Tempos de virada
Aproveitar a longevidade é uma aventura.
Ele tinha vinte e sete anos quando chegou ao meu consultório, decretando ser essa a idade de tornar-se adulto. Explicou que eram quase trinta, mas ainda havia tempo de tomar algumas decisões antes do momento que considerava “fatal”. Também avisou-me que uma pessoa pode chegar a ter “umas sete grandes viradas” ao longo da vida. Chamava assim os momentos em que se precisa repensar tudo, colocar em questão as próprias bases.
Na época, ele fez jus à sua ideia das viradas. Saiu de um casamento precoce e infeliz, encontrou a companheira de seus sonhos e especializou-se em algo que tinha tudo a ver com ele, não por acaso, a simulação. Esse é um ramo em que, por exemplo, tenta-se prever os efeitos de uma alteração sobre a linha de produção de uma fábrica. Portanto, modificar para melhorar é sua paixão. Esses dias, com menos cabelo e quase duas décadas a mais, reapareceu para reavaliar novamente sua vida. Brincamos entre nós de que ainda lhe faltavam umas três viradas.
O aumento da expectativa de vida trouxe um impasse interessante: as decisões que implicam em mudanças de destino na vida de pessoas já maduras. Quando um adulto contemporâneo chega próximo à idade na qual seus antepassados estavam encaminhando-se para o fim, ainda pode dar-se ao luxo pensar ao que irá dedicar-se. É possível que possa viver ainda algumas décadas, o que fazer com elas? A possibilidade de passar todo esse tempo em frente à televisão esperando a morte chegar não é atraente. Como nem só de trabalho somos feitos, os pactos amorosos também são questionados, revisados ou revogados. Para alguns é inclusive época de viver amores nunca tentados. O velho fim é um novo começo.
As tais viradas, as sete que meu jovem paciente apaixonado por números havia anunciado, podem ser pensadas em termos de decisões de grande impacto, mas também em um sentido mais sutil. Por vezes significam meras mudanças de ritmo, de ponto de vista. Para os mais ousados, é tempo de abrir os olhos para o que acreditávamos que fosse impossível desejar. A novidade é que temos mais ocasiões e mais prazo para tentar, o que não é o mesmo que simular.
Na indústria pode-se prever os efeitos de cada inovação. Já na vida é preciso ousar sem o expediente tranquilizante de simular resultados. Reavaliar-se demanda uma escuta fina e destravada de si mesmo, só assim para descobrir o que estamos querendo de forma enviesada, inconfessa, canhota. Somos estranhos ao que expulsamos da nossa consciência, por isso mudar dá tanto medo.
Os antigos vivam menos, trabalhavam na mesma firma, no mesmo ramo e casavam para sempre. A experiência mais de uma vida em uma única existência é uma conquista, mas aproveitar essa longevidade é uma aventura.
Amigos para não conversar
Uma amizade, um encontro de empatias,uma escuta profissional, são diferentes níveis de compreensão, que não implicam em uma escala de falas mais ou menos profundas. Por vezes amigos precisam calar e desconhecidos acabam se dizendo tudo. Profissionais ajudam a pensar, mas viabilizam um encontro amistoso consigo mesmo.
Quando ficamos abalados, seja por motivos graves ou apenas pelas maluquices costumeiras, nem sempre precisamos de um bom papo. Um amigo para não conversar, junto de quem possamos ficar em silêncio pode ser o maior tesouro. Nem tudo consegue ser dito: discorrer sobre nossas tristezas e angústias é sempre bom, mas só quando chega a hora de fazê-lo, o que às vezes demora. Às vezes falar dói tanto, que demoramos para ter coragem, como a hora de dar o puxão definitivo no curativo que temos que retirar.
Amigos de verdade são sensíveis para perceber quando andamos perturbados, mas conseguem abster-se de cobrar respostas. Cabe-lhes esperar, quando estamos fechados para balanço, que as portas voltem a abrir. Até as pessoas que costumam narrar sua vida em voz alta vão silenciar a respeito do relevante. Estas apenas preenchem o espaço sonoro para evitar ser interpeladas pelo próprio silêncio.
