da forma como se estrutura a sociedade e a intimidade dessa época, e combiná-los com fantasias atemporais, gerando uma trama que pode ser transposta a outros lugares e outras épocas. Uma história se torna mito quando ela se transforma, permanecendo ela mesma, em um aparente paradoxo.
Mitos literários, portanto, são histórias que transcendem esse ponto de partida claramente autoral, para caírem em outras mãos, porque o público consome versões que vão transformando-a a seu gosto, ele se apropria delas para fins de elaboração de suas questões e as vai transformando sutilmente. Mais do que a corrupção de um original, se estabelece uma harmonia entre um cerne essencial da narrativa que se conserva, enquanto cenários e personagens se modificam, que é justamente o que nos autoriza a pensar que estamos lidando com algo maior do que o livro de um autor.
O monstro é órfão de mãe, e filho da relação de um homem com a ciência, é a criatura incompreendida e abominada por todos, que persegue seu pai-criador até o fim da vida de ambos, essa é sua essência. Embora ele tenha sido privado das palavras que usava para acusar Frankenstein, sua imagem continua angariando pena e horror ao mesmo tempo, pois ele é a encarnação de um erro, além do retrato do abandono.
O horror provém do ato monstruoso que parece ter sido a própria criação e o desafio à morte que ela pressupõe, nisso estão igualados o cientista e seu monstro, enquanto o feito de um e seu produto resultante que é o outro. Por isso, em todas as versões joga-se com a alternância das duas personagens que, para efeitos populares, acabaram atendendo pelo mesmo nome, criador e criatura, já que o monstro fica identificado à loucura onipotente que lhe deu origem. Por outro lado, a fuga do cientista que deixa a despreparada criatura à mercê de um mundo nada acolhedor produz uma empatia inesperada no público, que acaba penalizando-se daquele que tem tudo para ser apenas rejeitado.
O livro recorre a um arrazoado filosófico, que associa o monstro ao bom selvagem, um ser ávido de receber acolhida e uma formação, ao qual a rejeição transformou em obstinadamente mau. Na obra de Shelley a empatia com a criatura é racional, discursiva: escutamos dele todos os esforços que fez para parecer-se com os humanos, que ele observava de longe e escondido, assim como seu anseio por ser admitido entre eles e o sofrimento cada vez que era reduzido a ser a abominável representação de um ato inaceitável. Ele queria ser humano, mas os maus-tratos o lembravam de que não passava de uma forma artificial de vida infundida a pedaços mortos, assustador como um fantasma. Ele buscava compreensão e só encontrava exorcismo. Já no teatro, ao ver substituídos por rudimentares balbucios, gestos e olhares os complexos raciocínios com que defendia sua essência originalmente boa, que ele acusava de ter sido corrompida pelos homens, só lhe resta a identificação com uma criança que ninguém aceita como filho, que sequer é admitida como alguém da nossa espécie, para obter a simpatia e a compaixão do público.
A imagem corporal de alguém composto de pedaços costurados, cujo resultado tem aparência monstruosa, tem precedentes na teratologia. Conforme Warner, “a monstruosidade participa do desajeitamento da irregularidade, de suas classificações e harmonias imperfeitas, e encena a aberração por não conseguir permanecer consistente nem mesmo consigo próprio”.
A falta de um olhar materno que unifique as partes desconexas da criatura é o que empresta um caráter monstruoso à sua imagem. Em menor escala, observamos inúmeras distorções na imagem corporal de sujeitos que se enxergam como disformes, abjectos, com partes que devem ser ocultadas ou corrigidas. Em geral, nesses casos trata-se de pessoas em cujas vidas ocorreu algum desencontro radical ou uma importante falta de sintonia com a mãe. Mas a dismorfofobia aparece muito frequentemente na adolescência quando um outro olhar, agora como corpo sexuado, o desafia, portanto sua causa pode estar na confirmação desse corpo que o olhar materno colou.
