Creme numa hora dessas?
Não temos como julgar o tempo, nem os métodos necessários para atravessar um luto.
Minhas duas avós eram húngaras, ambas chamavam-se Irene e tinham uma bela parceria. Essa amizade ficou um pouco estremecida em uma única ocasião: quando meu pai morreu de forma súbita e precoce e uma Irene precisou consolar a outra. Minha avó paterna perdera seu primogênito ainda jovem, enquanto a avó materna via-se às voltas com uma filha viúva de vinte e poucos anos eu, órfã ainda bebê.
Naquela ocasião uma silenciosa discórdia instalou-se ente elas por um motivo aparentemente pífio: a mãe de meu pai chorava copiosamente a perda do filho, mas isso não a impedia de passar creme no rosto várias vezes por dia, como era seu hábito. Uma Irene achou que o sofrimento da outra, a mãe enlutada, não era compatível com cuidar da pele. Disfarçou isso até para si mesma, mas acho que no fundo de seu coração, não aceitou. Para a avó materna, o ato de embelezar-se da vó paterna tornava questionável a veracidade de sua dor; como assim passar creme numa hora dessas? Escutei essa crítica quando ela me contou essa história, mas não consegui concordar.
Como minha avó paterna, e por causa dela, tornei-me adicta a hidratantes, tenho a pele muito seca e os passo várias vezes por dia, incomodada pelo ar condicionado, pelo frio, com as mais diversas razões e desculpas. Só não vou mentir-me que esse hábito tenha muito a ver com hidratação propriamente dita. Acho que essa carícia de creme era para ela uma forma de autoconsolo da qual me tornei adepta. Em vez de esperar pela ajuda alheia, ela se recobria suavemente, dava-se um abraço cremoso. Como a perda de um filho é a maior dor que pode existir, algo capaz de sequestrar a vontade de viver de seus pais, não soa bem uma atitude que remeta à continuidade da vida. Somos contraditórios com aqueles que sofrem semelhante mutilação de seu futuro: queremos que quase sucumbam a uma dor insuportável, queremos que sejam fortes e sobrevivam.
Muitas pessoas costumam negar os momentos difíceis, saem imediatamente em viagem, afastando-se de tudo que os lembrava aquele que nunca mais voltará, entregam-se a duras jornadas de trabalho ou não tocam no assunto. Ignoram seus sentimentos e exilam os pensamentos que ajudariam a destilar a saudade. Há outras que afundam-se para sempre, não perdem a oportunidade de um apocalipse pessoal e deixam-se abduzir pela dor. Estes últimos, alheios à necessidade de sua presença e afeto por parte dos que ainda estão vivos, parecem indicar que a única pessoa que amavam é a que morreu. Pais que têm a vida de um filho ceifada, se tiverem outros, precisam superar-se para que estes não pensem ser insignificantes frente ao irmão morto.
O raciocínio a respeito do luto pode ser aplicado a outras situações difíceis, onde a vida é ameaçada ou perde o sentido que tinha. Por exemplo, quando se recebe um diagnóstico ruim da própria saúde ou de alguém muito amado, uma inesperada demissão, uma aposentadoria para a qual não se está preparado, uma bancarrota, uma desilusão amorosa. Condenamos tanto os que negam uma perda, quanto os que revelam-se incapazes de superação.
No raciocínio daquela Irene, que era sogra do falecido, encontramos essa tendência a avaliar com pouca tolerância os recursos utilizados por aqueles que sofrem. Queremos que sejam autênticos, que mostrem verdadeira entrega à sua dor, mas também que sejam breves e resolutivos, nada de depressões ou lutos arrastados.
Se uma Irene tivesse lembrado que, como a outra, era uma emigrante desgarrada de todo um passado e referencias, talvez tivesse entendido esse gesto solitário de sobrevivência psíquica. Cuidar da pele era tão válido como tantas atitudes pouco convencionais a que as pessoas recorrem quando a vida pede que se tenha uma envergadura quase sobre-humana.
Cresci passando cremes e acostumei-me a dizer que as pessoas que tiveram vida difícil têm a “pele dura”, sem dar-me conta que remetia ao episódio daquela Irene passando creme para sobreviver à perda. Minha avó materna estava errada daquela vez: há diferentes recursos e são uma sorte para quem os tem. A dor também se enfrenta com hidratante.
Tempo para não ser
Férias: mudança de identidade temporária.