Os amigos precisam ser capazes de perdoar-nos pela inépcia, quando estamos sem condições de explicitar os motivos de um estado de espírito sombrio. Quem não suporta a falta de explicação para a dor, não banca nosso sofrimento, só quer tirar nossa tristeza do caminho e vangloriar-se pela presença salvadora. As vezes é necessário sangrar um tanto, sem recorrer a um consolo que nos coagule. Amar alguém é conviver com a própria impotência para fazê-lo feliz. Isso vale para todo tipo de vínculo: fraterno, erótico, familiar.
Acontece até que seja mais fácil explicitar nosso mal estar para alguém quase desconhecido, por ter percebido que a pessoa passa por situação similar. Fala-se a mesma língua de dores. Lembro de uma amiga que perdeu um bebê e encerrou-se em lágrimas e silêncio. Certo dia, soube de uma conhecida que sofria pelo mesmo e, mesmo que não tivessem maiores intimidades, descobriu-se contando a ela em detalhes sua jornada de padecimentos físicos, raiva, tristeza e vazio. Somente ao lado de outra mulher íntima àquele específico sofrimento foi possível deixar-se falar: uma disse à outra o que não haviam ousado enunciar nem a si próprias e choraram juntas. Depois, cada uma seguiu seu caminho. Não foi o começo de uma grande amizade, só um encontro de empatias.
Um terapeuta ou analista não substitui o amigo. Vamos em busca de uma escuta profissional quando estamos desconfiando de que há alguma coisa mal contada naquilo que traz infelicidade. Será que estou fazendo/entendendo algo errado? Também quando admitimos a necessidade de dar sentido a dores que parecem de tamanho errado ou fora de lugar. Já a orelha amiga está simplesmente a postos para acolher o frio na alma e ninguém gosta de cobertores tagarelas. Profissionais até podem cumprir essa função, em momentos de profundo desamparo do paciente, mas para os amigos a capacidade de caminhar em silêncio ao nosso lado é um atributo essencial.
(Publicado na Vida Simples em 2016)
O mágico resgate dos botões perdidos
Uma história de encontros e reparações.
Em uma data qualquer, ela chegou com um presente daqueles que mostram uma conexão mágica entre duas pessoas. Mesmo que nos encontremos pouco, sempre tive muita empatia com Elza, que é tia do meu marido. Ela viu em uma vitrine uma bola de isopor recoberta de botões antigos e, sem saber por que, decidiu que aquilo tinha que ser meu. Muitos, variados e coloridos, estavam distribuídos com arte, de modo que ao girar a bola era possível apreciar como era rico o mundo dos botões de roupa. Eles eram essenciais e reinavam quase absolutos até a popularização do zíper.
A compra da tal bola foi uma aventura à parte, pois ela não estava à venda, era decoração da vitrine. Para piorar as coisas, a proprietária do estabelecimento alegava que havia sido feita a partir da coleção de botões que herdara de sua avó, portanto, impossível cedê-la. Não tenho ideia como conseguiu convencê-la, mas Elza acredita que venceu graças à sua determinação. Sabia que devia levá-la para mim, embora não compreendesse o motivo.
Ao receber aquela estranha bola, quase desmaiei. Perguntei-lhe se alguma vez havia lhe dito da falta que sentia da “meia de botões” da minha avó. Eu não tinha registro dessa conversa, nem ela. Mas, sabe-se lá, vai ver que ambas esquecemos, já somos meio velhuscas. O fato é que existia uma maravilhosa meia velha, recheada dos mais variados e incríveis tipos de botões, que morava em uma gaveta da máquina de costura da minha avó. Era um desses carpins masculinos, agora encardido, um envoltório feioso que guardava seu tesouro multicor.
