Revista Vida Simples
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Apostas

Até que ponto podemos apostar em algo, num projeto que não vinga, numa escolha amorosa equivocada?

Quem entende de matemática (o que não me inclui) costuma dizer que ganhar na loteria é tão improvável que os sorteios só sobrevivem graças à ignorância dela. Bom, esse é o caso da maioria das religiões: rebeldes à comprovação, os fiéis insistem em acreditar no impossível. A visita a uma agência lotérica é um ato profano de fé, tanto que costumamos dizer que estamos “fazendo uma fezinha”, rezamos por uma vitória da esperança sobre a realidade. Aliás, se o otimismo dependesse dos fatos estaria extinto.

Por uns quarenta dos seus oitenta anos de vida, minha avó apostou no mesmo número de loteria, comprava o bilhete junto com um parente mais jovem. Quando ela se foi, ele seguiu com esse hábito até seus últimos dias. Confrontado com a decisão de parar ou continuar com o que já era uma birra paterna, seu filho, mesmo amedrontado, parou de comprar o número. O temor que os movia era que no mesmo dia em que resolvessem abandoná-lo ele sairia, como se existisse uma memória vingativa entre uma rodada e outra de apostas. Não sei se afinal o endemoniado prêmio saiu para esse número, tenho receio de investigar.

Temos esse hábito em relação a apostas menos lúdicas e levianas do que um bilhete de loteria. Quantas vezes nos pegamos insistindo num relacionamento fracassado, num negócio falido, numa escolha equivocada? Esses investimentos amorosos ignoram os dados da realidade, apegam-se às mínimas amostras de que vale a pena persistir. Eles se baseiam no mesmo temor da minha avó, de que outro, menos “merecedor”, ganhe a aposta. Junto de outro par aquela pessoa de quem já não estamos gostando pode se revelar exatamente o que queríamos que ela fosse. Tememos que se embeleze, torne-se mais romântica, responsável, bem sucedida, sensível, corajosa, criativa. Alheia aos nossos investimentos, ela prosperará assim que deixarmos de apostar. O mesmo vale para negócios e outras escolhas infelizes. Então o erro não estava no amado, no negócio, no projeto, o erro éramos nós?

Nesse caso, insistir no erro não é somente burrice, é uma espécie de aposta delirante no nosso desejo. É difícil acreditar que o destino, essa entidade que governa o acaso, seja tão rebelde à nossa vontade. Afinal, esse não era o segredo – como dizem algumas fórmulas de auto-ajuda – querer muito e persistentemente?

A admiração que sentimos por aqueles que levaram seus desejos às últimas consequências é coerente. Os perseverantes revelam que não basta querer, é preciso trabalhar em prol do que se almeja. Por outro lado, a obstinação supersticiosa em acreditar na supremacia da nossa vontade sobre o destino é aprisionante. Muitas vezes o segredo está em desistir, escolher outro número na vida no qual apostar. Esse ato em geral requer muita coragem e o mais difícil: a sinceridade consigo mesmo de admitir que também fazemos escolhas erradas, e que nossa vontade pode não fazer a mínima diferença.

(publicado na Revista Vida Simples de junho 2015)

Filhos-bonsai

Como criar filhos sem fazer deles Bonsais, sem reproduzir o cuidado e as podas que atrofiam e impedem o crescimento.

Meu marido tem um jardim de cactos e suculentas. Ele parece ter uma espécie de identificação com sua estética monstruosa. Mário ama dragões e todo tipo de animal que pareça, mesmo que remotamente, pertencer a uma fauna fantástica, assim como esses seres espinhudos e retorcidos. Aliás, ele costuma dizer que “cria” suas plantas, seus monstrinhos verdes.

Mantém-se curioso em relação a todo o reino vegetal, adora pesquisar suas classificações, e só há um tipo de planta que lhe produz mal-estar: o bonsai. Tem pena dessas árvores, que lhe parecem atrofiadas. Bem sei que os praticantes dessa arte de origem oriental consideram improcedente o sentimento daqueles que julgam que os bonsais seriam árvores torturadas para permanecerem minúsculas.

Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro são as três ditas tarefas a realizar antes de morrer. Porém, discordo de que se possa arrolá-las como realizações possíveis, já que não acho que possam ser concluídas. Ter um filho nunca é um gesto acabado, é preciso criá-lo e ficar negociando com o jeito como ele se inventa. Podemos ser semente e terra, mas não passamos de ponto de partida. Escrever um livro é o começo de um vício. Cada obra já sai da editora como mais uma tentativa fracassada de dizer algo que nos escapa, dali a necessidade do próximo. As árvores, bom, crescem por conta e dependem muito do ambiente.

Mas como seria escrever um livro e criar um filho ao modo bonsai? Nossa necessidade de propor que um filho estude, faça esportes, realize tarefas enfadonhas e se esforce para aprender, reduz sua liberdade e o tempo de brincar. Educar lembra os suportes de arame que são também usados para que os galhos do bonsai se direcionem equilibrada e graciosamente.

Para orientar um filho que possa crescer é preciso fazer algo diferente de uma poda que o atrofie, que o deixe como um frágil e dependente bonsai. Envolve suportar que seus galhos, no sentido de sua identidade, suas escolhas, seus dons e também suas humanas imperfeições, assumam formas imprevistas. Ao crescer se empalidece os traços e intenções dos pais. Quem escreve um livro também sente que a autoria lhe escapa, tem-se pouco controle sobre o estilo, o tema escolhido, o tamanho em que ele vai ter.

Não é possível deixar que livros, filhos ou árvores plantadas cresçam selvagemente, eles precisam de cuidados e até de podas para florescer. Por outro lado, precisam tornar-se “traidores” dos seus autores, sejam eles pais ou escritores. Eles se avolumam na arte de ter vida própria, seu destino os transcende. A criatura sempre escapa do criador.

Para controlar uma cria, só mesmo reduzindo-a a ser um bibelô, a imitação de uma árvore grande, de uma pessoa crescida, de uma obra prima. Seres-bonsais, filhos perfeitos em representar nossos ideais, não são viáveis para enfrentar os ventos, o sol e a chuva do mundo lá fora. Não passam de bibelôs, troféus na estante familiar e, esses sim, me produzem muita tristeza.

Gêmeos: cobiçada semelhança

Por que somos fascinados por gêmeos?

Acho gêmeos idênticos fascinantes e mesmo os que não são diferentes, mas nasceram juntos, me parecem invejáveis. Nas gestações os cobiçava, além de que gosto de imaginar como seria ter tido filhos assim. Não creio que ninguém seja capaz de níveis tão profundos de cumplicidade quanto os ditos “vizinhos de útero”, mas igual me pergunto por que eles capturam meu olhar desse jeito.

A curiosidade que suscitam diz mais sobre os que nasceram sozinhos, do que dos gêmeos. Na verdade, corresponde a fantasias que temos sobre o amor perfeito. Sempre nos chateamos quando o outro, seja amado, parente ou amigo, revela o quanto nos desconhece, assim como que não nos escuta ou nos abafa. Achamos que se tivéssemos alguém que vivesse tudo ao mesmo tempo e nascesse com as mesmas armas, seríamos finalmente completos.

Tive duas colegas de jardim de infância que eram iguais, lindas, loiras, usavam grossas tranças e a mesma roupa. Nas fotos que ainda possuo aparecem como uma espécie de moldura, decorativas, equidistantes, tratadas como cenário. Poucos sabiam seus nomes próprios, tanto que não os encontro na memória. Atendiam por “gêmea”, a denominação as rotulava de metade de alguém. Os irmãos idênticos são objeto de um anedotário específico, muito mais imaginário que real. Há histórias de travessuras clássicas, trocando-se à vontade nas provas, nos encontros amorosos, criando truques para driblar a vigilância dos pais ou das escolas.

