Folclore
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A bombacha e o kilt

No mundo moderno o mito adquiriu uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos.

A história não poderia ser mais triste. No distante século XIII, o príncipe Llywelyn sai de casa e deixa seu filho pequeno sozinho. Por sorte seu cachorro Gelert cuida da casa. Voltando não encontra o filho. Apavorado observa que o cachorro está com a boca, o focinho e o pelo empapados de sangue. Num impulso de raiva mato o cão assassino. Pouco depois encontra o filho que estava escondido e, a seguir, um lobo morto. Desolado se dá conta que entendeu tudo ao avesso. Matou o fiel cão que salvara a vida de seu filho. Cheio de remorsos, enterrou com honras o cão para reparar seu erro. Quem visita o condado de Caernarvon no País de Gales ainda pode ver o marco funerário.

A história é boa, nos ensina a pensar sempre com calma, não se deixar levar pelas aparências. O único problema dessa história é que, com pequenas variações, é conhecida por

vários povos do mundo todo, e claro, sempre contada como verdadeira, com local e personagens definidos. Essa coincidência nos coloca uma pulga sobre a autenticidade do relato. De fato, a placa existe, mas a história é mito. A lápide foi feita por um hoteleiro proprietário do Royal Goat Hotel em Beddgelert e dizem que a lenda (adaptada) também seria de sua autoria. Os turistas adoraram a história que ganhou até um poema famoso onde se conta o incidente. Esse fato diz muito de nós, sempre tendemos a acreditar mais nos mitos, que são mais ricos, mais sábios, mais elevados, do que na triste e pálida história. Entre o mito e a histórias tendemos a preferimos o mito.

Creio que qualquer pessoa medianamente informada já sabe que ontem, dia 20 de setembro, a data gaúcha por excelência, celebramos um mito que inventamos para nosso deleite. Saudamos uma revolução que não foi revolução, cantamos uma vitória que foi uma derrota (forçando muito, um empate em casa), e assim por diante. Criamos uma mitologia gaudéria com elementos díspares, geralmente com pouco contato com a realidade vivida. Mas qual seria o problema? Afinal, tantos povos fazem isso, o folclore é sempre uma criação a posteriori que edita para melhor nas nossas mazelas históricas.

E existem micos maiores, Eric Hobsbawm no seu livro A Invenção da Tradição demostra, com exaustiva pesquisa histórica, que o Kilt, o saiote escocês que é o símbolo da identidade escocesa, nunca fora usado antes de ser “descoberto” como o traje típico. Toda aquela arenga de cada tecido (tartan) lembrando um clã é pura farofa. Portanto, o que perderíamos cultivando a nossa pequena pátria imaginária, que pelo menos usa bombacha para tapar as pernas? Há quem vá mais longe nesse argumento do mal menor, ou do fato inofensivo, quando lembra do imaginário caipira atual do interior de São Paulo. Lá se copia o pior dos cowboy texanos. Logo, dizem, poderíamos estar pior, tendo que aturar rodeio com chapéu de vaqueiro americano. Isso sim seria o fim da picada.

Portanto, mito por mito, melhor contar com algo feito em casa, certo? O problema é que a questão é um pouco mais complexa. Não vivemos sem um relato histórico, tanto que se não o temos, inventamos. Precisamos de origem, de pais fundadores, de raízes que não nos deixem soltos no rio da história. Aqui entra o gaúcho, como nosso ancestral primitivo, simples, franco, rude, mas leal e honrado.

Na sociedade tradicional o mito era o horizonte do pensamento. Mais do que uma coleção de histórias, como hoje nos chega, o mito era uma forma de interpretar o mundo, portanto uma forma de pensar e de processar informações. No mundo moderno o mito adquiriu a função oposta: ele é uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos. Impede que possamos ver o nosso passado diferente das formas fixas que os tradicionalistas elegeram.

Se o mito fosse só para dias festivos não haveria problema algum. Assim é o Carnaval e o20 de setembro tem algo dele, mas aqui com a fantasia única e regrada. Não uso Carnaval como metáfora, mas como conceito mesmo: como um tempo em que se suspende o presente para que se possa viver uma fantasia, e que se dilua, ao longo de seus festejos, a hierarquia social. No Carnaval cada um vive seu personagem e adquire o valor que imagina que tem ou que gostaria de ter. Um tempo de exceção para sonhar em voz alta e esquecer a estreita e pálida realidade.

O problema, no nosso caso, é que nossa fantasia de origem gaudéria se desborda para o ano inteiro. O que seria uma festa, um mito fundador, torna-se ideologia. Usamos o mito para criar auto-estima, mas também para pensar os fatos que se nos apresentam hoje. Mas fica a questão: como uma fantasia pastoril do século XX, idealizando o XIX, pode nos fornecer chaves para entender a complexidade do XXI? Tentamos, mas o fato de usar bombacha e idealizar nosso passado não nos poupa dos dilemas do nosso tempo. A aceleração da história nos coloca desafios constantes, o novo nos invade e pede que o decifremos para não sermos engolidos. Não temos opção de não viver nossa época. Todos esses movimentos de criação de identidades regionais fazem parte duma tentativa de barrar a globalização, de se defender do novo. São reafirmações do local frente ao global, e do passado frente ao presente.

A questão não é abrir as portas do Rio Grande ao que vem de fora de modo a perder a identidade regional. Penso o contrário: em como fazermos nossa própria versão de modo a responder ao que a ocasião nos pede. Nesse sentido, a ideologia gaudéria não soma, na verdade nos deixa mais frágeis. Como todo mito, ideologia ou religião, seu aparato conceitual faz uma leitura simplória do mundo. Oferece boas soluções para um mundo que já desapareceu e não ajuda a enxergar melhor o presente multifacetado que é o nosso verdadeiro desafio.

O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante, o pala o protege do minuano, mas não dos ventos inclementes da história atual. Essa ideologia não nos ajuda, serve apenas como barreira imaginária ao que vem de fora, e nos fornece apenas armas ilusórias para uma batalha real, que é fazer desse estado um lugar realmente melhor.

O fim do (meu) mundo

Imaginar o fim do mundo é achar-se o ponto final, ápice da condição humana. Quanta pretensão!

Fim do (meu) mundo

Se você está lendo estas linhas é por que o fim do mundo, previsto para hoje, não aconteceu. Confesso uma ponta de decepção, o fim, ou ao menos uma catástrofe, engrandeceria o homem, nos restituiria a condição de protagonistas num universo indiferente ao nosso destino. O cosmos foi mais uma vez indiferente aos rogos dos humanos e às suas previsões, o universo e o planeta continuam na sua imperturbável mecânica celeste, independente e ignorantes das nossas malfadadas conjecturas.

Diga-se, em favor dos Maias, os pretensos profetas do apocalipse em questão, que isso não foi uma idéia deles, e sim uma leitura apressada nossa, a partir de informações incompletas sobre sua cultura e calendário. Se não foi dessa vez, não se preocupe, cedo ou tarde vão anunciar outro fim, e de novo vamos vacilar se acreditamos ou não. A temática apocalíptica é uma velha conhecida e parece que não sai de cartaz. Não faz muitos anos, em 2000, era o mesmo temor, o mundo iria acabar, e cá estamos nós, lampeiros como sempre.

Inútil reclamar da imbecilidade, invocar racionalidades de todas matizes, acusar os crentes apocalípticos de passar atestado de ignorância científica. Até procede, mas a questão é outra: esse temor tem raízes míticas, e esse sistema de crenças e medos não funciona com a lógica da razão. Quando se opera com o sistema mítico, a ciência e o bom senso não têm entrada. Qualquer sistema mitológico clássico, quando conseguimos captá-lo em sua forma mais articulada e completa, pensa o cosmos com os mesmos termos: o nascimento (ou renascimento), um período de auge glorioso, um declínio sofrido e, finalmente, a destruição com o retorno ao caos. Portanto, o apocalipse faz parte desse esquema, dessa visão do mundo. Quando se raciocina miticamente, mais dia menos dia, desemboca-se nesse vórtice.