Quando criança, fazia qualquer coisa com aqueles botões: composições, classificações, personagens, eles eram bons companheiros da minha imaginação. Posteriormente, quando minhas filhas chegaram à idade de aprender a costurar, usamos alguns deles para fazer olhos e roupas de bonecas de pano. Um belo dia, a meia desapareceu e minha mãe admitiu tê-la posto fora em um arroubo de limpeza. Admito que meus pensamentos foram matricidas, mas fiquem tranquilos, ela sobreviveu.
Quando Elza se obsedou pela bola, pensou: “a Diana é psicanalista, escuta o que as pessoas só falam com seus botões”. O que ela não sabia conscientemente era que, no meu caso, os botões eram literalmente memórias de infância perdidas, que ela resgatou. Telepatia entre duas pessoas que se gostam? Memória de um diálogo esquecido?
O fato é que hoje a bola mora no meu consultório (e não está à venda).
Ela me lembra o tempo todo que ninguém perde definitivamente seus botões. Eles voltam de algum jeito, através das mãos daqueles que realmente nos escutam. Afinal, os assuntos sobre os quais “falamos com nossos botões” costumam girar em torno dos nossos “botões perdidos”.
Calendário emocional
Sem ter consciência, somos tocados pelo aniversário de eventos ou rotinas, dos quais sequer sabíamos que lembrávamos.
Sabe aquele relógio que há dentro do celular e dos computadores, que mesmo que o aparelho esteja desligado mantêm o horário e a agenda atualizados? Nosso inconsciente é igual. Ele tem um calendário infalível, que faz com que tenhamos sensações ou pensamentos “comemorativos” de datas que sequer sabíamos que lembrávamos.
Quando somos tomados por uma tristeza incompreensível, um desânimo fora de sentido, um choro estranho, uma brabeza despropositada, enfim, algo aparentemente fora de lugar, talvez seja o tal “calendário emocional”. Algo pode estar sendo evocado nessa data. Sem ter consciência, fazemos o luto de aniversários de morte, de separação, da saída de um emprego, da partida de um filho, de um aborto ou qualquer outro evento significativo, duro ou doído. Todas as datas estão registradas em nosso relógio interno. Para fazer você acreditar nisso, vou contar a história, que aconteceu com uma paciente, que foi surpreendente até para mim, mesmo depois de décadas de trabalho como psicanalista.
Ela acordava todos os dias às três da manhã, depois demorava para dormir. Olhar o relógio e confirmar a infalibilidade do despertador interno só piorava as coisas. A sensação era de estar sendo vítima de um complô. Havia anos que quebrávamos a cabeça tentando entender o porquê dessa persistente repetição.
Sua vida mudou e isso passou. Andávamos esquecidas do enigma, quando ela se pôs a falar sobre um período muito solitário e difícil em que, a trabalho, vivera na Coréia. Foi lá que essa maldição das três da manhã começou e, nas noites insones, costumava pensar que aqui eram três horas da tarde. Dessa vez, ao contar a história lembrou que durante sua infância, o pai, que era viajante e passava a semana fora, partia sempre aos domingos às três da tarde. Na sua ausência, minha paciente ficava à mercê da mãe, cuja agressividade se expressava principalmente com ela. A filha sabia que a saída do pai era o começo de uma jornada semanal de gritos e castigos.
Muitos anos depois, soube-se que esse homem tinha duas famílias e, mesmo sem ter consciência disso, a filha intuía que sua partida era muito mais significativa do que se fosse apenas trabalhar. O hábito de despertar às três da madrugada, sentindo-se abandonada, como ocorria naquele lugar estrangeiro de fuso horário invertido, era um reencontro com a desolação que chegava quando ele partia.