Eles de fato se entendem e é tocante a forma como se mimam. Acostumados a dividir colos, seios, aniversários e olhares, gêmeos complementam com mútua atenção os eventuais descuidos que possam ter sentido. Afinal, a cria humana costuma ser única, não chegamos ao mundo em ninhada. Porém, quem é pai ou irmão deles, testemunha o enorme esforço que eles fazem para construir uma identidade, quando tudo converge para a indiferenciação.

A imparidade, tantas vezes interpretada como falha no amor, vem bem. Eclipsados pelo egoísmo, ignoramos isso e passamos a vida buscando uma “alma gêmea”, alguém que nos ame como só nós mesmos seriamos capazes de fazê-lo. Santa ignorância: o “duplo”, na literatura não é uma figura romântica, é uma das representações do terror. Ver-se espelhado, mas numa imagem que se movimenta autônoma, alheia à nossa vontade, é assustador, irritante. Longe de ser belo, é sinistro e produz agressividade, tentativa de controle. Na ficção, quem encarou seu duplo não conseguiu controlar o impulso de supressão daquela cópia imperfeita. Não há narrativa literária em que ambos terminem vivos.

Sentimo-nos incompletos, mas não será o amor que nos curará dessa insuficiência: o outro nunca é a parte que nos falta, nem tampouco somos a dele. Não adianta parecer-se, suprimir as diferenças e a vida pessoal, fazer tudo juntos. Já nascemos chorões, reclamando uma ausência de aconchego que nunca deixaremos de  sentir. Pobres gêmeos, deve ser muito duro ter que arcar com esse olhar curioso, herdeiro do luto por essa metade inexistente

Ponto de vista

Olhar é uma arte.

No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.

Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.

Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.

História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.

A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferencia a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.

Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.

Em defesa das trevas

A escuridão esconde segredos e belezas.

Nas noites da infância, costumava percorrer o corredor que conduzia ao banheiro na expectativa de encontrar um fantasma específico: o do meu pai, que morreu antes que pudesse conhecê-lo. Não havia noite em que eu não levantasse aterrorizada pela possibilidade desse encontro, mas na esperança de vê-lo ao menos uma vez. É na escuridão que moram nossos fantasmas imprescindíveis, mas também nela se escondem malfeitores reais e imaginários e, principalmente, os monstros das crianças.

Por vezes os pequenos têm terrores noturnos, não conciliam o sono paralisados pela sensação de veracidade das próprias fantasias ou pesadelos. Em função disso, muitos pais evitam contar histórias que possam alimentar esses temores. Tentando protegê-las, na verdade as estão privando de dar uma forma ao que ameaça. O desconhecido, aquilo que não tem uma narrativa que o contextualize ou carece de contornos definidos, em vez de medo produz angústia, que é o pior dos sofrimentos. Em todas as idades encontramos o hábito de dormir com alguma luz ou a televisão ligada. Só que a meia luz produz sombras muito mais assustadoras que o breu. Quem, numa noite de insônia ou ao adormecer, não enxergou a silhueta de um vilão em um cabideiro com roupas?

A escuridão é a morada do medo, mas também do encanto. Lembro de uma velha senhora que reclamava da luz elétrica, dizendo que a achava muito feia. Parece ranço de pessoa idosa, mas não é. Eclipsados pela praticidade das noites que parecem dias, esquecemos do valor das trevas. Excetuando alguns lugares e ocasiões em que a iluminação é uma arte, a luz preenche tudo, coloniza o espaço. São noites brancas, em que se suprimem os focos, as sombras e se apagam as estrelas.