A questão que muitos se colocam é: por que discursos assim, tão disparatados, ainda tem pregnância? Por que, contra todas as evidências possíveis, ainda há quem acredite nisso? Creio que a questão está mal posta, poderíamos pensar o contrário, por que não seria assim? Goste-se disso ou não, o tempo do mito não acabou. O avanço da ciência e seu método, se por um lado combate a religião, a superstição, a magia, deixa muitas questões sem respostas e é onde se abre a brecha para o retorno do pensamento mítico. Os homens podem viver com pouco, mas raramente abrem mão de um sentido para o mundo e para sua vida. Qual a razão da existência? Para onde vamos? De onde viemos? Se o futuro promete tanto, por que me tocou viver esta época tão menor? Que diferença fiz, farei, nada mudaria se eu jamais tivesse nascido?

A ciência explica o mundo, mas quanto aos anseios de sentido de que padecemos, fornece mais dúvidas do que certezas. São poucos que agüentam a vida segurando-se no pouco que ela nos dá e encaram o sem sentido da existência. Já o pensamento mítico é um gerador de sentidos, ele capta o horror humano ao vazio e o preenche de qualquer maneira, com o que estiver mais à mão. Melhor um universo de conto de fadas, com entidades benignas ou malignas nos controlando que o nada. Nosso narcisismo não suporta que não haja transcendência, que sejamos um acaso na imensidão cósmica, um mero macaco melhorado.

O erro mais banal, mais primário, em que nosso pensamento cai, e como cai, é o de confundir-se com o objeto a ser examinado. Se alguém acredita que estamos no fim dos tempos, é possível que ele tenha razão, algum fim se aproxima, mas é mais provável que seja o fim dele, ou o fim de um mundo que reconhece como seu. Todos constatamos a velocidade com que a história anda e atropela tudo: costumes, formas de pensar, de viver. São tantas as novidades que perdemos as referências. A revolução da semana passada está velha, a tecnologia de ontem virou sucata.

A sensação é que o ritmo vem se acelerando. O fato é que nos sentimos ultrapassados a cada dia e, se não estamos em constante adaptação, corremos o risco de não entender o mundo em que vivemos. Nesse constante recriar-se para o novo, alguns se cansam e se perdem pelo caminho, ou ainda, simplesmente desistem. São esses os que vivem o fim do seu mundo, afinal, os valores que lhe ensinaram na infância já não servem, a paisagem não é a mesma, os anseios são outros. Não fica claro que o mundo está acabando? Quando chega a notícia do fim dos tempos, apenas confirma algo que já sentimos.

Sinceramente não desgosto de ondas apocalípticas, me sinto mais humano, mais completo, reencontro minhas desativadas ramificações religiosas que por momentos entram em alerta. Uso para fazer um exercício, que sugiro a todos: perguntar-se qual parte nossa está morrendo? Qual dos horizontes em vias de desaparecimento vamos sentir falta?

O homem não tem uma inclinação nostálgica por vocação mórbida, nossa substância é fornecida pelo tempo em que vivermos, que nos fez ser o que nos tornamos, isso é tudo de que dispomos. É duro pensar que tantos seguirão sem nós, por um tempo indefinido. Parece injusto, jamais saberemos da história que está por vir. Pensar que seríamos o último capítulo nos deixaria no admirável papel de ponto final, protagonistas essenciais, o que infelizmente não somos. Uma velha e saudosa senhora que conheci sempre dizia: “o cemitério está lotado de insubstituíveis”. Somos todos datados. A questão é quando expira o prazo. Viveremos um apocalipse privado, está é a única certeza.

Tatu-bola ou jequice-tatu?

O país cresceu, livramo-nos do Jeca e ficamos com o Tatu. Seria ele o que restou da nossa jequice?

Imagine que você seja um publicitário e precisa criar uma marca. Seu cliente dispõe de um cardápio rico, mas escolhe como símbolo algo que: entre o dia e a noite prefere a noite; entre o céu e a terra escolhe o subsolo; entre as cores vivas opta por um monocromático pastel; ao invés de um barulho vivaz escolhe o silêncio. Não é uma marca para uma funerária e sim para uma festa com convidados do mundo inteiro. Você pensa que isso não pode acontecer? Pois acabou de acontecer.

Não acreditei quando soube que o futuro mascote da copa será o tatu-bola. Conferi o site, pensei estar no Sensacionalista. De onde partiu semelhante idéia? Animais ctônicos como ele, habitantes da intimidade da terra, simbolicamente trazem conotação negativa, vide a cobra, o lagarto, a minhoca, a toupeira. O tatu nos lembra buraco, esconder-se, é um animal defensivo, que foge da briga, ou seja, animicamente um covarde. Seus dotes físicos tampouco ajudam, é sem graça e cor de terra, possui uma armadura escamosa sem charme, uns poucos pelos espetados e desgrenhados por baixo. De hábitos noturnos, só sai à noite para conversar com a coruja. Quanto aos nomes do tatu, não podemos reclamar, afinal, embora ainda não escolhido entre: Fuleco, Zuzeco ou Amijubi, as opções, são tão esdrúxulos como a escolha do animal, portanto, há uma coerência interna. Nessa lógica, é claro, apaga-se o único ponto forte do candidato: a sonoridade fácil de seu nome e que contém a palavra bola. Se não há escolha deixem tatu-bola, ainda que seja uma bola (o tatu enrolado sobre si) que não rola, e não se possa nem se deva chutar.

Um animal terrestre já representou o Brasil: a cobra fumando, símbolo da FEB. Mas o contexto era diferente, simbolizava a adesão à guerra. Como miticamente a terra está conectada à morte, um signo que lembra-se isso era perfeito. A escolha se deve à famosa frase, em que se dizia ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra, e a cobra fumou. Outras frases e metáforas foram usadas para dizer o mesmo, mas essa pegou por que representava o Brasil e seu momento. O exército brasileiro era pequeno e mal preparado, só a matreirice e oportunismo poderiam fazer dele fatal, por isso um ofídio. Pequena, mas mortal. O Brasil com os perigos traiçoeiros da selva eram assim evocados.

Quando Disney criou uma personagem para o Brasil escolheu um papagaio: Zé Carioca. A idéia do malandro nem era dele, nós é que nos vendíamos assim. Faz pouco, o filme Rio fez sucesso com uma Arara Azul que ficou associada ao Brasil e ao Rio de Janeiro. Essas aves colaram nos representando porque são animais do dia, solares e coloridos como é nosso país. Essas aves não só “falam” como o falam alto, fazem barulho, são associadas à alegria e ao bom humor. Elas têm tradição nesse quesito, por que desperdiçar esse gancho?

Os argumentos pelo escolha são frágeis. O tatu é um animal em extinção, é verdade, mas ele e quantos mais? Ele representa o cerrado e a caatinga, ok, mas essas regiões não espelham o Brasil no imaginário mundial. Para fora, nosso país é selva e mar. O que aliás é ótimo, com eles estamos em um território de diversidade, imensidão, força e magia. Ou seja, temos uma natureza rica, uma fauna incrível, se queremos abrir nossas portas, especialmente ao turismo, não seria mais fácil pegar algo já registrado na cabeça de todos como um valor positivo?

Faça uma experiência simples: lembre ou pergunte a alguém quais são os animais que estão impressos nas notas que manuseamos todos os dias. Os acertos serão maiores para a onça, na nota de 50, para a arara na de 10, e o mico na de 20. Quanto às outras, a maioria vai ter que meter a mão no bolso e olhar. Enxergamos melhor o que já é conhecido, e esse é um princípio básico quando quer se fazer um novo símbolo que pegue. Esses são os momentos onde é o óbvio que conta pontos, a boa propaganda dá roupa nova a velhos arquétipos. Não somos condenados a sermos representados eternamente pelos mesmos símbolos, o novo pode e deve advir, mas nesse caso não estamos criando material para currículo de escola, um projeto para o país, o que conta é a eficácia de uma imagem que divulgue a copa e traga o maior número de pessoas possível, que passe uma imagem de um pais acolhedor, exuberante e aprazível. E se fosse mesmo para fazer um corte com a representação tradicional do Brasil, sempre ligada a um elemento da natureza, que escolhessem um símbolo cultural, por que não um duende como o Curupira? Seria um toque de magia indígena, autóctone.