O livro Frankenstein foi escrito por uma órfã de mãe. Talvez por isso não surprende que a história seja a de um filho, que contando apenas com a figura paterna, só possa oferecer ao olhar alheio a imagem da falta de harmonia de seu conjunto. Mais uma vez, vemos aqui retratadas as limitações que atribuímos à Função Paterna. O pai pode nomear, mas carece do poder do olhar que unifica. Criador e criatura, portanto, fecham os olhos um para o outro.
A sobrevivência dessa história, e sua transformação em mito, está ligada ao fascínio gerado por esse ato profano de criação, que já alimentava a popularidade das histórias sobre o Golem. É uma instigante fantasia sobre a prepotência de um homem que tentou negar a morte, descobrindo um método para impingir vida à matéria inerte, que quis superar deus, a ciência de seu tempo e prescindir das mulheres para dar origem a um ser vivo. Filho de tanta pretensão masculina e de nenhuma mulher, essa criatura involuntariamente acaba representando a bancarrota da onipotência de um pai, de quem o desmaio, a fuga e o arrependimento mostram a fragilidade. Esse homem que quis tanto, negando a própria morte com seus atos, é tão mítico quanto seu enorme filho desamparado. Na verdade, um não existe sem o outro, por isso eles partilham o nome. Ele quis tudo e ficou com nada, por isso foi, no livro, totalmente destruído.
Frankenstein também é o protótipo do “cientista louco”, personagem que ganhou espaço a partir dessa época. Desde então tentamos saber o que resta da sabedoria, já que a igreja e a tradição não mais respondem por ela. Através dessa figura do cientista louco nos mostramos nostálgicos, negamos a ele a totalidade de saber e o castigamos pela ousadia. A ciência é a herdeira imediata da expectativas que depositávamos na religião: que seja fonte de segurança, antídoto contra o desamparo. Se até mesmo a fé, com toda a sua convicção, foi abandonada, por que a ciência, com suas certezas sempre transitórias, teria nossa adesão garantida?
A personagem do cientista louco, marginal em relação aos seus pares e capaz de superar o conhecimento de seu tempo, reflete nossa ambivalência. Confiamos que sua genialidade ultrapassará as fronteiras do que já se sabe, mas como a condição transgressora e revolucionária de suas descobertas é punida, é como se, ao mesmo tempo, déssemos também um voto de desconfiança. Supomos que suas invenções, que o desgarram do já estabelecido, vão produzir algum tipo de desequilíbrio: ele ficará transtornado, ou sua obra será de alguma forma perigosa, ou ainda trará algum tipo de alteração no mundo cujos efeitos serão nocivos. No caso de Frankenstein ocorreram essas três consequências de sua descoberta.
Em seguida ao surgimento do livro, e ao longo de um século, as peças de teatro foram dando contornos novos ao monstro, até que, em 1910, a criatura de Shelley encontrou um novo meio para expandir sua influência. A Edison Film Company, pioneira na história do cinema, o recrutou entre as primeiras personagens do recém-nascido cinema mudo, com direito a inéditos efeitos especiais. Mas foi a versão cinematográfica de 1931, com direção de James Whale, o momento crucial para a difusão de Frankenstein e a sua posterior transformação em mito. A imagem que vem à cabeça de todos, de um ser de cabeça quadrada com eletrodos no pescoço, cheio de cicatrizes mal costuradas, usando roupas pequenas para seu tamanho, é a do ator Boris Karloff maquiado para esse filme.
Whale estabeleceu o cânone estético e muitos dos aspectos que hoje consideramos intrínsecos à criatura. Como já era de hábito, seu monstro se limita a grunhir e movimenta-se como um grande bebê, já que o ator usava ferros nas pernas e pesos nos pés para que seu andar ficasse vacilante. Os olhos profundos e negros de Karloff, com a maquiagem pesada nas pálpebras eram frequentemente enfocados, fazendo do monstro um rosto triste a ser olhado para angariar nosso afeto. Se para o cientista, na narrativa de Shelley, o olhar de sua criatura o apavorou por serem olhos mortiços, no cinema isso foi substituído por uma expressividade que redunda no contrário: é desamparo que constatamos nos olhos caídos de uma criatura que clama por adoção. Whale também retoma a tradição teatral do ajudante corcunda e sinistro, e coloca grande ênfase no roubo de cadáveres, o que no original é apenas uma alusão.
