Por que tantos peregrinaram ao ônibus da história “Na natureza selvagem”?
Qual o fascínio para os adolescentes da jornada de Chris ao Alaska?
O ônibus de “Na natureza selvagem” não está mais na natureza selvagem.
Recentemente, um helicóptero da Guarda Nacional do Exército do Alasca removeu o lendário ônibus onde Christopher McCandless encontrou o triste fim da sua jornada de filosofias e aventuras. O local tornara-se meca de perigosas peregrinações, de pessoas identificadas com sua história. Foram tantos os extraviados, resgatados com dificuldade, tendo havido inclusive casos de óbito, que as autoridades tiveram que remover esse “monumento”. O que foram tantos procurar em meio à inóspita paisagem alasquiana? Em nosso livro, “Adolescência em cartaz” dedicamos um capítulo a esse personagem, que existiu na realidade e tornou-se uma das grandes fantasias sobre a juventude. Abaixo, alguns excertos:
“Os alasquianos habitam um território no extremo dos Estados Unidos que, pela sua beleza e natureza hostil, desperta a imaginação de pessoas de outras regiões. Eles estão habituados à aparição de peregrinos e Christopher McCandless, um rapaz de 24 anos, oriundo de uma família classe média alta de Annandale, Virginia, foi mais um deles. Eles os vêm com certo desprezo, como assombrações que insistem em passar por ali, impulsionados por fantasias a respeito de si e do lugar e assim os descrevem: ‘jovens idealistas, cheios de energia, que se superestimaram, subestimaram a região e acabaram em dificuldade (…) há um bocado desses tipos perambulando pelo estado, tão parecidos que são quase um clichê coletivo.’”(…)
A região atrai todo tipo de aventureiro, em geral jovens, submetendo-se à rudeza da experiência como rito de passagem. A fibra necessária para enfrentar tal provação, os sofrimentos físicos e a superação dos medos, a solidão em que em geral essas viagens são feitas, se justificam na expectativa de consolidar uma identidade e de corroborar um valor que eles próprios possam acreditar que têm. (…)
“Vale questionar-se sobre as razões de por que a trajetória desse rapaz tenha se tornado livro, filme, motivo de debates acalorados, assim como inspirador de identificação entre aqueles que sequer gostam de aventuras na natureza radicais na natureza. Apesar de seus desejos eremitas, o autonomeado Alex era um entusiasta contador de sua própria história e de seus ideais, deixou suas andanças documentadas, além de comentários sobre as fontes literárias em que fundamentava suas crenças. A última aventura, por ser desastrada e dramática, tomou o centro da narrativa e o ângulo pelo qual o enxergamos, mas ele foi muito mais do que isso. Sua morte trágica, por inanição no Alasca, nos legou uma coleção de enigmas. Enigmais e pistas a respeito de como teria sido o encontro do jovem com a natureza e a morte. Sua tragédia real, fortemente inspirada na literatura avizinhou-se da poesia. Por isso os escritor Krakauer, o cineasta Sean Pen e neste momento nós também, assim como tantos outros, seguimos ocupando-nos dessa história, que se tornou mítica.
São poucos os que têm coragem de fazer a experiência radical de largar a vida comum e sair ao encontro da aventura, principalmente hoje, em que há uma enorme adesão a uma vida reclusa onde pode-se viver experiências meramente virtuais. Muitos desses jovens acomodados sonham com os verdadeiros riscos e as genuínas vivências de quem abriu mão de todas as comodidades e da segurança por opção, e não em nome de uma causa ou missão, ou ainda por ter sido convocado.
O sucesso do livro não é outra coisa que combustível para essa fantasia – e isso nos revela o desejo de fuga como uma das dimensões da adolescência. Na prática pode ser a migração para outra geografia, para outra cultura, mas, em muitos casos, como neste, para fora da cultura propriamente dita, como se a natureza o fosse purificar da sua história, como se ela fosse a única alteridade respeitável. Esta é a dramática história de um jovem buscando refundar-se com o mínimo apoio possível, longe de tudo e de todos.” (…)
“O interessante em estar na estrada é viver sem rumo, o que importa é o meio não o fim, não se vai a lugar algum, apenas se vai. Talvez possa ser lido como uma colocação em ato de uma das grandes questões dessa fase: como não sabem para onde ir, o caminho se faz ao andar. Assim vivem um eterno presente, esquivando-se da pergunta que ronda: o que vais fazer da tua vida? A pergunta é simples, singela, mas para muitos ela abre uma porta de pavor, sentem-se incapazes de responder e, imaturos demais para as exigências do mundo. Fogem da questão e de quem eles supõe que a fariam.