É verão, temporada oficial de descanso. Sair de férias não garante que sejamos capazes de gozá-las: amigos, casais e famílias se desentendem, se angustiam, alguns vagam tristes, outros perdidos. A expressão workaholic, viciado em trabalho, que a princípio me define, não basta para explicar: não é apenas um vício. O problema é que despidos das nossas características profissionais ficamos nus de identidade.
Sei que isso não é assim para todo mundo: há quem se preparou o ano todo para este momento, lapidou o corpo, garantiu as insígnias de beleza, força, dinheiro ou o que for para entrar nos padrões. Enquanto os outros se desmancham em brancuras, barrigas, celulites e roupas soltas, alguns soberbos exemplares angariam admiração e inveja dos complexados. Eles não passeiam, desfilam. São como os salva-vidas, profissionais do veraneio.
Meu trabalho só existe na presença dos pacientes, tudo o que sei provém da escuta. Portanto, fora do consultório, não me sinto psicanalista e sempre volto das férias questionando se ainda serei capaz. Engenheiros, administradores ou contadores, por exemplo, só se valem da perícia com números quando está se calculando o rateio do churrasco, ela pouco lhes servirá na beira da praia.
Sair de cena, abandonar responsabilidades, a isso chamamos de descanso. Poder ler, dormir, movimentar-se por prazer, namorar, rir, conversar fiado. Mas como descansar de si sem sentir-se derretendo, virando nada, quando somos somente o que trabalhamos?
Sempre que tivermos o privilégio de algum tipo de escolha, nosso trabalho tende a ser significativo. Cada ofício é uma espécie de solução encontrada para administrar as expectativas que jogaram em nossas costas, junto com nossos próprios temores e ideais. Por isso, não é exatamente algo do qual seja fácil livrar-se.
Os cultivadores do corpo levam o fruto de seu esforço à praia, despem-se para trajar gala. Mas há outros tipos de bem aventurados entre os veranistas: aqueles que possuem grandes habilidades sociais, realizam-se no intenso convívio em praias, famílias, banquetes, excursões, cruzeiros. No campo oposto, os eremitas bem resolvidos também costumam lidar melhor com esse tempo livre. Viajando ou repousando a sós ou em parca companhia, festejam o anonimato.
Quando consigo, tendo a me resolver melhor como os mais quietinhos. Porém, é bom parar de culpar-se pela dificuldade de entrar em sintonia com o descanso. Como as férias implicam numa mudança de vida, portanto de identidade, isso acaba sendo um desafio. Em lugares diferentes, com outras vestimentas e as rotinas alteradas, tornamo-nos meio estrangeiros a nós mesmos. O pior é que quando finalmente pega-se o jeito e o gosto, lá pelos últimos dias, já é hora de voltar para casa.
Um consolo a cada esquina
Essa invasão de farmácias, pet-shops e estéticas, a que se deve?
Não sei se é só Porto Alegre que vive uma invasão de farmácias. Edificações vêm abaixo ou se transformam para dar lugar a esses bem iluminados, coloridos e amplos negócios. Lá há substâncias que dão conta de cabelos e pele irretocáveis, dores no corpo e na alma, síndromes que nossos avós sequer suspeitavam que fossem possíveis. Você pode adquirir uma variedade de vitaminas que fariam Popeye dominar o mundo e até, se fizer questão, remédios realmente necessários.
Não estou aqui para olhar de fora, sou hipocondríaca profissional e adoro pílulas milagrosas para meus males. Também sou capaz de perder bastante tempo escolhendo produtos de higiene que tornem meus dentes alvos, minha pele uma seda e meus cabelos esvoaçantes. Porém, com a chegada dos cinquenta anos, há o perigo de sair com os cabelos alvos, os dentes esvoaçantes, mas…
Além das farmácias, são também endêmicos os salões de beleza, agora rebatizados de Estéticas, assim como as lojas especializadas em animais domésticos, as Pet-shops. As primeiras, no passado recente, cuidavam dos cabelos, unhas e ocasionalmente uma maquilagem para festas. Hoje estendem seus serviços muito além do enfeite: pele, gorduras e todo tipo de supostas irregularidades encontram ali alívio e correção. Já as pets são lugares totais. Mistura de cuidados de saúde, estética, creche e loja, oferecem atendimento imediato, doutores 24 horas. Do jeito que andam as emergências dos nossos hospitais, ando invejando minha gata.