A temporalidade indefinida em que a novela é tecida está bem ilustrada nesse caso e ajuda aos contornos míticos que a personagem ganhou posteriormente. No filme, tudo se passa em uma aldeia genérica europeia onde o passado e o presente, o arcaico e o moderno se confundem. Embora sofra as influências de seu tempo, ele é um romance não datado e mistura um saber científico de ponta com alquimia medieval. O laboratório do Dr. Frankenstein, um lugar que congrega todos os instrumentos científicos da época de Shelley, situando-os dentro de uma torre gótica, é uma boa imagem dessa síntese. Aliás, o cânone dessa imagem foi estabelecido pelo filme de Whale, mais de um século depois, pois no livro, o laboratório é apenas é um lugar sinistro.
Embora nos forneça imagens definitivas, o filme simplifica a trama. Temos no início o Dr. Frankenstein obcecado pelas suas investigações sobre a fronteira entre a vida e a morte. Ele rouba cadáveres para prosseguir suas investigações solitárias, afinal a academia não iria tão longe como suas experiências. Um erro que ele não se dá conta vai ser fatal para sua criação: enviado ao necrotério para obter uma parte fundamental da criatura, seu ajudante trapalhão rouba o cérebro errado, não de uma pessoa normal, mas de um psicopata.
Depois da criação, o ansiado resultado da pesquisa científica a que havia se entregue com tanto entusiasmo é como sempre renegado pelo criador horrorizado que adoece. Enquanto isso, o novo ser é deixado preso, aos cuidados do ajudante corcunda que o chicoteava impiedosamente. Acossada pelos maus-tratos, a criatura devolve-lhe a brutalidade e o mata. Como o monstro já nasce então fadado ao fracasso pelo seu cérebro doente, neste caso pouco se espera dele a não ser uma carreira criminosa, portanto, não há dúvidas de que ele deva ser eliminado. Quando fica consciente do seu erro, o Dr. Frankenstein e seu professor, que curioso do resultado havia comparecido para observar a experiência, concordam que ele deva ser destruído. O criador é resgatado por sua família que o recupera da saúde abalada pelos anos de esforço dedicados à ciência, enquanto se prepara o esperado casamento com Elisabeth. Enquanto isso, o professor fica no laboratório incumbido de eliminar o monstro, que já revelara sua natureza criminosa. Porém, a ciência é como uma sereia cujo canto enfeitiça o bom senso, e ele não resiste em fazer algumas últimas experiências no corpo anestesiado da criatura. Óbvio, para o bom andamento da trama, que ela acorda, mata seu algoz e foge.
Na sua escapada comete mais um crime, mata uma menina que encontrou ao acaso no caminho e brincou com ele. Desta vez, como da anterior, não há maldade: ele é inexperiente, tosco, incapaz de entender a lógica da brincadeira e comete um erro fatal: a menina jogava flores na água para que boiassem e convida-o para fazer isso com ele; entusiasmado com a brincadeira, ele atira a menina na água, para que ela também boie como as flores, e ela se afoga.
O cérebro do psicopata utilizado na construção do monstro, que supostamente teria desencadeado toda maldade não é convincente, sua carreira de assassino mais parece uma sucessão de trapalhadas do que de maldades. O monstro mata da primeira vez porque é brutalmente maltratado. Sua segunda investida é praticamente em legítima defesa, pois iria ser sacrificado e se salva matando o professor. Quanto à menina, trata-se de um mal-entendido lógico, do tipo que fazem as crianças pequenas. Elas colocam-se em risco em função da combinação perigosa de curiosidade com ignorância, tal como a que teve a criatura, que quis experimentar se a menina boiaria como uma flor. Quando a vê afundar, desespera-se e tenta retirá-la das águas de forma atrapalhada e inútil, resgatando apenas seu corpinho sem vida. O monstro porta-se como um bebê gigante, sem saber falar, sem entender direito o mundo, andando desajeitado, vaga mais perdido e digno de pena do que evocando terror.