Ao conduzir-nos pela casa utilizando uma luz manual, pode ser uma vela, lanterna, ou mesmo a luz emitida pelo telefone, tornamo-nos iluminadores. Somos como esses artistas que fazem a graça de uma peça ou de um filme através do uso da luz. Eles editam, dirigem e emolduram nosso olhar, vale lembrar que a luz só ressalta se tiver o contraponto da escuridão. Quando focamos à frente, o negrume fecha-se às costas, ameaçador. Então precisamos usar outros sentidos: o tato que percorre as paredes e adivinha o contorno dos objetos, a audição que adivinha presenças e mede distâncias. Na falta da luz desenvolvemos os dons de orientação dos cegos e dos morcegos.

Até hoje, com a desculpa do banheiro, caminho pela casa à noite. As trevas ainda me gelam a espinha, mas não consigo abrir mão de buscá-las. Quando o medo me supera lanço mão do interruptor, que com sua luz chapada, imensa, dissipa todos os temores e também com eles o mistério, a beleza.

Pedaço de mim

Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.

Por que os amores fracassados, as dores de corno, os abandonos, são tão prolíficos na canção, na poesia, tanto quanto ou, talvez, tanto mais do que a paixão? Porque o fim do amor é traumático. Ex-amantes são pedaços perdidos de nós, metades afastadas de nós. Levam consigo um destino que recusou-se a continuar, partem carregando em seus braços aqueles que deixamos de ser, aqueles que sonhamos juntos em tornar-nos um.

Ao rever o passado tendemos a sentir-nos trapaceados pelos próprios sentimentos. Como foi que me iludi tanto, como foi que escolhi tão mal? Repentinamente aquele que se desejou e amou torna-se um estranho e suspeitamos que o amor não passe de propaganda enganosa, um feitiço que uma vez dissipado revela alguém que nada vale aos nosso olhos.

Não creio que nos equivoquemos tanto. Por vezes no fim da história não se vive feliz nem para sempre: a gente se perde, ou mesmo escolhe caminhos que tornam-se incompatíveis, mas por certo alguma estrada, boa ou ruim, se percorreu juntos. Aquele a quem amamos não é uma pessoa imutável, ele também é resultado do casal que formou. Contemplá-lo, agora afastado de nós, é também ver o resultado disso. Se após o fim encontrarmos duas pessoas idênticas ao que eram, nesse caso a suspeita do engano se confirma: não houve relação, apenas ilusão.

Mesmo complicados os amores foram escolhas e deixam marcas no destino que não podem nem devem ser apagadas. Há músicas, cheiros, fotografias, gestos íntimos, cenários, que são oriundos daquele laço. Tudo o que vivemos intensamente nos modifica, portanto, somos também filhos dos amores que tivemos e deles ficamos órfãos quando acabam.

Um membro amputado deixa no corpo uma sensação de existência, há quem sinta dor num braço ou num pé que já não mais possui. Esses são chamados de “membros fantasma”. Poderíamos dizer que há “relações fantasma”, quando dói toda uma parte de nós, que dizia respeito àquele que se amou.

Pior do que suportar a perda daquilo que se sonhou e viveu juntos é encontrar no lugar do amor que se teve um buraco negro que nos traga. Já conheci esse desespero, já vi um olhar vazio aparecer num rosto em que antes me reconhecia, por isso sei que todo divórcio é de si mesmo. A sensação que o encontro com um ex-amor recente causa é de cair num abismo, é como se o corpo se dissolvesse.

Por um tempo, seremos pessoas fantasma, até que um dia, passando por um espelho, descobrimos que nossa imagem voltou a estar lá. Vampiros não se enxergam porque perderam todo o sangue próprio, precisam do alheio, é assim que nos sentimos quando separados: esvaziados. Aos poucos, felizmente a vida começa a pulsar novamente e podemos voltar a refletir uma imagem. Só que agora marcada pelos traços daquele olhar que uma vez escolhemos para nos refletir. Acabou, mas existiu.