O que isso diz de nós?
Que acreditamos em substâncias mágicas: os remédios. Eles de fato são maravilhosos ao combater a dor e a morte. Porém, os usamos também para males menores, bastante vagos, assim como esperamos deles proteção e vitalidade. Sem dúvida, nas farmácias encontra-se a alquimia das soluções imediatistas, basta engolir.
Que cuidamos dos animais porque nos oferecem um afeto tranquilo e previsível. Para eles toda forma de amor vale a pena, são fiéis e devotados, raramente pedem divórcio e, ao contrário dos filhos, moldam-se às das expectativas dos “pais”. As pessoas nos cansam com suas exigências e neuroses, nunca sabemos o que esperar de um amor entre humanos.
Já as estéticas são como uma mãe de aluguel que cuida, massageia, nos alisa, elogia, colore e enfeita. Até porque que as mães descuidam, esquecem, acreditam que crescemos. Pagando, o mimo é garantido e vitalício.
Por isso consumimos banhos e tosas, esmaltes, cremes, drenagens e luz pulsada, pirilimpimpim, vitaminas, analgésicos e calmantes. Como não ter uma uma pet-shop, uma estética e uma farmácia a cada esquina? A conclusão é inevitável: tornamo-nos uma civilização preguiçosa, imediatista e carente. Dá uma vergonha, né?
Criados no cativeiro
Há algo de podre no reino das famílias “normais”….
Todos sabemos que as aparências escondem muita coisa, mas tendemos a alinhar os que são convencionais com o que é certo e os desviantes com o errado. É difícil acreditar que entre os pais de família heterossexuais e religiosos, entre os esportistas saudáveis e populares, entre bons estudantes, maridos e esposas monogâmicos, funcionários e professores esforçados, boas donas de casa, gente trabalhadora e dita normal, pode haver algo de perverso, demoníaco e assustador.
O clã é um filme argentino, dirigido por Pablo Trapero, que nos confronta com esse paradoxo das aparências. Conta a história real de uma família de classe média, cinco filhos entre os quais um prestigiado jogador de rúgbi. Eles têm uma vida trivial, os mais jovens fazem temas e a mãe, professora, reúne a prole à mesa do jantar onde conversam agradavelmente. São donos de uma rotisseria, pequeno negócio de bairro, atendido pessoalmente pela família. Os pais são zelosos, o cotidiano é de uma família amorosa.
O detalhe é que Arquimedes Puccio, o pai, é um psicopata de livro. Ele trabalhava no serviço de inteligência durante a ditadura, o que na época equivalia à prática impune de sequestros e assassinatos. Com a chegada dos primeiros ventos da democracia, ficou ocioso de seu ofício de executor dos negócios escusos do governo. Foi quando ocorreu a Puccio começar a praticar sequestros, assassinatos e extorsões em benefício próprio e não teve pruridos em fazer disso um negócio familiar.
Eles eram acima de qualquer suspeita: a participação ativa dos filhos homens mais velhos, a conivência da esposa e das filhas, e a imagem respeitável permitiu que o clã dos Puccio mantivesse as vítimas em cativeiro na própria residência. Entre os companheiros de esporte do filho havia vários jovens abastados, assim como gente bem situada das relações de Arquimedes, que não aparentava nenhum constrangimento em sequestrá-los e matá-los. Aliás, a lógica perversa desse homem é aplicada tanto em relação às vítimas, quanto a seus filhos, a quem via como parte essencial de seus planos. A vida e a morte, os destinos alheios não fazem questão para um psicopata, todos estão a serviço de seus propósitos. Seus planos são fins para os quais os outros seres humanos não passam de meios, mesmo que sejam seus filhos.
Preste atenção: Arquimedes Puccio era um pai dedicado, envolvente, lógico. Foi difícil desobedecer suas determinações travestidas de amor. Além disso esse chefe de família psicopata foi, por muitos anos, legitimado pelo estado. As ditaduras funcionam com a mesma lógica perversa, por isso ele custou a acreditar que seria punido e essa prepotência foi o fim dos Puccio. Como se vê, quem tem uma lógica perversa na vida pública, não deixará de aplicá-la na intimidade. O público é também privado.
Filhinhos da mãe
Há uma forma de ser mulher que está em declínio: a da mulher que materna seu homem e realça com sua dependência o poder dele. Os viúvos dessa feminilidade em extinção estão ficando desamparados e violentos.