O pai da menina leva a filha morta para a aldeia, que estava em festa, reunida para comemorar o casamento do Dr. Frankenstein. A cena da chegada do cadáver da criança, nos braços do pai desesperado, que vai estragando a festa por onde passa e transformando os aldeões em uma multidão de linchadores, é antológica da história do cinema. Quando ele chega lá todos compreendem o que aconteceu e saem à caça do monstro.
Trata-se de cinema para as grandes massas e essa história trágica precisa terminar bem: o monstro tem que ser eliminado, pois ele é um equívoco científico e o casal de protagonistas, o cientista e sua noiva, deve dirigir-se para um final feliz. As intermináveis conversas e encontros entre o monstro e o Dr. Frankenstein, que fazem o núcleo do romance de Shelley, estão eliminados. Além disso, agora ele se limita a uma visita a Elisabeth, sendo que nesse encontro, ao invés de ser assassinada apenas desmaia. Antes do cerco final, a criatura encontra seu criador e após uma luta ele carrega-o consigo para um moinho, mas o cientista escapa. O desfecho é previsível. O monstro acaba acuado em um velho moinho, em cujo interior ele é queimado vivo. Trata-se de um bem-sucedido exorcismo coletivo. Mas que demônio se expurga nessa cena?

Qual mito?

Se Frankenstein é um mito, a pergunta é qual seria, no sentido de sua filiação, ou então ele seria um mito novo? É claro que podemos ver traços de outros mitos nele, como o de Doutor Fausto, por exemplo. Afinal vemos uma equivalente paixão pelo conhecimento no Dr. Victor, já o monstro de Shelley lembra Mefisto pela eloquência, mas por certo essas comparações não dão conta da totalidade do tema, são pedaços de um todo mais complexo. A própria autora tenta nos convencer que se trata de um Prometeu moderno, isso está inclusive no título da novela. Provavelmente no sentido de uma insubmissão ao estabelecido, pelo roubo dos poderes e saberes celestes, e do castigo por tal ousadia, ou ainda de uma revolta contra uma autoridade despótica. Mas nada disso dá uma explicação da totalidade, apenas acrescenta aspectos. Nem a ideia de um Pigmalião sinistro, como já foi lembrado, nos traz muita luz, é apenas uma referência.
Certas interpretações colocam Frankenstein na categoria do Duplo. Parecem certas, pois não faltam elementos que apontem nessa direção: a criatura, como não tem nome, acabou sendo conhecida então com o nome de seu criador. De certa maneira, eles compartilham o significante, sugerindo que redundem no mesmo significado que se desliza entre eles, se completa. O monstro não tem infância, ele nasce adulto, possui quase a mesma idade de seu criador, não há uma geração que os separe e o fim de ambos é desaparecer no Polo Norte.
A criatura só se reporta ao seu criador, suas conversas são o centro do drama. Só o Dr. Frankenstein praticamente vê seu monstro. Cada um à sua maneira, os dois estão fora do sistema, ele não é aceito pela comunidade científica, por suas crenças, enquanto a criatura é fora de tudo, de uma genealogia, de um lugar no mundo. Os dois têm sérios problemas com a alteridade que o sexo coloca, são celibatários, os casamentos não se consumam, pois um mata a noiva do outro. Existe a espera de uma mulher, mas ela nunca chega de fato. Ou seja, nada de sexo, nem para nascer nem para nada. Os dois acabam ilhados em si mesmos, um fixado na destruição do outro.
Se de fato essa história pode nos dar então uma radiografia dos dilemas de uma alma partida, ela nos deixa sem respostas a uma questão central do romance: tanto a criatura pede o tempo todo que seu criador seja um pai para ele, que lhe dê um lugar e lhe diga por que o fez, quanto Dr. Victor foge várias vezes por não se mostrar à altura dessa empreitada. Nesse quesito a questão do duplo nos deixa sem respostas, não faz sentido ver apenas um homem acusando a si mesmo por não conseguir encontrar sozinho respostas para suas inquietudes. Como alguém pode acusar-se de abandonar a si próprio, de não ter cuidado de sua infância e educação? Existe uma reiterada denúncia da falta de ascendência, da falta de transmissão de uma educação efetiva. O monstro pede um lugar e pede para ser amado, é por ter esses direitos negados, dos quais ele se julga merecedor, pois não pediu para nascer, que se torna malvado.