Vida descomplicada

por uma rotina sustentável, pelo menos no fim de semana…

Minha rua é cheia de gatos que costumam ser pouco amigáveis, apesar da generosidade dos vizinhos que os alimentam. Intocáveis, escondem-se e fuzilam com o olhar quando alguém passa. À exceção de um deles, chamado pelo seu dono simplesmente de Gato, que é enorme e afetivo. Seu humano não exatamente o possui: um belo dia abriu a porta e o Gato entrou, apoderando-se de mais esse domínio.

Sábado de sol, a caminho do armazém há um felino atravessado na calçada. Minha vizinha Vera, que me observa a alguns metros de distância, avisa: olha só a preguiça do Gato tomando sol!  Nossa cumplicidade de rua garante que saibamos que Gato, neste caso, é nome próprio. Mais meia quadra, o dono da banca lamenta que ainda não chegou a revista encomendada, o farmacêutico me convida a apreciar a reforma em seu estabelecimento.

No “meu” mercadinho, o guardador de carros, um sujeito muito tatuado que parece ter tido dias melhores, entrou para comprar cigarros. Está discutindo com o dono do estabelecimento sobre os povos que mais fumam. Seriam os orientais segundo ele. O rapaz ruivo do balcão comenta que vendeu mais batata doce assada do que esperava num dia quente, pego as últimas. Pessoas sozinhas, quase todas idosas, comprando uma ou duas unidades de fruta, a fila do caixa anda devagar, nas sacolinhas sempre cabe muito papo. Na volta, mais encontros, mais conversa fiada, chego em casa como se tivesse tirado férias. Simples assim.

Quando me convidaram para escrever aqui, à guisa de provocação, tive vontade de chamar minha coluna de “Vida Complicada”. É de fato assim que a vejo: psicanalista de profissão, fico o dia todo lidando com as inquietudes, com a parte enigmática das vidas dos que me consultam. Mas, ao longo dos três anos em que habito a revista, a vizinhança dos meus colegas colunistas e jornalistas acabou cumprindo missão similar à do meu bairro. Uma e outra têm o dom de iluminar as pequenas coisas, emoldurar a tranquila felicidade que podemos percorrer com uma sacola de compras pendurada nos braços.

Nestas páginas nossa cabeça acaba revelando-se também sustentável. Não há fórmulas mágicas, ninguém ostenta prazeres e virtudes no grito, como é comum nas redes sociais. Aqui franqueza não significa exposição, a tristeza, os temores e vacilações são legitimados. Partilham-se tentativas artesanais de solução dos problemas, quando há alguma. É um tom que também busco na minha clínica, onde o alarmismo, a indignação, o derrotismo, o ressentimento e a arrogância só entram para serem desmascarados.

Pensando bem, esta vizinhança de revista está arejando meu modo de escrever. A Vida até pode ser vista de modo Simples, ensolarada como uma caminhada de sábado. É do seu olhar que o verão, as férias, o novo ano que está por chegar, tirarão sua luz.

(coluna da edição de dezembro de 2014 da revista Vida Simples)

Papo chato.

O discurso vazio é chato. Cego e surdo, é garantia de desencontro.

Era melhor não perguntar à minha tia-avó como ela estava. A resposta incluía um relato minucioso da sua saúde, com ênfase no inquietante desempenho do seu intestino. Já com seu marido, era preciso tomar outros cuidados: o ponto delicado da conversa devia evitar assuntos relativos a trajetos e qualquer coisa que lhe oportunizasse relatar os seus. Teríamos uma explicação dos caminhos que ele percorreu mais longa do que os propriamente ditos, dos desvios e as obras que o obstruíram, do tempo das sinaleiras e outros detalhes imperdíveis. Não pense que estou sendo intolerante com a velhice dos parentes, eles eram assim mesmo antes da visibilidade das rugas.

Essa dupla deixava bem claro que, para alguns, não existe aquela pergunta que na verdade não passa de uma formalidade: – “como vai?”; “tudo bem!”. Da mesma forma, observações sobre o trânsito ou clima na verdade são apenas saudações. São questionamentos gentis, sem a intenção de receber um boletim informativo.