A tentação para um psicanalista é interpretar esse tatu com um ato falho. A COL escolheu um animal fabril (sim, para isso ele serve, ele constrói buracos, intervém na natureza) pois nada está pronto para copa e conviria chamar mais um operário. Um especialista em terra ajudaria nos túneis e estradas que ainda não saíram do projeto. Ou então o que retorna seria a personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato, símbolo do Brasil provinciano, inculto, doente e pobre. O país cresceu, livramo-nos do Jeca e ficamos com o Tatu. Seria ele o que restou da nossa jequice?

É a segunda bola fora no quesito imagem e propaganda. O símbolo da copa, aquelas mãos em verde e amarelo tampouco estão à altura do que podemos fazer. O design e a propaganda no Brasil fazem coisas muito melhores.

Que fique bem claro minha adesão ao projeto da copa no Brasil. Sou um entusiasta, creio que o Brasil tem condições de fazer uma copa como qualquer outro país. Tampouco acredito que esse dinheiro gasto em infra-estrutura seria melhor investido em escola, hospital, esse argumento tolo das prioridades. Essa conversa soa como deixar de fazer o Natal para economizar e trocar a geladeira, cancelar as férias para pagar um plano de saúde melhor. Quem realmente faz isso? É incrível como tem quem dá conselhos que não segue.

A questão que me preocupa é outra: se a inteligência que vamos usar para fazer a copa pode ser medida por decisões como essas, começamos com um gol contra.

Publicado no Jornal Zero Hora, Caderno de cultura, 29/09/2012

Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento

Uma conversa com o psicanalista Mário Corso sobre o politicamente correto , por ELIANE BRUM (colunista da revista Época, publicada em 22.05.10)

Era uma vez um mundo de gente muito chata. E um tanto perigosa. O Saci estava ali, na dele, pulando numa perna só e aprontando umas e outras, quando… zás! Sequestraram seu cachimbo. O Saci olhou para um lado, olhou para o outro, e viu umas criaturas de olhos estalados e cara de melhores intenções. O Saci não tem medo de quase nada, mas descobriu que morre de medo de seres com cara de melhores intenções. É para o seu bem, disseram os entes desconhecidos. Fumar faz mal. E dá mau exemplo. Se você for bem bonzinho, a gente lhe dá uma prótese aerodinâmica para você saltitar com duas pernas. O Saci disse que estava muito bem obrigado com uma perna só há alguns séculos e ficaria bem satisfeito se pudesse pitar seu cachimbo sem nenhum enxerido apitando no seu ouvido. Não adiantou. Aqueles seres só tinham certezas – e uma delas era saber o que era melhor para ele.

Desde então, vem aparecendo uns sacis sem cachimbo – e sem magia – por aí. Não bastassem lobos que em vez de avós comem cenouras, crianças que não atiram pau no gato e madrastas da Cinderela com doutorado em pedagogia, resolveram mexer com o Saci.

O ataque mais recente foi denunciado no Rio Grande do Sul, semanas atrás. O Internacional, time gaúcho de futebol, está sutilmente escanteando o Saci, símbolo do clube. E substituindo-o por um macaco chamado Escurinho. Na condição de gremista, eu achei até bom. Porque o Saci, bem invocado, poderia piorar bastante a situação do clube que não só lhe arranca o cachimbo nas poucas imagens em que ele ainda aparece, como o renega pelas beiradas. Mas o Saci está acima das rivalidades futebolísticas. E tudo tem limite nessa vida.

Diante do questionamento de torcedores, o diretor de marketing do clube, Jorge Avancini, respondeu ao colunista Wianey Carley, de Zero Hora, que o Saci continua sendo a mascote do clube, “o Escurinho é a mascote dos projetos sociais”. Ah, bom. Um ponto da resposta é particularmente interessante. Na tentativa de ser politicamente correto, Avancini escorregou. Não um escorregãozinho qualquer, mas um que foi de Porto Alegre a Uruguaiana.

Para mim, coisa do Saci. Ninguém diria isso de livre e espontânea vontade. Confira: “O Saci hoje tem rejeição por parte das crianças, pelo fato de não ter uma perna, isso é visto como perdedor, e por fumar cachimbo, além de ser politicamente incorreto, as crianças estão associando este ato ao ato de fumar Crack. Se observares onde temos usado o Saci, ele já aparece sem o cachimbo”.

Dá para imaginar uma criança olhando para o Saci e pensando: “Bah, vou fumar crack!”? Ou um dirigente de clube dizendo a um jornalista que as crianças rejeitam o Saci porque não ter uma perna é coisa de perdedor? Pois é.

O fato é que o Saci é apenas mais uma vítima. (E eu, aqui no meu canto, quero continuar sua amiga.)

É natural que os personagens dos contos, do folclore e também das fadas, sofram mudanças ao longo do tempo. Eles podem mudar, como tudo, mas não sofrer um processo de limpeza que arranque deles a sua essência, o que de melhor têm a nos dizer. E, no caso da patrulha politicamente correta, arranque deles os conflitos, as diferenças, o estranho e o incômodo. Tudo aquilo que há séculos cumpre a função de nos ajudar a elaborar nossos mais fundos temores. Não é a toa que as crianças pequenas pedem para repetir sempre a mesma história – e sempre do mesmo jeito. Ali, elas podem controlar o final, administrar o medo, começar a aprender a lidar com a violência, os conflitos e o estranhamento inerente a toda vida.

Para além do bizarro destas intervenções, há algo sério em curso. Algo sobre o qual precisamos pensar. E que não é coisa só do Brasil, mas vem se esparramando pelas democracias ocidentais, já que nos regimes totalitários a censura é de outra ordem e sem nenhuma sutileza. Em 2008, por exemplo, uma agência educacional do governo britânico proibiu uma versão da história dos Três Porquinhos nas escolas, porque ela poderia ofender os muçulmanos. Outro fator que pesou foi o fato de que o conto seria uma ofensa aos pedreiros e construtores, ao tratá-los como “porcos ignorantes, que constroem casas que podem ser derrubadas pelo vento”. Só para ficar claro que a ausência de pensamento não tem limites geográficos.

É importante que o cravo continue a brigar com a rosa (e não tenham uma vida de flores de plástico), a madrasta seja uma bruxa má (e não vá para a balada de mão com a Cinderela) e o lobo devore a avó (e não seja vegetariano ou, infâmia das infâmias, prefira tomar refrigerante, como numa história que li dias atrás). A fantasia – e a arte – é o território onde lidamos com nossas verdades mais profundas. E não podem ser enquadradas pela cartilha de uma pseudo-pedagogia que tem pavor de conflitos e do lobo mau.

Para nos ajudar a pensar sobre o furor politicamente correto e os efeitos sobre nossa vida e a de nossas crianças, procurei o psicanalista Mário Corso. Ele é autor de dois livros imperdíveis: Monstruário – inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros (Tomo Editorial, 2002) e Fadas no Divã – Psicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2006), este último escrito em parceria com a também psicanalista Diana Lichtenstein Corso. É uma conversa longa, como todas as boas conversas.