Essa história lembra a força das moções internas que governam nossa vida. Elas serão tanto mais persistentes quanto menos tivermos acesso a seu significado. Podemos combater uma insônia como essa, por exemplo, usando uma medicação ou qualquer outro recurso. Mas não custa ir um pouco mais a fundo e descobrir o sentido oculto desses acontecimentos psíquicos, aparentemente bizarros. Decifrá-los possibilita que nos maravilhemos frente à eficácia da máquina psíquica que nos move. Sua precisão pode até ser assustadora, mas a familiaridade com sua lógica maluca possibilita que certas maldições deixem de nos assombrar.
Emoções de uma escolar
Os dramas de colégio revividos nas redes sociais.
Você tem alguma ideia do quanto sofre uma garota em idade escolar? Lembro com indesejável nitidez dos dramas em torno de quem senta com quem, da mágoa pelas vezes em que não fui escolhida ou aceita como companhia para merendar. Ao longo do primeiro grau partilhei a solidariedade vexada que se estabelece entre as impopulares.
Algumas vezes tentei ser a terceira incluída em duplas de amigas que eu achava o máximo. Aos meus olhos, elas eram altas, cheirosas, bem vestidas, com cabelos perfeitos, letras bonitas e famílias bacanas. Eu, ser inferior, era a que ficava de fora e tornava o vínculo delas mais coeso. Faziam de mim um io-iô e eu topava, em nome das migalhas de convívio. Cada turma de escola tinha um pequeno núcleo de criaturas idealizadas em contrapartida ao grande número das que se consideravam párias.
Revejo esses dramas cada vez que encontro adultos sentindo-se inferiorizados por causa do que aparece nas redes sociais. Nelas, compartilhamos partes editadas da nossa vida e a ênfase são os signos de felicidade e sucesso. Entre os hits estão o estado civil, pets, família, comemorações e viagens.
Ah as viagens! Você já reparou que só nós parecemos estar trabalhando, enquanto os outros tomam uma taça de vinho com vista para uma encantadora praça europeia? Os que não estão lá, fazem trilhas incríveis, nadam com golfinhos ou brindam num paraíso caribenho. Há também a turma que passa temporadas no exterior, para relaxar, estudar ou criar, estes para mim os mais invejados. E nós num nada charmoso engarrafamento, com um café de garrafa térmica de consolo.
Todos se divertem, festejam, casam, formam-se, batizam, debutam. Nas enfadonhas fotos de grupos, vemos gente vestida de forma incômoda, com seus melhores sorrisos estudados. Os casais estão apaixonados, a família unida, netos e avós se entendem, há muitos sobrinhos, afilhados, os filhos são fofos, os cachorros são adequados, os gatos simpáticos. Os protagonistas mais apreciados em postagens edulcoradas são os filhotes, humanos ou animais. Não quer dizer que eu deixe de colocar tudo isso: filhas, festas, viagens. Cada um a seu tempo, Bilbo, o cachorro babão, e a arisca gatinha Cora têm sido vedetes da parte pública da minha vida.
Independente, porém, do quanto se viaje, namore e possua seres queridos, estaremos em desvantagem. Os populares são uma fantasia que cultivamos, curtimos e invejamos, como na escola fundamental. A maioria de nós se aglutina na solidariedade vexada dos excluídos. Pensamos que há um lugar e tempo, que não são os nossos, onde estão aqueles que são felizes de verdade. Parece um desperdício tanta tecnologia a serviço das emoções típicas de uma colegial. A conexão virtual não criou essa gente insegura, apenas a revelou.
Que tal abrir mão da ingenuidade? A vida dos outros não é perfeita, seus cabelos não são ajeitados e todas as famílias são malucas, peculiares e bacanas a seu modo. É fim de ano, sejamos sinceros: os populares não se sentem assim, não são mais felizes e eles também estão de olho na grama do vizinho.
Menino felino
Pequenos detalhes, grandes amores.