O diálogo vazio no encontro com o vizinho ou colega também pode ser sobre o time, sobre alguma calamidade, a proximidade das férias, o crescimento dos filhos, a saúde do cachorro ou qualquer outra banalidade. É como um abraço verbal. Poderíamos até nada dizer e fazer alguns gestos com as mãos, ou mesuras e volteretas, se assim fosse nosso hábito cultural, mas trocamos umas palavras. Há diversos níveis de encontro, alguns incluem verdadeiras conversas, outros somente o palavrório das gentilezas. Meus tios-avós eram chatos pela impossibilidade de compreender essas diferenças.

Um diálogo tem a dinâmica de uma dança, varia conforme o tipo da música. Palavras são como os passos dos bailarinos que devem saber seguir o ritmo e o parceiro. Chato é aquele que não escuta, fala sozinho, aborrece o interlocutor com uma conversa que não leva em conta a música nem o outro. Há chatos narcisistas, egocêntricos, sempre têm muito a dizer, mas não importa a quem. Outro tipo de chato é o que se perde no próprio labirinto do pensamento, como meu tio falando do trânsito. Eles ocupam o espaço sonoro, mas não conseguem dizer nada relevante e esterilizam o diálogo. Como no caso da tia, há os que estão tão submersos em seus sofrimentos que esqueceram como é olhar para fora, chamam o interlocutor para o único lugar que conhecem: seu próprio interior.

Meu trabalho é uma luta cotidiana contra a banalidade das palavras.  Sou grata àqueles que arduamente separaram uma preciosa fatia de seu tempo para ir ao meu consultório e me esforço para que não o façam à toa. Posso até acolhe-los com um bom abraço verbal, mas fico atenta às estrofes de verdade audíveis na música das suas palavras.

Felícia reabilitada

O amor, quando insiste em fazer do outro o que imaginamos, independente do que ele é, pode ser perigoso! No meu caso, algumas pequenas vidas pagaram o preço dessa aprendizagem!

Essa é uma história para corações fortes. A confissão é difícil: sou uma Felícia reabilitada. Como a personagem dos cartoons, torturei com meu afeto criaturas indefesas. Carrego a consciência pesada das mortes trágicas de pequenos animais. Não fui uma criança má, apenas vivi um tempo em que eles não eram tratados com a consideração que mereciam. Faltava-nos a compreensão das suas peculiares condições de vida.

A primeira delas foi uma tartaruga, daquelas verdinhas, do tamanho de uma moeda, comprada de uma miserável bacia de ambulante. Estava já graúda e gordona quando achei que ela sentia saudade dos seus mares. Antes de sair para a escola, transformei a pia numa piscina generosa para que pudesse passar a tarde nadando. Só que com meus sete anos eu não sabia bem que tartaruga não era peixe e, ao voltar, encontrei-a boiando, morta de cansaço.

A vítima seguinte foi outra tartaruga, para quem numa noite muito fria resolvi costurar um pijama. Amarrei em seu redor uns trapos que lhe atrapalhavam o movimento e a pus a dormir quentinha, comigo. Morreu sufocada pelas cobertas.

Minha terceira vítima foi um hamster. Newton chegou na minha vida quando era jovem e muito ocupada. Cresceu selvagem e solto, um rato bonito que corria pelo apartamento. Era furtivo, mas um dia tomou coragem e tentou entrar na geladeira, fonte de suas apetitosas verduras. Sem notar sua presença fechei a porta num movimento brusco, que esbarrou no pescoço do pobrezinho, morto em busca do seu tesouro.

Para a maior parte das crianças contemporâneas, a diversidade de ecossistemas, espécies, culturas, assim como a inclusão, fazem parte do currículo. Isso pode salvar o planeta, difundir a tolerância, mas é uma aprendizagem importante também para o convívio íntimo, onde também amamos e nos vinculamos sem perceber as diferenças uns dos outros.