EU – Assistimos há alguns anos a uma espécie de “purificação” dos personagens infantis, tirando deles tudo o que é diferente, incômodo ou revelador de conflitos. Mais recentemente, começaram a implicar com o cachimbo do Saci. Ele seria um mau exemplo para as crianças e também para os adultos. Faz algum sentido um Saci sem cachimbo?
Mário Corso – O Saci é um dos raros trickster do nosso folclore. O trickster é um ser enigmático, nunca sabemos o que esperar dele. Afinal, ele pode ser bondoso ou maldoso, nos ajudar ou nos atrapalhar, nos dar um presente ou nos roubar, enfim, a sua essência é ser imprevisível. Além disso, o Saci é um ser do ar, provoca e vive nos redemoinhos. É natural que seu alimento, por excelência, seja a fumaça. Vão é matá-lo de fome se tirarem o cachimbo!
EU – Um Saci sem cachimbo é ainda um Saci? Ou é outra coisa? Daqui a pouco vão colocar uma prótese nele… O que acontece quando a gente esvazia estes personagens daquilo que os constitui?
Corso – Acontece como aconteceu a outras figuras: a gente se esquece delas. Como elas vão cada dia nos dizendo menos, elas caducam e desaparecem. A gente ainda conhece a Mula-sem-cabeça, mas a sua prima Cumacanga não. A gente vê filme com Zumbi, mas não conhece o Corpo Seco, figuraça de horror que assombrava nossos avós. Mas com o Saci acho difícil. Creio que o Saci ficou tão popular porque representa as três raças. Ele é negro, mas usa um barrete vermelho, bem ao velho estilo português, que é, aliás, a fonte de seu poder. E usa o fumo, que é um dos “presentes” que a América deu à humanidade. Ou seja, o gosto pelo fumo é o seu elemento índio. Sem cachimbo, ele perde um pouco da sua força, mais ainda é um saci. Quem sabe dias melhores virão, quando o tabagismo e o crack não sejam os demônios a serem domados e lhe restituam seu cachimbo.
EU – O Saci não é a primeira vítima desta ânsia purificadora. Os contos de fadas foram sendo alterados ao longo dos séculos, para se tornarem mais palatáveis às sensibilidades do momento. Especialmente a partir do século 19, quando viraram histórias para crianças. Há algum tempo, passam por uma nova mudança, com releituras politicamente corretas. O que acontece com as histórias e com as crianças que ouvem as histórias, quando é promovida esta “limpeza”?
Corso – Na verdade, os contos foram se adaptando ao público. Existem três migrações importantes e cada uma deixou uma marca. Não necessariamente elas seguiram uma ordem, mas podemos sistematizá-las assim: 1) os contos de fada provêm da tradição folclórica oral e, naquele momento, não pertenciam a nenhum público específico; 2) as histórias mudaram de veículo e ganharam um registro escrito, modificando então seu habitat, já que não eram contadas mais nos serões de trabalho e sim nas cortes, ou seja, deixaram o campo e vieram para a cidade; 3) por último, foram destinados às crianças. Cada mudança implicava uma adaptação a uma sensibilidade diferente. Perderam, portanto, certa crueza e rudeza camponesa.

Além disso, depois que ficaram exclusivamente infantis – e na medida em que se acredita na influência educadora de tudo o que se ministra à infância -, é natural que tenham ganhado um filtro adicional, especialmente nos aspectos que remetem à questão sexual. Mas houve também a limpeza de várias outras arestas, como passagens mais violentas, francamente incestuosas, canibalismo, esquartejamentos, tortura de vilões, filhas entregues a monstros, adultério e outros eventos mais espetaculares que divertiam seu público original, que pedia mais emoção. Quem se preocupa com os filmes violentos e o gosto dos contemporâneos por emoções fortes não se dá conta que os camponeses daquele tempo achariam Tarantino uma florzinha.

EU – Estaríamos então passando por mais uma mudança nos contos de fadas e no folclore brasileiro, com o politicamente correto? O quanto é relevante esta intervenção de certo tipo de pedagogia nos contos de fadas e no folclore? Isso no caso de podermos chamar de pedagogia uma intervenção que busca eliminar os conflitos em vez de trabalhar a partir deles…
Corso – Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer, esta é a lógica do politicamente correto. Aplicado a questões raciais e sexistas, o discurso de correção política pode ser muito bem-vindo. Por exemplo, eu mesmo fico muito contente em não escutar mais as piadas racistas que escutava na minha infância. Nunca gostei de escutar esse lixo, me fazia mal. Mas chegando à discussão política, aos temas amplos contemporâneos, é um desastre.

O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas, especialmente o “coitadismo” e a vitimização do cidadão. E, como contrapartida, a responsabilidade total do Estado: se as coisas chegaram aonde chegaram é por que o Estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos, não falham. Eles são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

A questão aqui é definir o que se entende por um discurso politicamente correto. Se você está pensando em algo como “1984?, de George Orwell, eu concordo. Ou seja, ele projetou nesse livro um mundo em que o totalitarismo venceria – e para quem viveu no século XX foi um pesadelo bem possível. Uma das consequências do totalitarismo seria a “novilingua”. Esta língua teria um número mínimo de palavras, feitas para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. A lógica era a de que só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo e várias ditaduras nos deram demonstrações práticas de um vocabulário oficial como este. É bom lembrar que os governos autoritários são muito atentos às palavras – mais do que as democracias.

Porém, a questão que nos interessa: seriam sociedades ditas democráticas imunes à corrupção da linguagem? Será que nestas sociedades democráticas encontraríamos a plena expressão? Escutando certas pessoas, eu penso que, infelizmente, não. Estamos utilizando novas formas de “novilingua”. Isso tanto na política quanto na linguagem empresarial, nos discursos sobre marketing.

Também poderíamos dizer que andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, usou essa palavra para designar a linguagem oficial da cortina de ferro. Na origem, “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chimpanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é direto. Pão-pão, queijo-queijo – ou então banana-banana. Na verdade, trata-se de um vocabulário oficial baseado em clichês e que nos faz falar sem dizer nada. Não sai nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas e mais voltas nas questões, diz o que é previsível, o óbvio ululante, e estamos conversados.

A questão principal é que o “Jerkish” não pede a marca singular de quem fala. Dessa forma, todos ficam iguais, independentemente se enunciado por um ou por outro. O que é dito será a mesma coisa, já que essa linguagem não permite um estilo próprio. O resultado é um empobrecimento da linguagem, e, em decorrência, o esvaziamento do pensamento.

EU – O politicamente correto é um fenômeno da nossa época?
Corso – Quem acha que a correção política é nova não é atento à História. Depois da Revolução Francesa, por exemplo, houve um surto de correção política. A abelha rainha tornou-se abelha poedeira (abeille pondeuse). E também houve trocas nos baralhos e nos jogos de xadrez. Nada de reis, rainhas, valetes, bispos… Os baralhos vinham com “liberdade, igualdade, fraternidade”. O “vous”, que supunha uma certa assimetria social, foi trocado pelo “tu” ou “tois”. A esperança revolucionária era substituir todo “vous” por “tu”. “Monsier” e “Madame” viraram “Cidadão” e “Cidadã”. Hoje, a gente pode até rir disso, mas os revolucionários achavam isso uma grande questão.

Mas, voltando. Sim, podemos dizer que os contos de fada, as histórias e canções para as crianças, podem estar ganhando mais uma “limpeza”.

“Ao tentar proteger os filhos, os deixam sem armas para o pior”

EU – Que mundo é este que precisa “limpar” os contos de fada e as histórias do folclore brasileiro? Não sei que palavra você usaria para o que está acontecendo já há algum tempo… Censura? De onde vem essa necessidade?
Corso – É um pouco de tudo, algo entre uma nova sensibilidade e a censura. Um conto muito popular até o século XIX era Bicho Peludo (ou Pele de Asno). Ele tem como mote o desejo incestuoso de um pai por sua filha. Ora, isso não é bem visto hoje, logo a história não é mais contada. Certamente Disney não vai fazer uma versão. E olha que ela era tão popular como Cinderela! Vivemos tempos psicológicos, sabemos ou intuímos o que as histórias mais transparentes nos dizem e temos uma convicção interior de que as obras de arte ou ficção mobilizam elaborações e sentimentos importantes. Portanto, passamos a evitar a evocação de assuntos polêmicos quando nos dirigimos às crianças. Talvez na esperança mágica de que o conflito não se estabeleça.