Os cariocas estão correndo o risco de eleger como prefeito um homem que repetidamente espancou sua esposa. Em sua defesa, o candidato a candidato perguntou: “quem não tem uma briga dentro de casa? Quem não tem um descontrole?” De fato, tampouco conheço casais que jamais tenham discutido, mas palavras e lágrimas costumam dar conta do recado.
Muitos legisladores, maridos e namorados estão mostrando-se irritados e inseguros com a desobediência e as exigências das mulheres. Amantes ciumentos espancam e até matam aquelas que, em seu imaginário, só poderiam estar interessadas em outro homem. O que não ocorre a esses senhores destemperados é que elas possam querer tantas outras coisas que independem da presença masculina. Podem desejar a dignidade que eles lhe negam, um clima agradável no lar, a liberdade de não ter filhos, enfim, coisas para as quais elas se bastam. Menos habituadas ao prestígio, criadas para ser mais cuidadoras que cuidadas, as mulheres estão melhor preparadas para a jornada solitária.
Há uma cruzada em defesa de uma feminilidade que está em declínio. É a que corresponde à ideia da que elas existem para funcionar como um espelho que reflete a imagem do homem duplicada, agigantada pelo olhar feminino de admiração. Aliás, essa metáfora é de autoria da atualmente difamada Simone de Beauvoir. Como poderão eles ser grandes homens, sem uma grande mulher por trás?
Curioso, porque mulher grande mesmo é a mamãe: aquela giganta que faz seu menininho sentir-se o maior tesouro que a vida lhe deu. As esposas submissas são sua forma de sobreviver na vida dos homens adultos. O patriarca falido encontrou seu último reino nos braços da uma companheira que é misto de mãe protetora com criatura dependente. A extinção dessas tristes personagens, um marido ao modo menino mimado e a esposa que é sua sombra protetora, seria uma questão de tempo se não esbarrasse na resistência das próprias mulheres.
Muitas continuam submetendo-se, ou pior, acobertando maridos violentos, por causa da superproteção, que é uma fraqueza tipicamente materna. Alegam que os “coitados” estão numa fase ruim, culpam-se por tê-los irritado. Onipotentemente acreditam que vão domar sua fúria.
Há mulheres na vida dos legisladores que impõe recuos às liberdades femininas conquistadas. Qual o papel delas na tolerância com a violência que as fere e extermina? Esses homens têm mães, esposas, filhas, netas, sobrinhas, colegas, amigas e eleitoras. O primeiro machismo a ser vencido é o das próprias mulheres. São muitas as que ainda reconhecem no lugar da mãe a essência da feminilidade e na construção dos poderes do seu menino sua máxima realização. Seus homens só se comportarão como adultos no dia do ocaso da misoginia feminina.
A menarca assassina
O sangue mais assustador escorre do corpo de uma mulher.
Em 1974 Stephen King teve uma ideia que abandonou porque algo naquela trama lhe dava muito medo. Foi somente por insistência da esposa que a retomou. Detalhe, estamos falando de King, o mais popular escritor de novelas de terror.
Era a história de Carrie, uma adolescente desengonçada, que vivia só com a mãe, uma beata delirante. Sua inadequação já fazia dela motivo de bullying (ainda não se usava esse termo), quando aconteceu-lhe de menstruar pela primeira vez no vestiário da escola. Sem saber o que estava lhe acontecendo, entrou em pânico ao ver o sangue espalhar-se pelo chão do chuveiro. As colegas reagiram aos gritos, fazendo troça e afogando-a numa chuva de absorventes. As reviravoltas da história culminam com a jovem sendo eleita rainha do baile de formatura e recebendo, junto com a coroa, um balde de sangue de porco na cabeça.
Depois de sofrer essa agressão, a jovem, que já revelava seus poderes de movimentar objetos com o pensamento, reage com fúria e desencadeia a completa destruição do baile e da cidade. Carrie provocou incêndios e esvaziou os hidrantes, produziu curto circuitos e caos. Quem não foi queimado, foi eletrocutado e sobraram poucos, principalmente entre seus colegas, para contar a história. Tudo isso só por causa de uma menstruação? Para uma história escrita na segunda metade do século XX, o que há de tão ameaçador no corpo de uma garota?