A tarefa de tornar-se alguém começa com uma incontornável alienação à história familiar, mesmo que os pais tentem ser democráticos. Subjetivação e sujeição se confundem, parecem o mesmo movimento. Tomar nas próprias mãos o resultado do que fizeram conosco e fazer algo peculiar, é a tarefa que cabe à adolescência desde que o individualismo tornou-se dominante. A revolta contra essa marca primeira de dependência, que tinge-se de uma espécie de mágoa por ter sido submetido a eles, volta com toda força nessa idade. Na verdade, eis a fonte daquilo que os adultos estão sempre denunciando como uma ingratidão dos mais jovens: deveriam reconhecer que quando eram desamparados seus cuidadores lhes dispensaram tudo o que precisaram para crescer. Porém, infelizmente, a gratidão nesse caso viria com o preço de continuar preso dentro de casa, agora pagando a conta. É por isso que os adolescentes não sentem como legítimos os pilares em que se sustentam, precisam relativizá-los, questioná-los e fantasiar uma espécie de auto-fundação.
Sua questão é como trocar os próprios fundamentos sem que a casa venha abaixo. É uma operação complexa, que exige livrar-se dos pais da infância, na tentativa de abafar suas reais ou supostas exigências. É preciso matá-los simbolicamente e sair vivo da empreitada. Fugir de casa ou partir e deixar de dar e receber notícias é uma das tantas maneiras de desfazer-se dos pais. Essa é a escolha de Alex. Por isso, no caso dele, como no de tantas outras fugas de casa, o sofrimento dos pais não é considerado. É quase como se eles nunca tivessem existido, o propósito é exatamente esse. Com a maior parte das pessoas que Alex interage durante suas andanças repete o ciclo, encontra, faz um vínculo forte e parte sem dar adeus, sem que o outro possa proferir sequer uma palavra de despedida. Mais que ir embora, ele sumia, essa era sua marca.”(…)
“Antes de pensar o que o pôs a correr de seu habitat de origem, convém entendermos melhor em que direção apontava seu desejo. O andarilho Alex foi admirado não somente pela ousadia do seu desprendimento, mas sim pelo fato de que durante aqueles dois anos construiu uma existência coerente com seu pensamento romântico radical e morreu em consequência disso. Ele é visto como se fosse o herói de uma guerra pessoal, capaz de sacrificar-se pela sua crença.
Mas examinemos seu pensamento, de modo em que ele revele o que haveria de admirável para aqueles que leram sobre sua história: afinal o que um jovem buscaria na natureza? Percebemos que ela representa para ele uma alteridade radical, algo a ser conquistado, vencido. Mas por que a experiência frente a seus rigores seria capaz de funcionar como uma prova convincente? E de que valor? E para quem?
Os pais podem até ser muito generosos, mas querem ser recompensados pelos seus investimentos amorosos. Ser filho de alguém é carregar o peso da aposta que se fez em nosso nome. De alguma forma sempre vem a mensagem de que devemos pagar pelo lugar simbólico que ocupamos em uma linhagem. A força das marcas familiares que fundaram o sujeito é sentida particularmente na adolescência, é o fim do jantar e o momento de receber a conta. A cultura dos pais, seus sonhos e projetos, seus erros e acertos vão impor-se ao ser que eles criaram, querem que ele se realize nos termos dos seus valores. Muitas vezes o desejo parental pode não ser de continuidade, não é nada incomum que seja até de rompimento: vá além, faça o que não consegui, enfrente o que me derrotou, escolha melhor do que eu fiz. Outras, é de mera continuidade, mas não importa o tom, sempre soará opressivo e, quanto maiores os recursos psíquicos do jovem, menos pesada será a consciência e a desilusão de concluir que o amor dos pais nunca foi incondicional.
Já a natureza, embora na prática suas exigências possam ser cruéis, parece ser equânime e desinteressada. Estar sozinho em lugares extremos pode produzir momentos de euforia, numa comunhão íntima com a beleza da paisagem, muitos dos quais foram relatados por Alex. Isso se você estiver disposto às agruras necessárias para chegar e permanecer ali. Os que conseguem sentem-se vitoriosos, mas trata-se de uma conquista em que não se cedeu ao desejo de ninguém, não exigiu troca de favores, não se negociaram crenças nem houve medições de prestígio. As exigências de uma montanha, um deserto, uma grande onda, a imensidão do oceano, de uma floresta cheia de ciladas, serão iguais para todos os que ingressarem nelas. O que muda são os recursos com os quais cada um entra na cena. Por isso era fundamental para Alex não possuir nada que diminuísse os riscos, que amenizasse as exigências do lugar, era uma forma de aumentar a magnitude de uma experiência que ele considerava pura e essencial.
Acreditamos que, pela semelhança das experiências a que se lançaram o “personagem” McCandless e o escritor Krakauer (autor do livro responsável pelo resgate do personagem), podemos tomá-los, para efeito de reflexão, como duas vozes de pensamentos similares. A pesquisa do jornalista o levou a citar trechos dos autores preferidos do seu personagem e, entre eles, temos a seguinte passagem de Caninos Brancos, publicado em 1906 por Jack London:
“A própria terra era uma desolação sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. (…) Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.”
O livro de London contrasta o heroísmo natural das criaturas selvagens, assim como do valor intrínseco da beleza da paisagem do Alasca, com a mesquinhez, a incompreensão dos homens corrompidos em nome do ouro. Estes últimos, segundo as críticas que Chris dirigia a seus pais e seu modo de vida, são representantes do sistema de valores erguido em torno do dinheiro. Seus pais se sacrificaram muito para subir na vida e, como acontece em todas as famílias, não deixavam de adular o valor de suas conquistas, no caso em termos de poder aquisitivo. O filho negou-se a ganhar dinheiro, insistia em que o ouro não media nem provava o valor de ninguém. Já a natureza, esta sim pareceria uma juíza legítima e a ela ele se entregou.”