EU – Quem perde com isso?
Corso – Quem perde com isso são as crianças. São os adultos que censuram, mas são elas que deixam de dispor de excelentes histórias, que poderiam ajudar a dramatizar os conflitos que vivem. Ou alguém acredita que uma menina vai deixar de se apaixonar por seu pai e querer que a mãe suma do mundo só por que não escutou uma história infantil?
EU – Esta ânsia de eliminar os conflitos, como se os conflitos fossem ruins e incompatíveis com os bons valores da vida, é movida por qual desejo?
Corso – O que está por trás de tudo é proporcionar uma “boa educação” para as crianças e não poluí-la de maus exemplos. O mesmo serve para a violência, como se a violência fosse fruto não das relações reais que a criança vive, mas do mundo da imaginação. O que esse pessoal que acredita nessa pedagogia cor-de-rosa demonstra é que conhece muito pouco de seus filhos e esqueceu totalmente da sua infância. Esqueceu os fatos, mas de certa forma é traumatizado pela infância, tanto que quer evitar que seus filhos tomem contato com as fantasias que eles viveram e não elaboraram.

O que temos aqui é uma transmissão do medo que eles sentiram na infância. Ao tentar proteger seus filhos os deixam sem armas para o pior. Serão crianças que, sem trânsito mais aberto pelo mundo da fantasia, o que poderia treiná-las para o mundo real, vão viver os golpes do destino da forma mais dura. E ninguém pode viver sendo poupado.

Portanto, mais do que exercer uma atividade de censura, no sentido de julgamento moral, a transformação dos contos de fadas em histórias mais suaves ou mesmo didáticas provém muito mais de uma condição neurótica de pais e educadores. Eles tentam criar condições para uma infância livre de conflitos, como se isso fosse possível.

Cada novo indivíduo que nasce está fadado a ter seus sofrimentos neuróticos, que são normais e dão consistência à personalidade que ele está construindo. Seus adultos, porém, gostariam que ele fosse livre de tudo isso. O ideal dos adultos é o transcurso de uma infância e adolescência que sejam leves, uma vida de puro prazer e liberdade, uma onde eles imaginam que seria bom terem crescido.

Não estamos defendendo que se mantenha a versão da Chapeuzinho Vermelho na qual o lobo a convida a comer a carne do corpo da vovó assassinada, mas que se mantenham as histórias com direito a dramas mais encorpados, onde a complexidade do destino e da personalidade não fiquem tão abafados. Os pais e escolas de hoje “escaneiam” os livros em bibliotecas e livrarias buscando eliminar qualquer coisa que possa angustiar os pequenos. Mas eles se angustiam igual, porque a infância é uma época difícil de viver, e não há outro jeito de atravessá-la. Sentir coisas fortes sozinho é pior. A criança se sente maluca, estranha.

EU – Há algum risco dessa “reforma” nos contos de fadas e outras histórias infantis vingar? O cinema, os games e a literatura continuam produzindo vilões. Do contrário, provavelmente teriam prejuízo. Não dá para imaginar Harry Potter sem o Voldemort, por exemplo. Até mesmo “Up – altas aventuras” tem um vilão interessante….
Corso – Vinga e não vinga. Uma coisa é o que a intenção pedagógica reinante quer, outra é o que as crianças vão buscar. Existe um sem número de livros infantis e programas de crianças que são falidos, ficaram pelo caminho. As crianças cheiram o cavalo de tróia da vontade moralizadora e nem o deixam entrar. Os grandes estúdios, as grandes editoras e especialmente os games, que movem um montante de dinheiro incrível, sabem do gosto infantil por sentir medo, por temer vilões, e fabricam esses pequenos diabos para deleite dos pequenos. Não é a indústria cultural de produtos para a infância que tem essa visão moralizadora. É o espírito da nossa época, dos pais e mestres contemporâneos que acreditam que é possível e necessário educar também através das obras e personagens da cultura infantil. Invadem então o território da fantasia com tarefas escolares e tentam usar a ficção como veículo para seus sermões subliminares.
EU – Nos contos de fadas, em geral os vilões são bem populares. Por quê? Imagino que nenhuma mãe precise ficar preocupada se seus filhos gostarem do lobo mau ou da bruxa da Branca de Neve…
Corso – O mundo é muito perigoso, até para os adultos. Imagine então para as crianças, que são frágeis, pequenas, dependentes, e que não entendem metade do que está acontecendo. Como é que elas não vão querer brincar e fantasiar com o elemento do medo? O medo na fantasia é controlado, a criança pode evitá-lo, se aproximar, se afastar, ter a ilusão de controle. Enfim, ela dialoga com algo que lhe é importante. Por isso o vilão é importante. Ele é o mal, e cada um quer saber como se defender dele. O mal é um grande assunto.

O mundo não vai ficar melhor se privarmos as crianças da violência dos games, das histórias, que não é nada mais do que um aprendizado para uma violência que um dia ela vai ver na realidade. Ninguém fica violento porque joga games, eu diria até o contrário. Salvo raríssimos casos de crianças gravemente perturbadas, todas as crianças têm muito claro o que é fantasia e o que é realidade. O nosso mundo é que é violento, esses produtos são só um reflexo disso. Não adianta tentar arrumar a violência real pelo cerceamento da violência virtual. Isso é uma bobagem.

“Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice”

EU – É possível educar para a não-violência?
Corso – Eu acredito em uma educação para a não-violência, mas esta deve ser feita nas relações reais que essa criança tem, na forma como ela deve tratar os outros, os seus semelhantes, a funcionária que trabalha em sua casa, o porteiro do prédio, os colegas da escola que são mais tímidos, os velhos. Como os pais não educam seus filhos onde devem educar, ficam tentando o caminho mais fácil, imaginando que é nos seus brinquedos e fantasias que está a chave para a formação do caráter.

Educar dá muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Essa é a chave, e nem todos estão preparados para isso, pois é preciso ler um pouco, sair do senso comum, cultivar-se. Os pais não preparados para a função projetam no mundo, em especial na mídia, a responsabilidade pela formação moral dos seus filhos. Por isso essa histeria com a violência e a sexualidade nas histórias infantis, na TV, nos games.

EU – Se as crianças procuram o medo, usam as histórias para elaborar suas questões, faz sentido histórias em que todo mundo é bom, se dá bem e não há nenhum conflito? Para que serviria uma história como essa?
Corso – Histórias assim tão chatas só servem para tranquilizar pais medrosos. Por outro lado, esse tipo de obra, que no fundo é paradidática, presta um desserviço para a literatura. Através desse tipo de narrativa – que era para ser literária e na verdade é pedagógica – afasta-se a criança da experiência estética, que é a de se emocionar com uma narrativa, com uma imagem que as traduza poeticamente, que as faça entender algo além da compreensão racional. A arte pode ser nossa melhor tradução, ou talvez a tradução do melhor de nós. Ao reduzi-la à educação, como tanto se tentou nos regimes totalitários, mata-se ao mesmo tempo a obra e seu público.
EU – E histórias como a do Shrek, em que os lugares são embaralhados… O monstro é o herói (ainda que como anti-herói), a princesa arrota e prefere ser ogra etc. Continua tendo vilões, mas o vilão maior é o príncipe encantado e a fada madrinha… Histórias como esta têm espaço para a elaboração, na medida em que, embora embaralhem a identidade de vilões e heróis, reproduzem os conflitos clássicos?
Corso – Shrek é um exemplo perfeito da atualização possível dos contos de fadas, que têm sido umas dos raros elementos da tradição que apresentam eterna vitalidade em nossa sociedade tão fascinada pelo novo. Para isso, porém, precisam se reciclar a cada nova geração de crianças. Para as atuais, um herói tem que ter consistência emocional, o antigo e simples maniqueísmo é pobre para elas. O ogro verde tem conflitos interiores, para se socializar, para aceitar os outros e se aceitar. E isso é muito compreensível para as crianças, que se vêem psicologicamente retratadas nele, que também é tão deliciosamente humano em seu corpo gordinho e produtor de todo tipo de gases.

Além disso, há o humor, que é um pré-requisito de crítica e inteligência da qual nem as crianças nem nós, adultos, abrimos mão. O humor é o grande herdeiro artístico de todas as revoluções que já protagonizamos e vivemos. Enquanto ele sobreviver, nenhuma ditadura será eterna.

Para as crianças, há poucas idealizações disponíveis. Nem seus pais, nem mestres, nem governantes, nem mesmo deuses estão disponíveis para serem admirados irrestritamente. A irreverência chegou para ficar entre os humanos e isso é bom. Por isso, devemos acrescentar atributos aos elementos imaginários disponíveis, como o ogro e o Saci – e não tirar os que eles já têm. Ziraldo já fez do Saci um bem humorado personagem. E este é o caminho, já que se trata de arranjar oportunidades para as criaturas mágicas. E não relegá-las ao desemprego, alegando que estão fora de moda.