Minha sogra ensinou seu filho a andar em cima dos telhados. Eles moravam no primeiro andar e ele, com sua leveza infantil, foi incumbido de caminhar no telhado que ficava abaixo da janela para resgatar roupas e prendedores que insistiam em cair. Como um gatinho, ele passou a frequentar clandestinamente os telhados. Seu observatório predileto dava para a lavanderia de um hotel vizinho, onde escutava a conversa das funcionárias. Qual é o homem que não gostaria de saber o que as mulheres falam entre si na intimidade? Imagine um garoto, com tudo ainda por saber, o quanto essas aulas sobre a vida vinham a calhar.
Certo dia, entregue à sua sorrateira espionagem, escutou a conversa de duas lavadeiras que falavam mal de uma terceira mulher. Uma sirigaita imperdoável, ladra do marido de uma amiga comum. “Também – observou uma das lavadeiras – pessoas de olhos verdes não são boa gente!”.
Naquele momento Mário descobriu algo que jamais havia observado: os olhos tinham cores diferentes e mais, isso informava sobre a natureza de seus portadores. De posse dessa nova bússola para classificar o mundo, investigou os olhos dos membros da sua família. Para seu espanto constatou que seus pais e irmãos tinham todos olhos verdes. Ele, de olhos azuis, estava cercado de pessoas malévolas!
Bom, com o tempo tudo se relativiza e ele pôde tranquilizar-se quanto à respeitabilidade dos seus familiares, apesar daquele mau indício. Além disso, as pessoas com olhos verdes, como eu, tornaram-se seu perigoso e atraente mistério e certamente me beneficiei disso.
Quando buscamos um amor pensamos que a compatibilidade de gostos, pensamentos e parâmetros éticos tem uma influência importante, até tem. Porém, não há quem não estranhe a falta de lógica visível na maior parte das paixões. Tentamos atribuir as compulsões amorosas às características físicas, que mudam conforme a época, e a uma tal de “química”, que parece ser o elemento surpresa, o mais inapreensível.
Nosso modo de amar, assim como o sentimento de que julgamos ser merecedores, é resultado de uma colcha de retalhos formada a partir de pequenas histórias, aparentemente aleatórias, mas que assumem grandes significados. A partir das nossas vivências construímos um ideal de gênero e traçamos os contornos daquilo que será um objeto de desejo. Somos influenciados pelo que nossos pais foram, gostariam de ter sido, ou mesmo por tudo o que eles condenam. Pessoas de olhos verdes, por exemplo, para o menino-felino, apresentaram-se como irresistíveis, mesmo que moralmente questionáveis. Uma experiência no divã ajuda a relativizar essas determinações ao tentar mergulhar nos pensamentos que formam o rio subterrâneo que irriga nossas escolhas amorosas.
Sei não, talvez minha própria história de amor tenha dívidas com prendedores de roupas, telhado e lavadeiras. Quanto a mim, porque coloquei os olhos nele… Bom, isso é outra história te talvez tenha a ver com seus olhos azuis.
Saudades do que nunca tive
Da importância dos trens para que pudessemos existir psiquicamente ao longo dos trajetos.
Andei mais em trens imaginários do que reais. Não tive a sorte de crescer no tempo do trem. Nas andanças da vida conheci barcos e aviões, mas minha quilometragem foi mesmo de ônibus. Criança enjoadinha, literalmente falando, jamais cheguei ao destino com a roupa limpa e uma cara que não tivesse ficado verde. Só de olhar para o ônibus já sentia a chegada das náuseas.
Não estamos falando de ônibus espaçosos, esses que parecem barcos de cruzeiro sobre rodas, mas sim do transporte rodoviário dos anos sessenta. Eram veículos arredondados, pequenas janelas que mal abriam, sempre acima da linha dos olhos das crianças. Além disso, os passageiros fumavam sem parar, ali dentro mesmo.
Não me conformo em pensar que eles vieram para substituir os trens, que tinham movimentação cadenciada e previsível, eram espaçosos e havia como caminhar dentro deles. Além disso, a paisagem movia-se de modo em que os olhos podiam acompanhar a chegada e partida de uma imagem. O trem nos nina e nos conta histórias, com seu balanço e o filme da janela. Depois disso, transportar-se tornou-se supersônico, rápido, até os trens já não fazem tchu-tchu, embora ainda tenham nos trilhos um fator de estabilidade que os estômagos frágeis agradecem.
