Tatu-bola ou jequice-tatu?
O país cresceu, livramo-nos do Jeca e ficamos com o Tatu. Seria ele o que restou da nossa jequice?
Imagine que você seja um publicitário e precisa criar uma marca. Seu cliente dispõe de um cardápio rico, mas escolhe como símbolo algo que: entre o dia e a noite prefere a noite; entre o céu e a terra escolhe o subsolo; entre as cores vivas opta por um monocromático pastel; ao invés de um barulho vivaz escolhe o silêncio. Não é uma marca para uma funerária e sim para uma festa com convidados do mundo inteiro. Você pensa que isso não pode acontecer? Pois acabou de acontecer.
Não acreditei quando soube que o futuro mascote da copa será o tatu-bola. Conferi o site, pensei estar no Sensacionalista. De onde partiu semelhante idéia? Animais ctônicos como ele, habitantes da intimidade da terra, simbolicamente trazem conotação negativa, vide a cobra, o lagarto, a minhoca, a toupeira. O tatu nos lembra buraco, esconder-se, é um animal defensivo, que foge da briga, ou seja, animicamente um covarde. Seus dotes físicos tampouco ajudam, é sem graça e cor de terra, possui uma armadura escamosa sem charme, uns poucos pelos espetados e desgrenhados por baixo. De hábitos noturnos, só sai à noite para conversar com a coruja. Quanto aos nomes do tatu, não podemos reclamar, afinal, embora ainda não escolhido entre: Fuleco, Zuzeco ou Amijubi, as opções, são tão esdrúxulos como a escolha do animal, portanto, há uma coerência interna. Nessa lógica, é claro, apaga-se o único ponto forte do candidato: a sonoridade fácil de seu nome e que contém a palavra bola. Se não há escolha deixem tatu-bola, ainda que seja uma bola (o tatu enrolado sobre si) que não rola, e não se possa nem se deva chutar.
Um animal terrestre já representou o Brasil: a cobra fumando, símbolo da FEB. Mas o contexto era diferente, simbolizava a adesão à guerra. Como miticamente a terra está conectada à morte, um signo que lembra-se isso era perfeito. A escolha se deve à famosa frase, em que se dizia ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra, e a cobra fumou. Outras frases e metáforas foram usadas para dizer o mesmo, mas essa pegou por que representava o Brasil e seu momento. O exército brasileiro era pequeno e mal preparado, só a matreirice e oportunismo poderiam fazer dele fatal, por isso um ofídio. Pequena, mas mortal. O Brasil com os perigos traiçoeiros da selva eram assim evocados.
Quando Disney criou uma personagem para o Brasil escolheu um papagaio: Zé Carioca. A idéia do malandro nem era dele, nós é que nos vendíamos assim. Faz pouco, o filme Rio fez sucesso com uma Arara Azul que ficou associada ao Brasil e ao Rio de Janeiro. Essas aves colaram nos representando porque são animais do dia, solares e coloridos como é nosso país. Essas aves não só “falam” como o falam alto, fazem barulho, são associadas à alegria e ao bom humor. Elas têm tradição nesse quesito, por que desperdiçar esse gancho?
Os argumentos pelo escolha são frágeis. O tatu é um animal em extinção, é verdade, mas ele e quantos mais? Ele representa o cerrado e a caatinga, ok, mas essas regiões não espelham o Brasil no imaginário mundial. Para fora, nosso país é selva e mar. O que aliás é ótimo, com eles estamos em um território de diversidade, imensidão, força e magia. Ou seja, temos uma natureza rica, uma fauna incrível, se queremos abrir nossas portas, especialmente ao turismo, não seria mais fácil pegar algo já registrado na cabeça de todos como um valor positivo?
Faça uma experiência simples: lembre ou pergunte a alguém quais são os animais que estão impressos nas notas que manuseamos todos os dias. Os acertos serão maiores para a onça, na nota de 50, para a arara na de 10, e o mico na de 20. Quanto às outras, a maioria vai ter que meter a mão no bolso e olhar. Enxergamos melhor o que já é conhecido, e esse é um princípio básico quando quer se fazer um novo símbolo que pegue. Esses são os momentos onde é o óbvio que conta pontos, a boa propaganda dá roupa nova a velhos arquétipos. Não somos condenados a sermos representados eternamente pelos mesmos símbolos, o novo pode e deve advir, mas nesse caso não estamos criando material para currículo de escola, um projeto para o país, o que conta é a eficácia de uma imagem que divulgue a copa e traga o maior número de pessoas possível, que passe uma imagem de um pais acolhedor, exuberante e aprazível. E se fosse mesmo para fazer um corte com a representação tradicional do Brasil, sempre ligada a um elemento da natureza, que escolhessem um símbolo cultural, por que não um duende como o Curupira? Seria um toque de magia indígena, autóctone.
A tentação para um psicanalista é interpretar esse tatu com um ato falho. A COL escolheu um animal fabril (sim, para isso ele serve, ele constrói buracos, intervém na natureza) pois nada está pronto para copa e conviria chamar mais um operário. Um especialista em terra ajudaria nos túneis e estradas que ainda não saíram do projeto. Ou então o que retorna seria a personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato, símbolo do Brasil provinciano, inculto, doente e pobre. O país cresceu, livramo-nos do Jeca e ficamos com o Tatu. Seria ele o que restou da nossa jequice?
É a segunda bola fora no quesito imagem e propaganda. O símbolo da copa, aquelas mãos em verde e amarelo tampouco estão à altura do que podemos fazer. O design e a propaganda no Brasil fazem coisas muito melhores.
Que fique bem claro minha adesão ao projeto da copa no Brasil. Sou um entusiasta, creio que o Brasil tem condições de fazer uma copa como qualquer outro país. Tampouco acredito que esse dinheiro gasto em infra-estrutura seria melhor investido em escola, hospital, esse argumento tolo das prioridades. Essa conversa soa como deixar de fazer o Natal para economizar e trocar a geladeira, cancelar as férias para pagar um plano de saúde melhor. Quem realmente faz isso? É incrível como tem quem dá conselhos que não segue.
A questão que me preocupa é outra: se a inteligência que vamos usar para fazer a copa pode ser medida por decisões como essas, começamos com um gol contra.
Publicado no Jornal Zero Hora, Caderno de cultura, 29/09/2012