EU – O politicamente correto nos é vendido embalado nas melhores intenções. Mas, como você disse, contém nele um germe totalitário. Como podemos nos contrapor a isso, como pais e pessoas que vivem nesse mundo?
Corso – Eu não sei se o germe mais perigoso é o totalitarismo ou a burrice mesmo. A gente usa totalitarismo com muita leviandade. Se o discurso politicamente correto for totalitarismo, teremos de inventar outra palavra para dizer como funcionava o nazismo ou mesmo a vida hoje no Irã. Lá sim é que o bicho pega. Que um iraniano ouse em um lugar público discordar do que diz um Aiatolá e veja onde vai parar…

Ou seja, o discurso politicamente correto é a versão ligth do discurso totalitário. Afinal, vivemos num estado democrático. Eles se parecem na essência porque ambos são armadilhas do pensamento, são formas de suprimir e atalhar pensamentos complexos. Ambos usam um jargão pré-estabelecido sobre todos os assuntos polêmicos, tapando as questões ou os seus desdobramentos. Ambos falam em nome do bem comum. E falar em nome do bem comum funciona como um escudo. É como os religiosos que falam em nome de deus. A partir dessa premissa não há mais questionamento possível. Eles se acham certos e pronto, estão do lado do bem.

Todo valor pode ser transformado em uma espécie de mercadoria esvaziada do seu papel. Quanto mais estratificado nosso mundo se torna, mais falamos em igualdade e tolerância. E mais falamos em igualdade e tolerância justamente quando estamos quase totalmente desprovidos de pensamento utópico, da esperança de um mundo diferente, norteado por valores realmente igualitários. Quanto mais imersos numa cultura de mercado, onde a produção de lixo se dissemina e é democratizada, mais ecologia ensinamos aos pequenos. As intenções são boas, mas a coerência é que está em falta.

“Ninguém diz mais o que pensa, e sim o que é certo dizer”
EU – O que nos leva a esse discurso vazio?
Corso – O que leva ao clichê, ao discurso vazio, é a falta de sinceridade. Ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer. E, com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento. Aqui a preguiça contribui de fato: é mais fácil não pensar.

A utilização da linguagem politicamente correta, ou seja, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar daria forma ao modo de pensar – e não o inverso. A intenção é das melhores, mas o resultado foi esse saneamento da linguagem, visando expurgá-la dos preconceitos a partir de uma esterilização dos enunciados.

Eu sempre fui envolvido com a questão da reforma psiquiátrica. Estudei muito a questão, estive presente em momentos políticos e desdobramentos práticos desse movimento. Especialmente na questão de formação de pessoas com um arsenal teórico para dar conta desse novo momento. Mas não consigo usar o famigerado “portador de sofrimento psíquico” para dizer “louco”. Acho que eu sempre fui atento aos loucos, cuidei de muitos deles, milito para que os escutemos na sua singularidade, que sempre que possível não se abafe seus delírios com medicamentos. Enfim, para que sejam tratados como iguais. Não acredito que eu vá mudar dizendo isso – “portador de sofrimento psíquico” -, nem eles. Posso mudar de idéia, mas até agora ninguém me convenceu.

EU – Não me parece que essa “limpeza” esteja acontecendo na produção cultural para adultos. Não é o que a literatura e o cinema nos mostram. Já no mundo das crianças tiraram até o pau que elas atiravam no gato. Por que essa preocupação com o mundo infantil? Há aqui uma nova idéia de infância em curso?
Corso – Não há nova idéia sobre a infância, o que existe é uma neo-ignorância sobre a infância. Estamos esquecendo o que já sabíamos.
EU – Por que estamos esquecendo? E por que agora?
Corso – Talvez com um exemplo fique mais claro. É fácil encontrar mães que não cantam canções de ninar para seus filhos do tipo “a Cuca vem pegar…” O que elas dizem é que a Cuca criaria uma fobia na criança. E elas têm razão, a Cuca serve para isso mesmo. A questão é que é melhor um objeto fóbico do que uma angústia difusa. Se é a Cuca que vem me pegar, eu posso me defender, eu nomeio um mal-estar. Além disso, se é a Cuca que me quer não é a minha mãe. Ela está do meu lado e não quer me botar para dentro de seu corpo, de onde eu saí. Ou seja, elas raciocinam corretamente, mas não conhecem o psiquismo de um lactente. Pensam nos seus medos.

A tradição, neste caso, é mais sábia que essas mães que, tentando defender seus filhos, os deixam mais desprotegidos, mais ansiosos. A eliminação de figuras como a Cuca empobrece uma cultura. Abandonamos a tradição e colocamos no lugar um pretenso saber científico que, na verdade, é um senso comum rasteiro.

O que se perdeu é a continuidade entre as gerações. As mães não recorrem às suas mães – ou pensam que elas não sabem de nada – para criar filhos. Então, entra a figura do especialista. O médico, o pediatra, o psicólogo, o psiquiatra… Cada um falando de um saber técnico sobre a criação dos filhos. Ou seja, tudo fragmentado e, não raro, superficial.

Bom, não vou ficar com saudades dos tempos dos palpites das comadres, mas se jogou muita coisa fora com o afastamento das gerações. Ou ainda, dizendo de outra forma, são pais que não mais confiam no seu nariz para criar seus filhos. Não se posicionam, estão perdidos sobre o que fazer e como fazer.

Como você disse, só falta proporem uma prótese para a perna do Saci. Ou, em vez de prendê-lo numa garrafa, para que nos sirvamos de suas travessuras, a gente se penalize de seu defeito físico e as crianças sejam chamadas a incluí-lo em suas brincadeiras, como se fosse um amiguinho cadeirante.
O Saci só tem a perna esquerda. Ele é assimétrico, como ocorre com várias criaturas mágicas, que mancam de um pé. Ou é assimétrico como sinal de sua passagem pelo mundo dos mortos. Tudo na natureza tende ao simétrico. Logo, o sinal de pertencer ou ter passado pelo outro mundo é a assimetria. Essa simbologia é muito antiga. Portanto, o Saci recebe seu poder do seu contato com o outro lado da força. Essa é uma tradição imaginária cuja profundidade não nos cabe julgar nem compreender, só deixar que ela se revele em nós e reverbere em nossas fantasias.

“As maiores maldades vêm das menores almas”

EU – O Saci é um personagem bem menos popular hoje do que foi na minha infância. Me parece que ele já vem perdendo prestígio há mais tempo. Como, em geral, os personagens do folclore brasileiro. Por que você acha que isso acontece?
Corso – Eu acredito que muito dos nossos monstros estão desaparecendo. Creio que a responsabilidade por isso é da incompetência dos nossos escritores para escrever e reinventar boas histórias sobre nossos personagens folclóricos. Descreveram com maestria nossa realidade, mas se esqueceram da nossa alma mágica, supersticiosa, nossos medos arcaicos. Não é a toa que temos uma invasão, especialmente da cultura de língua inglesa, nesse assunto. Harry Potter, o Senhor dos Anéis… Mais recentemente, a atenção dos mais jovens têm se polarizado em torno das sucessivas séries que reciclam os vampiros. Há ainda os livros americanos da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, que proporcionaram uma nova visada na mitologia grega. Seus autores, todos de língua inglesa, prosperam porque usam uma faixa que está livre. No Brasil, depois de Monteiro Lobato, poucos se aventuram nessa trilha. Nós deixamos o terreno baldio, não podemos reclamar se outros ocuparam.

EU – Há algumas semanas se estabeleceu uma polêmica sobre o fato de o Internacional (time gaúcho de futebol), cujo símbolo é o Saci, estar progressivamente limando o personagem, apagando o Saci…
Corso – Sim, acompanhei um pouco a discussão e me entristeço tanto por ser colorado como por ser sacizista. Não está bem definido isso ainda. A questão é que o cachimbo do Saci poderia lembrar o cachimbo do crack. Não podemos esquecer que estamos vivendo o pesadelo dessa droga. Mas acho que isso é pegar o problema pelo lado errado. Ninguém vai começar no crack porque viu um saci com cachimbo, vamos ser sérios!