Mamilos femininos numa praia são uma afronta, até amamentando não são bem vistos. Já os masculinos mesmo que proeminentes e marombados são exibidos com liberdade e orgulho. A visão do sangue menstrual é proibida nas redes sociais, mas se a imagem mostrar uma virgem vertendo lágrimas de sangue tudo bem. A mulher é potencialmente suja, perigosa, diz-se que sua imagem provoca impulsos sexuais e agressivos incontroláveis nos homens. Por isso seria a culpada pelos abusos que sofre. Ela deve se encobrir. Se ficar grávida, mesmo que seja fruto de um estupro, deve gestar e parir o filho de um monstro. Acaba de ser aprovado um projeto de lei que lhe impede o acesso ao remédio que a livraria disso. O corpo da mulher não lhe pertence. O que há de tão ameaçador no corpo de uma mulher? Em pleno século XXI?
A história de Carrie continuou sendo re-filmada, a última versão é de 2013. Isso prova que a fantasia da feminilidade poderosa e demoníaca segue viva no inconsciente do nosso tempo. Triste persistência, num tempo em que a vida das mulheres começaria em tese a respirar ares de liberdade: estamos nos tornando uma legião de médicas, advogadas, pedreiras, pensadoras, líderes, soldadas e o que mais quisermos ser. Pelo jeito, ameaçamos levar nossos perigosos fluidos menstruais para contaminar a sociedade e destruir tudo, que dizer dos nossos seios, dos nossos ventres nada livres? Em pleno século XXI.
publicado em ZH em 8.11.2015
Verdades que divertem
Divertida Mente é um filme para crianças, quem diria…
Expus ao meu priminho Gonçalo, seis anos, uma questão que tenho escutado várias vezes: o filme infantil Divertida Mente é de fato para crianças? Com a seriedade dos pequenos, que nunca estranham que um grande lhes peça opinião, ele ponderou que sim, já viu duas vezes. As crianças de hoje não têm temores nem constrangimentos para abordar assuntos delicados. Uma vez informados do que se trata, não há sobre o que não possam, a seu modo, opinar: morte, justiça, famílias, velocidade dos carros, ecologia, religião.
A ficção infantil não precisa escolher temas fáceis ou soluções planas, se for bem feita, será bem-vinda. Isso garante o sucesso de filmes como Up, que trata da velhice, dos antigos Bambi, no qual a mãe de um bebê é assassinada, Rei Leão, que enfoca a morte do pai e a autoculpabilização do filho por isso, Os Incríveis, em que um pai super-herói sofre da depressão do desemprego, Shrek, que prega a valorização da autenticidade da imagem, e tantos outros.
O público adulto finge, bate palmas por convenção, tem medo de não saber discernir entre um espetáculo difícil e um ruim. As crianças fazem uma avaliação direta: se a peça, show ou filme forem cativantes, ficarão atentas, se não, a bagunça se instala. E não sejamos injustos achando que só aprovam pastelão, lutinhas e cantorias edulcoradas. Divertida Mente está aí para demonstrar o contrário.
Nessa história, as personagens não poderiam ser mais abstratas: a Alegria, o Medo, a Raiva, o Nojo e a Tristeza. Dentro da cabeça de uma garota de 11 anos que precisa enfrentar o desafio de mudar de cidade, eles cumprem seus papéis e, principalmente, disputam com a Alegria a condução da vida de Riley. A trama leva-nos a concluir que o protagonismo da Tristeza é decisivo para a adaptação dela. Sem as lágrimas necessárias, que também se devem ao fim da infância e à constatação de que os pais estão igualmente atrapalhados, não acontece a elaboração das perdas. O filme também é bem claro de que tudo o que não for enfrentado, por ser doloroso, levará consigo para o esquecimento as preciosas memórias. Aquilo sobre o que não se pensa tampouco é lembrado, pois enfocar algo significa descobrir em que parte da nossa mente vamos guardá-lo.
É fundamental para as crianças ver seus conflitos psíquicos tratados com empatia e seriedade. É um alívio ver seus pais recebendo desse filme a lição de que elas têm direito à tristeza e não precisam bancar os bobinhos da corte. O dever de ser feliz e de gozar a vida é um fardo para a infância contemporânea. Como lucro suplementar, verão que, por dentro, é comum que os adultos tenham as mesmas minhocas, pois elas percebem nossas fragilidades. É como no teatro infantil: não adianta enganar ou ser falsamente simplório, seja verdadeiro e elas aplaudirão.