Sei que deixamos de viajar de trem pela imposição do petróleo, pelo culto da velocidade, pela popularização dos carros com a individualização de tudo. Mas gosto tanto de percursos que lastimo a eficiência de que passamos a dispor. Há uma espécie de meditação associada ao tempo demorado da chegança, à alternância entre o olhar sugado pela paisagem e o pensamento regido pelo cérebro descansado. Quando não estamos dirigindo, quando os trilhos impõe um caminho e uma velocidade únicos e a locomotiva lá na frente puxa os vagões passivos, podemos repousar das decisões e disputas, pois ninguém precisa ultrapassar o outro. Embarcamos na melancolia do que deixamos e na expectativa do que nos espera, o percurso cria um lapso em que essas duas pontas se desconectam. Uma parte importante de nós existe nesse intervalo de tempo.
Gosto de sonhar com um mundo de trens cadenciados e sem pressa. Não estou me referindo evidentemente a vagões lotados onde se viaja como bichos rumo ao frigorífico. Sei que hoje providenciamos esse momento de alheiamento da pior foma: suportamos os engarrafamentos fugindo para dentro dos dispositivos eletrônicos, refugiando-nos na música, na comunicação compulsiva, porque não há nada na janela. Editamos uma trilha sonora ou improvisamos uma companhia para enfrentar o tempo inexistente do trajeto congelado. A paisagem do trem não carece desses improvisos, é a mesma para todos, fica disponível para que cada um possa percorre-la com seus pensamentos.
Presos em lugares-nenhuns-que-se-movem, sonhamos com férias e viagens, onde nos dispomos a chegar a algum-lugar-para-contemplar-a-paisagem. Se algo ainda me enjoa é tanta claustrofobia. O mundo ficou menor, no sentido de que é possível percorre-lo com uma eficiência incrível, real ou virtualmente, mas nosso olhar nunca foi tão estreito.
Aprendendo com o Alzheimer
O que é bom lembrar antes de esquecer?
A professora de estudos de gênero da Universidade Cornell, Sandra Bem, Sandy, para os íntimos, pôs fim à própria vida em maio de 2014, cinco anos após seu diagnóstico de Alzheimer. A decisão era morrer antes que sua existência tivesse lhe sido totalmente usurpada pela doença.
Apesar das perdas intelectuais, os anos restantes permitiram-lhe testemunhar a chegada ao mundo do neto, assim como ajudar à filha nos cuidados dele. Para este último, a avó apenas levemente demenciada tornou-se uma querida bubba, que era como as avós eram conhecidas na família. Sob efeito da doença, Sandy apresentava uma doçura e uma leveza que eram estranhas àquela acadêmica de pequena estatura e grandes ideais.
O convívio com as perdas foi sendo suportável, principalmente graças ao seu bom humor. Até a chegada de um dia em que, ao despedir-se da filha perguntou à cunhada quem era a mãe daquela mulher que recém saíra dali. Obteve a resposta de que era ela mesma e tristemente arremedou: – desconfiava disso. Era chegada a hora. Já havia conseguido por correio a substância necessária, assinou e datou os papéis previamente preparados, eximindo todos seus seres queridos da responsabilidade pelo seu ato e, sem dramalhões, partiu. No espaço que havia destinado para “observações finais” nada conseguiu preencher, sua mente já não tinha esse alcance.
A história de Sandy, contada no texto Juízo final, da Revista Piauí número 106, é mais radical que o filme Para sempre Alice (2015), onde a pesquisadora não conseguiu levar seu plano de suicidar-se até o fim. O filme suaviza o espinhoso tema do suicídio. Na verdade, a transformação da linguista Alice na bobinha acompanhante de sua filha caçula, com quem ainda consegue ter uma postura afetuosa, atenua um pouco o drama da despersonalização tão temida por todos nós.
