Felícia reabilitada

O amor, quando insiste em fazer do outro o que imaginamos, independente do que ele é, pode ser perigoso! No meu caso, algumas pequenas vidas pagaram o preço dessa aprendizagem!

Essa é uma história para corações fortes. A confissão é difícil: sou uma Felícia reabilitada. Como a personagem dos cartoons, torturei com meu afeto criaturas indefesas. Carrego a consciência pesada das mortes trágicas de pequenos animais. Não fui uma criança má, apenas vivi um tempo em que eles não eram tratados com a consideração que mereciam. Faltava-nos a compreensão das suas peculiares condições de vida.

A primeira delas foi uma tartaruga, daquelas verdinhas, do tamanho de uma moeda, comprada de uma miserável bacia de ambulante. Estava já graúda e gordona quando achei que ela sentia saudade dos seus mares. Antes de sair para a escola, transformei a pia numa piscina generosa para que pudesse passar a tarde nadando. Só que com meus sete anos eu não sabia bem que tartaruga não era peixe e, ao voltar, encontrei-a boiando, morta de cansaço.

A vítima seguinte foi outra tartaruga, para quem numa noite muito fria resolvi costurar um pijama. Amarrei em seu redor uns trapos que lhe atrapalhavam o movimento e a pus a dormir quentinha, comigo. Morreu sufocada pelas cobertas.

Minha terceira vítima foi um hamster. Newton chegou na minha vida quando era jovem e muito ocupada. Cresceu selvagem e solto, um rato bonito que corria pelo apartamento. Era furtivo, mas um dia tomou coragem e tentou entrar na geladeira, fonte de suas apetitosas verduras. Sem notar sua presença fechei a porta num movimento brusco, que esbarrou no pescoço do pobrezinho, morto em busca do seu tesouro.

Para a maior parte das crianças contemporâneas, a diversidade de ecossistemas, espécies, culturas, assim como a inclusão, fazem parte do currículo. Isso pode salvar o planeta, difundir a tolerância, mas é uma aprendizagem importante também para o convívio íntimo, onde também amamos e nos vinculamos sem perceber as diferenças uns dos outros.

Você já pensou quantas vezes confundiu liberdade com abandono? Certamente era eu que sentia falta de “outros mares”, não minha tartaruga que precisava era de um repouso para respirar. Quantas vezes sufocou e colocou sobre um ser amado alguma camisa de força letal? Oferecer nosso calor não quer dizer prendê-lo e, em geral, esse é um aconchego do qual estamos nós mesmos carecendo. Quantas vezes você foi cego aos movimentos do outro, incapaz de perceber sua aproximação, como fui com o discreto Newton?

Acho que ao longo da vida também maltratei algumas pessoas que amei, deixei morrer alguns afetos, provavelmente houve vínculos que poderiam ter crescido saudáveis e sucumbiram. Continuo aprendendo, mas faço votos de que essas pequenas alminhas animais não tenham morrido em vão.

Um Comentário
  1. Ana Rita permalink

    Sublime!

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