Mas o que a criatura pede a Dr. Victor? Sem nome para se fazer valer, em outras palavras, sem origem ou, ainda, sem um passado para reivindicar, o monstro é um sujeito pós-revolução francesa. Filho da ciência nascente, ele é mais um herói do individualismo, afinal ele é único e ilhado, não tem pares, é inédito, desenraizado e intelectualmente muito lúcido.
As interpretações em que lançamos a ideia do duplo são onde o drama se desenvolve quando a um aspecto da personalidade não é permitido aceder à consciência do sujeito. É a cisão da personalidade que cria o duplo, ou seja, uma parte não quer saber da outra, o duplo é o outro de si mesmo. Como no caso clássico de Dr. Jekyll e seu duplo, o monstro Mr. Hyde, o qual, como diz seu nome, é a encarnação da face escondida do médico. Ou ainda como temos em Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray onde apenas no retrato a face narcisista da personagem envelhece. O que ele não suporta da alteração que o tempo faz a seu corpo está jogado para fora, não é reconhecido. Essa questão de uma suposta cisão da personalidade não é o aspecto mais relevante em Frankenstein, embora de fato caiba ao seu monstro o trabalho sujo do mal. Entender o monstro como a parte recalcada de uma suposta agressividade homicida, ou a personificação da sua melancolia renitente, ou ainda uma tendência antissocial é uma possibilidade, embora não abarque todo o sentido da obra.
A nosso ver, o aspecto central de Frankenstein é a procura por um pai, no sentido de alguém que forneça um lugar na sociedade e na genealogia, pois justamente estava-se em um momento histórico em que o lugar de onde provem a autoridade paterna sofria profundas mudanças. Na época do nascimento desse mito, início do século XIX, a Europa assiste ainda aos desdobramentos imediatos das revoluções industrial e francesa, à queda de várias monarquias, enquanto a autoridade da igreja começa a sofrer fissuras. Além disso, a autora, Mary Woollstonecraft Godwin Shelley, é filha de dois importantes pensadores dessa época, sendo que sua mãe, falecida em consequência de seu nascimento, foi uma das primeira feministas da história. Educada por seu pai com uma liberalidade inédita para seu tempo, sem uma mãe para identificar-se, a jovem escritora tinha todos os motivos para compreender os sofrimentos de uma criatura ímpar, inédita e sem referências palpáveis no mundo em que vivia.
Ora, o pai, ou melhor, sua função na estruturação de cada indivíduo, também é marcado por isso. Em um tempo de tantos rompimentos, apenas ser filho de alguém já não possui o sentido de antes. O sujeito da modernidade não se faz mais pelo nascimento, por quem seria seu pai, mas pela sua trajetória, pelas suas escolhas, pelo que ele consegue fazer de sua vida. Somente no seguinte sentido poderíamos compreender pai e filho como duplos um do outro: irmanados no desamparo, eles se repetem no sofrimento do pai que se sente órfão do próprio pai, do filho que acredita ter um pai insuficiente, no desencontro entre o desejo e a realidade que caracteriza a função paterna.
Há uma lição que é repetida inúmeras vezes nos mitos: um homem não pode fazer o que é atributo dos deuses. Criar um ser do nada, fazer algo vivo da matéria inanimada ou ressuscitar mortos é atributo divino, se os homens assim procederem, com certeza farão isso de modo imperfeito e seus resultados serão monstruosos e se voltarão contra o criador. Temos com Frankenstein uma versão agora científica deste mito de criar ou prolongar a vida. Frankenstein é o mito da onipotência da ciência, transposta para uma suposta onipotência paterna. É o fracasso atribuido àqueles que hoje responsabilizamos por apontar a direção que devemos tomar. Em seu encalço caminharemos até o Polo Norte.