(coluna no jornal Zero Hora, 25 de outubro 2015)
Eu também!
Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.
A atriz Fernanda Torres teve a coragem de comentar em sua coluna na Folha (25.09.2015) que a menopausa havia chegado, anunciando-se com as cornetas da insônia e das ondas de calor. “Temo tocar no assunto e virar porta-voz de um fenômeno vivido em sigilo pela maioria absoluta das mulheres”, escreveu. Ela sabia que estava mexendo num vespeiro e estou fazendo exatamente o que ela tentou evitar, mas seu gesto abriu precedentes para mulheres menos notórias dizerem: eu também!
Nascer com útero e ovários é ser apresentada desde a puberdade à arbitrariedade dos hormônios que fazem do corpo um relógio, um calendário. Somos regidas por uma sucessão de eventos tanto previsíveis quanto mutantes, tão infalíveis quanto inquietantes em sua ausência. Mensalmente, temos que posicionar-nos frente à fertilidade. A cada aniversário o dilema da maternidade se renova, levando em conta que ela é datada. É uma negociação tensa na qual os desejos e o organismo jogam cada um com sua mão de cartas. Na meia idade, a temida decadência do corpo que lota academias, consultórios de plásticos e dermatologistas, aparece junto com o fantasma de deixar de ser mulher. Por isso todas envergonham-se silenciosa e solitariamente. Fernanda se “surpreende o quanto a menopausa se mantém velada, secreta”.
Conheço bem esses sentimentos, vivo com eles discretamente há alguns anos. Passamos a noite no ballet das cobertas, num strip-tease de arrebato, mais ansioso que sensual, sendo despertadas por um cérebro sacana quando caímos em sono profundo. O rendimento baixa, o sutiã aperta e temos ataques de comer doce, justo quando engordamos até com chuchu.
Há formas químicas de amenizar esses contratempos, além das vantagens de uma vida saudável, que melhora sensivelmente o quadro. Mas não viraremos atletas e ascetas, com um sorriso nos lábios, só porque a menopausa aconteceu. Os vaticínios então são os piores: anuncia-se o ressecamento de tudo e principalmente do desejo sexual. Não é o que dizem as mais corajosas, dispostas a reconhecer seus desejos livres da pressão social do crescei e multiplicai-vos.
Aos homens maduros têm sido dada a opção de sair dessa uivando, lobos encanecidos. Movidos à pílula azul da ereção eterna, saem em busca da jovem caça que lhes devolva a jovialidade. Para as mulheres, parece que o jogo acabou a não ser que se fantasiem de igualmente patéticas Barbies estorricadas. Ao contrário, é a hora de seguir em frente, aproveitando que junto às golfadas de calor costuma vir uma onda de liberdade. Algumas rodadas da vida, bem ou mal, já foram jogadas e algo, bem ou mal, se aprendeu. Ainda somos suficientemente jovens para novas aventuras e já, espera-se, menos ingênuas e fantasiosos. Podemos dar umas gargalhadas juntas, enquanto nos abanamos.
Somos todos estrangeiros
Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.
Volta e meia, em nosso mundo redondo, colapsa o frágil convívio entre os diversos modos de ser dos seus habitantes. Neste momento, vivemos uma nova rodada dessas com os inúmeros refugiados, famílias fugitivas de suas guerras civis e massacres. Eles tentam entrar na mesma Europa que já expulsou seus famintos e judeus. Esses movimentos introduzem gente destoante no meio de outras culturas, estrangeiros que chegam falando atravessado, comendo, amando e rezando de outras maneiras. Os diferentes se estranham.
Fui duplamente estrangeira, no Brasil por ser Uruguaia, em ambos países e nas escolas públicas por ser judia. A instrução era tentar mimetizar-se, falar com o menor sotaque possível, ficar invisível no horário do Pai Nosso diário.
Certamente todos conhecem esse sentimento de sentir-se estrangeiro, ficar de fora, de não ser tão autêntico como os outros, ou não ser escolhido para o que realmente importa. Na infância tudo é grande demais, amedronta e entendemos fragmentariamente, como recém chegados. Na puberdade perdemos a familiaridade com nossos familiares: o que antes parecia natural começa a soar como estrangeiro. Na adolescência sentimo-nos estranhos a quase tudo, andamos por aí enturmados com os da mesma idade ou estilo, tendo apenas uns aos outros como cúmplices para existir.