Recentemente passei o dia todo atrás de uma palavra que não recordo qual era, e tampouco sei se afinal a achei. Estou chegando à idade madura junto com vários de meus amigos e pacientes. Entre nós, sorriso nervoso nos lábios, já falamos por alusões aproximativas como: “aquele ator que fez o Sherlock, o mesmo que fez o cientista gay discriminado que quebrou o código dos alemães, como era mesmo o nome do filme?”. Ficamos, mesmo sem querer, monitorando o declínio visível da memória imediata.
A parte apavorante dessas histórias de Alzheimer é a abreviação do processo de envelhecimento até a vertigem. Alertas, muitas vezes confundimos as bobeiras normais com o desgaste do cérebro, mas como sempre fui avoada, acabo me surpreendendo menos com as lacunas de comportamento e memória. O que realmente esquecemos é que a memória costuma ser esquiva, se entrarmos em pânico não saberemos sequer responder o nome completo. E mais, as pessoas esquecem é que nunca tiveram de fato uma memória prodigiosa. Calma, tudo o que é imprescindível volta. Talvez essa rebeldia das evocações tenha o propósito de nos lembrar que a paciência é a principal aprendizagem que a maturidade nos reserva.
(publicado na Revista Vida Simples do mês de setembro de 2015)
O anel que tu me destes
A premissa do desapego é a descoberta daqueles pertences com os quais fabricamos uma identidade.
Herdei um anel de madeira. Ele foi feito pelo meu tio-avô em uma macabra oficina onde que lhe coube trabalhar. Por sua vitalidade, na hora de repartir os deportados entre a vida e a morte, Ödon foi destinado aos trabalhos forçados em Auschwitz e conseguiu sobreviver. A mesma sorte não tiveram meu avô e meu tio, irmão de meu pai.
Ödon furtivamente entalhou esse único pertence pessoal, um tesouro tanto mais valioso pois desafiava o castigo da impessoalidade, que transformava pessoas em números, sem cabelos nem distinção alguma entre si. A despersonalização era uma das formas utilizadas no campo de concentração para matar a identidade antes do corpo. Como fabricou e salvou o anel nunca soube, mas antes de morrer ele o presenteou a meu pai, seu sobrinho.
Os colegas da instituição psicanalítica à qual pertenço estão criando um museu virtual onde as pessoas podem comparecer com um objeto que considerem especial e descrever sua importância. Nesse museu não haverá nenhuma presença física, só encontraremos histórias e imagens de objetos de relevância pessoal, de preferencia que tenham pertencido a alguém a quem a sociedade de alguma forma silenciou. Terei o privilégio de participar com esse anel.
Hoje falamos muito em desapego, um debate imprescindível em uma sociedade que vive produzindo lixo, cercando-se de objetos descartáveis comprados por compulsão. Como a identidade nunca foi tão frágil e avulsa, acabamos sentindo-nos representados pelo que possuímos. Cada um amontoa sobre si uma miríade de coisas através das quais espera se valorizar. O problema é que como nenhuma delas faz efetivamente uma marca, tornam-se obsoletas e vão para o lixo as inúteis tentativas de ser alguém por seu intermédio.
É fundamental saber descartar e dar-se conta da inutilidade do acúmulo. Isso passa também por escolher quais são nossos verdadeiros pertences. Os mendigos talvez tenham algo a ensinar: eles costumam ter sempre consigo uma trouxinha ou sacolinha que, aos nossos olhos, estaria cheia de lixo. Muitas vezes ela está mesmo, contém trapos sujos e jornais amassados, que somente possuem o significado de representar o único pertence daquele que é nada. Não é estranho que os que se sentem como um nada preencham sua trouxa com coisas que também são nada. Já os bebês, que ainda sabem ser pouca coisa, apegam-se fortemente a um trapo ou brinquedo encardido que é seu primeiro pertence pessoal.