Você já pensou quantas vezes confundiu liberdade com abandono? Certamente era eu que sentia falta de “outros mares”, não minha tartaruga que precisava era de um repouso para respirar. Quantas vezes sufocou e colocou sobre um ser amado alguma camisa de força letal? Oferecer nosso calor não quer dizer prendê-lo e, em geral, esse é um aconchego do qual estamos nós mesmos carecendo. Quantas vezes você foi cego aos movimentos do outro, incapaz de perceber sua aproximação, como fui com o discreto Newton?

Acho que ao longo da vida também maltratei algumas pessoas que amei, deixei morrer alguns afetos, provavelmente houve vínculos que poderiam ter crescido saudáveis e sucumbiram. Continuo aprendendo, mas faço votos de que essas pequenas alminhas animais não tenham morrido em vão.

Mamãe posso ir?

Por que as mulheres não se libertaram dos torturantes saltos altos?

Lembra aquela brincadeira infantil, em que se fazia a pergunta: – mamãe posso ir? Se a “mamãe” dissesse que pode, seguia-se nova questão: – quantos passos posso dar? Ela dizia um número qualquer. Aí o “filho” novamente perguntava: – De que? Ao que ela designava um bicho: passinhos minúsculos de formiguinha, saltados de canguru, grandões e pesados de elefante, rastejantes de cobra. Ia-se avançando conforme a boa vontade da criança que fizesse o papel da progenitora.

É mais o menos esse o diálogo imaginário que muitas mulheres mantêm com seus sapatos antes de sair de casa. Vou ficar sentada o dia inteiro? Passinhos de princesa em saltos altos. Vou andar de ônibus, metrô, sair, andar à pé? Passos largos em calçados baixos e cômodos. Como se vê, os sapatos femininos são acompanhados de um dilema cotidiano de mobilidade.

Dizem que caminho com a graça de um pinguim, motivo pelo qual nunca fui elegante em delicados calçados de saltos e bicos finos. Além disso, são raras as ocasiões em que fico disposta a condenar-me aos passos claudicantes dos sapatos tipicamente femininos. Já vi mulheres que correm como gazelas mesmo dentro de improváveis saltos altos, plataformas e tirinhas, nunca serei uma delas.

Há locais de trabalho que exigem das funcionárias que compareçam usando saltos. Devem apresentar-se sensuais e atraentes, mesmo que a função exija que permaneçam em pé ou se desloquem bastante. Executivas, diretoras, CEOs, não se concebem sem seus scarpins. Os saltos lhes dão uma sensação de envergadura e elegância, sem perder a delicadeza que se espera dos pés femininos. Dores, doenças e contraturas são recorrentes na vida dessas trabalhadoras. Por que elas não se revoltaram contra essa forma de tortura, herdeira do espartilho e da saia de armação, que sufocavam e imobilizavam suas antepassadas?

A alvura da pele, assim como a delicadeza das mãos e dos calçados, foram associados à nobreza. Eram sinais de distinção, pois significavam que não faziam trabalhos braçais. O bronzeado artificial e o corpo perfeito, ambos investimentos onerosos, hoje cumprem a mesma função. Ser inútil e fútil era um valor, pelo jeito isso não mudou tanto.

No tempo das nossas avós, a dependência, fragilidade e enfeites das suas filhas e esposas sublinhavam a glória do seu provedor. Eram prisioneiras, era ruim para sua reputação circular sem supervisão masculina ou materna. Ao libertar-se, elas puderam usar cabelos curtos e calças compridas, ir aonde quisessem, ser cidadãs. Mas, apesar do incômodo, continuaram apegadas a algumas dessas insígnias femininas de distinção de classe – saltos altos, unhas compridas. Apesar do tanto que já andaram, as mulheres ainda precisam ganhar mobilidade: praticar outros passos, sem ter que pedir licença para ninguém.