De novo esquecemos a vida real da pessoa, seus laços ou a ausência deles, sua família e geralmente a omissão e a ausência dela. É aí que está a porta do crack, não em qualquer coisa que ele viu na TV ou no pátio da escola.

EU – Tudo isso só revela nossa confusão com relação à violência?
Corso – Acredito que há uma confusão sobre a gênese da violência. E ela revela o tipo de relação que temos com os outros humanos e com os limites que a vida nos impõe. Mas lidamos com o assunto como se ela fosse apenas a gênese de um aprendizado, como se pudéssemos eliminar a violência apenas com educação, sem mexer no mundo real. Somos violentos porque estamos pouco preparados para pertencer a uma sociedade. Dependemos de códigos sociais muito rígidos para ter um mínimo de capacidade de conviver em sociedade, pois a cada passo imaginamos que o outro pisou em nosso território, invadiu e baniu nossa individualidade.

O dramático em nossa sociedade é justamente a exigência da individualidade, o valor que damos a ser únicos, ímpares, e ter que conviver numa sociedade a cada dia mais massificadora. A individualidade é vendida como algo natural – e não como uma construção social de alguns séculos. Dá muito trabalho e é fonte de um bate-cabeça eterno com nossos semelhantes.

É complicado de compreender, já que nossa subjetividade nasce dessa interação: é o olhar da mãe, é o modo como nossa família fica dizendo o que somos e o que seremos que nos constitui como alguém que acabamos nos tornando um dia. Mas passamos o resto da vida tentando lidar, nos digladiando com a importância superlativa que esse olhar do outro tem sobre nós. Precisamos partilhar a vida com outros seres humanos, amar e ser amados, mas odiamos depender tanto, e acabamos mesmo odiando todos aqueles cuja presença no mundo parece ocupar o mesmo lugar da nossa ou mesmo excluí-la.

Vivemos em camadas onde o círculo da intimidade, das classes sociais, das culturas, nada disso dialoga entre si. Temos pavor de todo tipo de diferença e questionamento. Portanto, não adianta treinar as crianças para a tolerância se estamos tentando abafar nelas, e em nós, tudo aquilo que nos impede de compreender o contexto maior da nossa vida, a repercussão de nossos atos e pensamentos individuais sobre o lugar e o tempo em que vivemos. Nosso isolamento alienado faz com que tudo seja vivido como ameaça à nossa integridade. Tendemos, então, a sermos defensivos como cães em seu jardim.

EU – As crianças são mais violentas hoje ou é a nossa sensibilidade para a violência que mudou, como você costuma dizer?
Corso – É muito engraçado. Minha geração era muito cruel com animais. Na minha infância assisti a todo tipo de morte e maus tratos com passarinhos, gatos, cães, sapos, morcegos. Os animais eram um suporte para a crueldade humana. Os adultos pouco se inteiravam do fato, ou não davam a mínima. As crianças de hoje são muito melhores com os animais. Não consigo imaginar hoje bodocadas em passarinhos. Mas nós achamos que elas é que são violentas por causas de seus desenhos animados ou games.

Existe uma mudança na sensibilidade. Mesmo o bullying, que hoje é tão falado – parece que descobriram a América! – era muito pior, pois incluía o racismo e a homofobia. Eu creio que nós não vivemos tempos tão violentos, o que mudou é a sensibilidade. Toleramos menos a violência, o que é ótimo. A questão, insisto, é onde estaria a gênese da violência. A confusão vem disso.

EU – E onde está a gênese da violência?
Corso – As crianças, deixadas à própria sorte, sem a presença de adultos, podem desenvolver pequenas e grandes tiranias umas com as outras. Elas podem ser especialmente cruéis e violentas, justamente porque são frágeis, inseguras, pequenas. A violência sempre está acompanhada da impotência e/ou da ilegitimidade. As maiores maldades vêm das menores almas.

Quando uma criança apela para isso, quer fazer valer um espaço, um valor que simbolicamente não tem, e então usa do ato violento, da intimidação, para “crescer” frente ao grupo. A resposta para a violência e o bullying é que as crianças estejam acompanhadas, que seus adultos responsáveis – incluindo os professores, que geralmente e infelizmente têm de se ocupar de um número excessivo de alunos – zelem por elas. E isso, eu insisto, dá muito trabalho. E é caro. É mais fácil botar a culpa nos games e no cinema.

28/03/11 |
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Os perigos da floresta

O brasileiro urbano vive suas florestas como um fundo de quintal psíquico, aquele lugar que nunca vamos mas sabemos que está lá e de alguma forma nos pertence e nos define. O Brasil é verde no mapa e na mitologia nacional. Mesmo sem conhecê-las, sem nunca ter ido até elas, nossas matas estarão presentes quando […]

O brasileiro urbano vive suas florestas como um fundo de quintal psíquico, aquele lugar que nunca vamos mas sabemos que está lá e de alguma forma nos pertence e nos define. O Brasil é verde no mapa e na mitologia nacional. Mesmo sem conhecê-las, sem nunca ter ido até elas, nossas matas estarão presentes quando quisermos descrever nosso país. Nem todos os povos se definem pelo seu território, mas nós sim: para o brasileiro a história conta menos que a geografia para formar o imaginário nacional.

Felizmente agora floresta é representada de um modo positivo, depois de séculos de exploração, quando progredir significava avançar sobre seus domínios, crescer era colocá-la abaixo para que a nossa civilização a sobrepujasse. Hoje ser civilizado é querê-la virgem, preservada, desenvolvimento sim, mas de mão com a floresta.

Já para quem se aventura em suas entranhas a simpatia sofre um golpe, tudo nela resiste ao corpo estranho que a penetra. A floresta parece querer dissolver o intruso, o calor e a umidade destroem os sapatos e as roupas e  abatem o ânimo, se os insetos não o fizerem antes. Chove muito e nos sentimos como numa neblina corrosiva, tudo que não é vivo apodrece, enferruja e mofa rapidamente. Nosso senso de orientação é desativado, nossa mente cartesiana se confunde, pensamos com retas, mas na selva tudo é curvo. Os poucos ruídos que quebram o grande silêncio parecem vir de qualquer lugar. Na sua penumbra todas as direções são iguais, a diversidade é imensa, nada se destaca para que possamos orientar-nos. Para nossos olhos destreinados a selva é um labirinto. O Minotauro não virá, porém uma onça e animais peçonhentos de todos os tamanhos podem estar à espreita.

Quando finalmente algo faz diferença na paisagem é um curso d’água, mas as suas margens não se mostram mais dóceis. Terrenos alagadiços, igarapés, bloqueiam o caminho que já é por natureza sinuoso. Se as cobras já eram assustadoras em terra firme, na água são ainda mais ágeis, jacarés estão por toda  as partes e na falta deles as piranhas estarão a postos. Porém, para quem perseverar o resultado é maravilhoso, vale o sacrifício. Viver uns dias na floresta e transpô-la é uma experiência inesquecível, nunca mais seremos os mesmos.

Estamos falando da selva real, mas também existe a imaginária. O manto mágico com o qual a fantasia de índios e caboclos recobriu essa inóspita geografia talvez seja ainda mais assustador. Dentro dessa densa massa úmida e verde, já naturalmente rica em criaturas de todas as espécies, eles ainda adicionaram um sem número de seres fantásticos, tão terríficos quanto os piores perigos naturais.

Entre esses monstros folclóricos, o mais temido é o Anhangá. Ele não tem uma forma definida, pois é um espírito da floresta, porém pode tomar qualquer uma para fazer valer suas vinganças. Basicamente é um ser regulador, sua missão é punir os excessos, castigar o caçador que matar além da cota, só por diversão, ou caçar uma fêmea prenha ou ainda filhotes. O Anhangá vinga-se de várias maneiras, uma me parece especialmente cruel: cria uma miragem em que um ente querido do caçador assume a aparência de uma caça; o caçador vê e atira, só depois do dardo atingir o alvo o encanto é desfeito, e eis que ele se dá conta que involuntariamente matou um dos seus.