O fim desse desencontro deveria ocorrer no começo da vida adulta, quando trabalhamos, procriamos e tomamos decisões de repercussão social. Finalmente deveríamos sentir-nos legítimos cidadãos da vida. Porém, julgamos ser uma fraude: imaginávamos que os adultos eram algo maior, mais consistente do que sentimos ser. Logo em seguida disso, já começamos a achar que perdemos o bonde da vida. O tempo nos faz estrangeiros à própria existência.
Uma das formas mais simples de combater todo esse mal-estar é encontrar outro para chamar de diferente, de inadequado. Quem pratica o bullying, quer seja entre alunos ou com os que têm hábitos e aparência distintos do seu, conquista momentaneamente a ilusão da legitimidade. Quem discrimina arranja no grito e na violência um lugar para si.
Conviver com as diferentes cores de pele, interpretações dos gêneros, formas de amar e casar, vestimentas, religiões ou a falta delas, línguas, faz com que todos sejam estrangeiros. Isso produz a mágica sensação de inclusão universal: se formos todos diferentes, ninguém precisa sentir-se excluído. Movimentos migratórios misturam povos, a eliminação de barreiras de casta e de preconceitos também. Já pensou que delícia se, no futuro, entendermos que na vida ninguém é nativo. A existência de cada um é como um barco, no qual fazemos um trajeto ao final do qual sempre partiremos sem as malas.
Desventuras do Jacozinho
os homens podem controlar o mundo, menos seu membro mais ilustre.
“Por que não consigo controlar algo tão próximo, tão pequeno e tão simples?” O leitor não precisa ficar perguntando-se quem ou o que é esse pequeno David, capaz de levar qualquer Golias à nocaute: é o pênis. Aliás, vulgo “Jacozinho”, para seu dono, o escritor Jacques Fux, autor do recém lançado Brochadas (Ed.Rocco).
O prazer feminino é considerado um mistério. O clitóris, parte do corpo apenas devotada ao prazer, também é um assunto tabu e conta com um milésimo das denominações dedicadas ao órgão sexual masculino. A dificuldade surge quando o orgasmo delas é comparado com a mecânica da ejaculação, que pareceria tornar tudo visível e simplório. Pois é, mas o Jacozinho não pensa bem assim, ele tem ideias peculiares sobre com o que e quando sentir-se motivado. Seus mecanismos de prazer também são enigmáticos para o homem, o desejo parece assumir vida própria pela via da ereção ou da impotência, tanto que diz-se que o homem pensaria com a cabeça de cima diferente da de baixo.
“Nós homens, coitados, atados a imagens pornográficas, fetiches edipianos e a bundas e peitos, não conseguimos nem nos aproximar das inúmeras possiblidades de prazer feminino”, queixa-se Fux. Porém, nada disso seria uma grande questão se Jacozinho não negasse fogo quando bem entende, obrigando seu homem a tentar desvendar o que os move, a ambos.
O autor resolve enviar cartas para perguntar às mulheres, tanto àquelas com quem brochou, quanto às que lhe produziram notória motivação sexual, mas que o deixaram, sobre o que aconteceu entre eles. As respostas, ficção com tintas de realidade ou vice-versa, dão oportunidade para que essas ex-parceiras acusem a inadequação de Jacques, como escritor e como amante.
Masculinidade e virilidade não são a mesma coisa, tanto quanto Jaques e Jacozinho não pensam em uníssono. O fenômeno da ereção levou tanto tempo para ser compreendido quanto o prazer feminino. Eram ideologicamente mais aceitáveis as teorias que associavam a virilidade à tonicidade de um corpo musculoso, rijo e guerreiro, e a pujança masculina reduzida apenas à existência de um membro e sua capacidade de penetrar.
Curiosamente, a função erétil também depende do relaxamento da musculatura lisa do pênis, ao contrário da tensão que seria considerada mais máscula. Estamos aqui no território perigoso do descontrole, da entrega, do desejo e da neurose. Além disso, a demanda contemporânea pede ao homem uma ereção duradoura, capaz também de garantir o prazer alheio. Alheia mesmo é a vontade do Jacozinho. Simone de Beauvoir disse que não se nasce mulher, torna-se. Para os que chegaram ao mundo com um pênis, duro mesmo foi constatar que não se nasce viril, e nem sempre torna-se.