Provavelmente, para Ödon, a construção desse anel fez parte de sua estratégia de sobrevivência. Encerrada sua longeva existência, em outro continente, uma descendente que ele nunca conheceu pessoalmente o escolheu para esse museu de objetos peculiares. Como ele, também tentarei deixar algo que possa ser usado pelas gerações futuras para contar uma história. “É interessante, como dentro do essencial, recordo principalmente de pequenos detalhes que ganham importância e se fixam na memória”, escreveu Ödon a meu pai.
(Coluna da Revista Vida Simples do mês de agosto de 2015)
A casa do gigante
Vendo o mundo desde diversos pontos de vista nos tornamos mais sábios, ou menos truculentos…
Gosto de imaginar uma espécie de instalação chamada “A casa do gigante”, um lugar para ser visitado pelos adultos. Seria como uma casa normal, ou mesmo só um cômodo dela, onde todas as superfícies estivessem acima da altura dos nossos olhos. O único modo espiar em cima delas seria subindo em uma cadeira muito alta, que tenha que ser escalada. Ali nos sentiríamos tão pequenos em relação ao ambiente que em nosso horizonte apareceriam somente pernas, sapatos, barras de saias e os sons das vozes viriam de cima, entrecortados, confusos. Se pudéssemos viver isso, nem que seja em uma experiência sensorial, lúdica, talvez nos tornássemos mais capazes de compreender as crianças.
Isso foi antes de conhecer o incrível trabalho do escultor australiano Ron Mueck e seus gigantes hiperrealistas. Ele cria figuras humanas enormes, representando gente normal, fazendo coisas corriqueiras, ao lado das quais uma pessoa crescida sente-se do tamanho de uma criança de dois anos, no máximo. As exposições de sua obra atraem multidões, acredito que em busca da sinistra sensação de viverem algo que um dia já nos foi familiar.
O mundo ao qual as crianças são apresentadas não é do seu número, o que as leva a um modo peculiar de cognição. Elas constroem suas teorias a partir do que literalmente lhes cai de cima. Recolhem migalhas de cenas, de frases, observam o sapateado, o movimento das mãos e a sonoridade das vozes sem entender com exatidão o que se passa. Tentam decifrar a mímica facial, a linguagem dos gestos, prestam atenção em tudo, embora estejam brincando e parecendo alheias. Vão montando suas hipóteses, fazendo suas colagens, entendendo a seu modo quem são seus adultos, quais vínculos eles têm entre si e em relação a ela.
Como os bichinhos, seus personagens prediletos, elas também ficam de fora e estão mais próximas do chão. Por isso, quando era pequena gostava de “morar” numa casinha feita com um pano jogado em cima de uma mesa, um lugar que me acolhia por ser na minha medida.
Falar com uma criança exige do adulto uma atitude que será decisiva para o tipo de relação que estabeleceremos com ela. Se falarmos do alto, olhando para baixo, estamos optando pela distância, pela hierarquia. Ao levantá-la, podemos içá-la, como se fossemos um guindaste e ela se entregará passivamente como um saco de batatas. Por outro lado, é possível oferecer nosso corpo e braços de forma a que ela suba, embarque ativamente, e possa em nossa companhia contemplar a paisagem do alto. Por último, se nos sentarmos ou acocorarmos, encontraremos seus olhos e partilharemos seu ponto de vista.
Na relação entre gigantes e pequeninos, há uma dança de corpos, um jogo de olhares, um esforço de encontro que precisa vencer o desajuste de tamanhos, de visões. Frequentemente nos surpreendemos com as coisas incríveis que as crianças dizem e ficamos abismados com sua esperteza. É que desde sua perspectiva acabam percebendo sutilezas, enxergando o que nossa percepção viciada deixa escapar. Quando as diferenças são respeitadas, todos os envolvidos aprendem.
(publicado na revista Vida Simples do mês de julho)