Criatura similar é o Caipora, um ser com essas mesmas funções. Ele é um protetor da caça e ninguém tem sucesso no mato sem sua ajuda, portanto, é melhor não tê-lo como inimigo. O Curupira, esse pequeno duende também é um guarda-florestal avant la lettre. Além dos animais, ele se preocupa com as árvores. O Boitatá é uma cobra de fogo que entre outras atribuições, pune quem faz queimada, numa lógica de ferir com fogo quem com fogo feriu. A Tapiora parece uma inofensiva anta, o caçador incauto se aproxima mas é ela que dá o bote, é um ser híbrido com onça e possui a ferocidade do felino. Graças a que ela possui um cheiro de podre fortíssimo, isso serve como alerta para sua presença e ela só ataca quem desrespeita a natureza.

Por sorte esses monstros ao menos possuem uma lógica, eles contra-atacam. Porém temos a turma dos ataques gratuitos, bastando ter o azar de cruzar seu caminho. Muito antes do Chupa-cabra migrar desde a América Central até aqui, nossos índios já conheciam o Capelobo, uma espécie de vampiro antropomórfico, com cabeça aparentada à do tamanduá, e que usa desse bico para chupar o cérebro e o sangue de suas vítimas. O Mapinguari vive no fundo da floresta amazônica, tem o tamanho de um urso e possui uma boca vertical que vai do nariz até o umbigo. Come a cabeça de quem encontra e não adianta flecha nem bala, ele não sente. Não o enfrente, fuja! Espero que você nunca encontre a Onça-boi, uma onça ímpar. Ela tem os pés de boi, mas na ferocidade assemelha-se à onça e não o boi. Claro que com essas patas ela não sobre em árvore, mas não adianta subir numa, ela cava as raízes até derrubar a árvore com a vítima, ou então espera embaixo até que o infeliz caia fatigado, como ela caça em pares, uma sempre estará de plantão esperando. Os ogros gigantescos e antropófagos estão por todos os lados. Qual é o mais temido? O Gorjala, ou o Labatut?

Esses seres são masculinos, mas não espere dos femininos melhor acolhida. Para nossos índios tudo tem uma mãe, que é, ao mesmo tempo, a origem e o espírito protetor de todo e qualquer ser, tanto vivo com inanimado. Por exemplo, a seringueira tem uma mãe, é a Mãe da Seringueira e, é claro, vai se vingar se você derrubou sem razão um de seus filhos. Logo, qualquer agressão à floresta, mesmo ao menor de seus seres, pode ser vingada, por isso use-a com parcimônia!

Na água não estaremos mais protegidos. Fora o Boto, um Dom Juan amazônico, os demais seres encantados aquáticos são maus. A mais simpática é a Iara, versão nacional da sereia. Essa beldade seduz os incautos, que a partir desse encontro nunca mais serão vistos. Ela promete amor, mas traz a morte. Medonho mesmo é o seu ancestral, o Ipupiara, que não é exatamente um ser, mas um povo que habita o fundo das águas e só vem à tona para atazanar os povos ribeirinhos. Alguns dizem que são parecidos aos humanos, outros dizem que são monstruosos, mas não dão detalhes da sua aparência. Quando podem matam os humanos e comem as partes externas, dedos, olhos, orelhas, o nariz e abandonam o resto do corpo à correnteza. A Cobra-grande ou Boiúna aterroriza a todos, é uma cobra de proporções gigantescas, pode engolir canoas com todos seus ocupantes de uma vez. Além disso possui o poder da metamorfose, transforma-se por exemplo num barco, chega perto duma aldeia que acode para negociar combustível e comida com a tripulação, ela deixa que subam a bordo então submerge levando a todos.

É claro, essa divisão, entre o que é encantado e real, é nossa. Os habitantes da floresta a compreendem num só plano, onde o mágico é natural. Com essa concepção aprenderam a ocupá-la e estão lá há milênios, num equilíbrio harmônico. A dificuldade persiste para aqueles que, como nós, precisam se equilibrar entre o pensamento mágico e a razão e entre a natureza e a cultura. Não sabendo como transitar por essas fronteiras, abolimos a diferença: quer seja asfaltando a floresta, ou compreendendo-a como uma fonte bens naturais. Através desse pragmatismo, afastamo-nos de sua maior contribuição, que é a de ser a fonte de mistérios de que tanto necessitamos. As personagens dos contos de fadas sempre desapareciam para dentro de alguma mitológica floresta para lá realizar sua jornada de iniciação. Nossa cultura preservou esses cacos ancestrais através das narrativas folclóricas, onde a natureza ainda é mãe da magia com a qual precisamos recobrir o que nos é desconhecido e incompreensível. Por sorte ainda podemos brincar na floresta enquanto seu lobo não vem.

O Brazil desconhece o Brasil, por isso sub utiliza seu folclore. Quando penso em como preservar nossas florestas, uma das idéias é seguir esse caminho: aproximarmo-nos de seus mistérios, vendê-las como mágicas. Concebê-las não só como reserva de oxigênio e biodiversidade, mas como reserva ecológica de monstros e encantamentos. Fazer acreditar, por exemplo, que num relance poderíamos avistar um Saci. Funciona, todos temos dentro uma criança que só espera uma chance para acreditar em fadas.

Em 2007

19/11/07 |
(2)

Quantos portugueses são necessários para trocar uma lâmpada?

Vinha um português, com sua família, dirigindo pela estrada quando um carro da polícia o faz parar. O portuga fica todo nervoso com a aproximação do guarda. -O senhor está com o porta-malas mal fechado. Diz o guarda. -Ufa! Pensei que o senhor queria me pedir os documentos que eu não tenho.

Vinha um português, com sua família, dirigindo pela estrada quando um carro da polícia o faz parar. O portuga fica todo nervoso com a aproximação do guarda.

-O senhor está com o porta-malas mal fechado. Diz o guarda.

-Ufa! Pensei que o senhor queria me pedir os documentos que eu não tenho.

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06/07/06 |
(1)

Primeiro de Abril

Hoje é primeiro de abril, portanto desconfie de tudo que te digam, você pode ser o bobo da vez. Material impresso também não é confiável, lembre-se do caso do “Boimate”, quando a revista Veja copiou uma brincadeira, da geralmente sisuda revista inglesa New Science, que anunciava um novo tipo de transgênico, fundindo células vegetais com […]

Hoje é primeiro de abril, portanto desconfie de tudo que te digam, você pode ser o bobo da vez. Material impresso também não é confiável, lembre-se do caso do “Boimate”, quando a revista Veja copiou uma brincadeira, da geralmente sisuda revista inglesa New Science, que anunciava um novo tipo de transgênico, fundindo células vegetais com animais. Teriam criado um tomate não só com uma parte protéica, mas já com gosto de bife ao molho de tomate. Portanto estejam atentos, hoje não é dia de confiar em cientistas, o cruzamento de um pombo-correio com papagaio para mandar mensagens faladas está ainda longe de acontecer. Notícias arqueológicas tampouco são confiáveis, afinal, já foram anunciadas as descobertas dos braços da Vênus de Milo e a localização exata da aldeia do Asterix. Desconfie ainda de notícias políticas, a África do Sul não comprou Moçambique por 10 bilhões de dólares e, pelo que se sabe, o país não está à venda.

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01/04/06 |
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Iara: a sereia brasileira

Texto sobre a nossa sereia

Até Ulisses, guerreiro invencível e grande estrategista, viu-se mal frente aos encantos irresistíveis das sereias. Mulheres, diria ele, são mais perigosas que qualquer inimigo. Envolventes, elas não querem nada menos que tudo… Entre os diversos tipos de monstros femininos, a começar pelas bruxas (as matriarcas do território mágico), provavelmente as sereias sejam as que melhor encarnam a representação da mulher como uma cilada, aquelas cuja sedução é tão irrecusável quanto mortífera.

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10/08/05 |
(1)