Frankenstein: o filho queixoso
2018 encerrou, ano estranho, não por acaso ano do centenário da publicação da primeira versão de Frankenstein, escrito por uma das primeiras crias do feminismo, a jovem escritora Mary Shelley. Essa história ainda nos diz muito. Neste momento em que tantos exigem de uma figura paterna o que ela nunca pôde dar, em que tantos tomam decisões em nome dos mesmos ressentimentos que moveram o monstro, talvez seja hora de reler esse mito literário. Aqui, trechos do nosso livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, publicado em 2010.
“Lembra-te de que fui criado por ti;
eu devia ser teu Adão,
porém sou mais o anjo caído. ”
O nascimento de Frankenstein
Tão popular como um monstro do folclore, Frankenstein nasceu na literatura, no livro Frankenstein ou o Moderno Prometeu, de autoria de Mary Shelley, uma jovem inglesa de 18 anos. O fato é que decorridos quase dois séculos, todos ainda sabem quem ele é. Podem não saber exatamente detalhes da história original, pois esse personagem ultrapassou muito as páginas do romance de Shelley, mas algo de sua essência continua reverberando em uma época tão distinta daquela que o viu surgir. Isso faz dele um dos mitos literários da era individualista, ao lado de Fausto, Robinson Crusoe, Dom Juan e Dom Quixote; ou seja, são personagens que nasceram em livros, mas já habitam a imaginação popular.
Essa novela nasceu de um desafio literário realizado por um grupo de amigos: isolados pelo mau tempo durante umas férias, Mary Godwin Shelley, seu marido Percy Shelley, junto com os amigos Lord Byron e John William Polidori, lançaram-se a escrever histórias de horror para divertir uns aos outros. Dos convivas, foi a jovem Mary a que mais seriamente cumpriu a tarefa. O primeiro livro saiu em 1818, mas em na sua terceira revisão, em 1831, é que se estabelece o texto clássico tal qual foi traduzido em várias línguas.
Como era comum na literatura da época, principalmente entre aqueles romances que caíram em gosto popular, a história lança mão do recurso das cartas, misturadas ao relato em primeira pessoa do protagonista: Dr. Victor Frankenstein, estudioso de ciências naturais, o homem que descobriu como dar vida à matéria morta.
A novela começa pelas cartas do capitão de um navio que rumava para o Polo Norte para sua irmã, contando uma estranha aventura que lhe acontecera. Nessa paisagem inóspita ele se deparou com o Dr. Frankenstein, e o recolheu em seu navio mais morto do que vivo. Ele lhe contou a triste história da fabricação de um monstro e sua missão de persegui-lo e destruí-lo. Como o trajeto do navio lhe convinha e estava fraco para continuar a caçada sozinho, o doutor segue a bordo e morre após terminar seu relato. A maior parte do livro consiste nessa história, transcrita pelo capitão, do nascimento do monstro, o destino trágico de criador e criatura, finalizando com um pedido de Frankenstein de que, em caso de sua morte, alguém se incumbisse de eliminá-lo. Na cena derradeira, Walton ainda tem um encontro com a criatura que subiu ao navio para o último adeus ao seu criador. O monstro parte, prometendo dar fim à sua própria existência.
Frankenstein teria decidido revelar sua triste sina para que o navegante não se deixasse destruir pela sua ambição de atingir o Polo, como ocorrera com ele anteriormente. No derradeiro fim, aquele que, como veremos, não conseguiu ser pai para ninguém, que perdeu tudo e todos, restando só o maior dos seus erros, entra em nossa história em uma posição paterna: a do sábio que aconselha o aventureiro, tentando ensinar-lhe a viver. Enfim, como nunca antes, ele consegue fazer um derradeiro gesto de cunho paterno. A história do monstro e do seu criador, ambos conhecidos pelo mesmo nome de Frankenstein é a história do quanto esse homem sofreu para que esse simples diálogo pudesse ocorrer, nem que fosse apenas à porta da morte.
Depois de escutar Frankenstein, o capitão desiste de sua obsessão por atingir o Polo Norte. A conquista do polo, feita quase um século depois desse livro, em 1909, já era meta de aventureiros que queriam marcar seu nome na história, indo até onde nenhum homem ainda chegara. O Polo Norte tem uma mística própria, serve de símbolo do fim do mundo, de ponto de orientação, pois é para lá que a bússola aponta. Talvez seja essa mesma lógica que faz do Polo a moradia de Papai Noel, um lugar extremo e ao mesmo tempo central, orientador. Se boa parte da queixa que perpassa o livro é a de que vivemos desorientados, que não existem referências paternas sólidas, de que o pai nunca fornece um norte, não deixa de ser irônico que seja justamente próximo desse eixo do mundo que ocorra o encontro entre Frankenstein, seu monstro e o viajante que se tornará o porta-voz de sua história.
Conforme seu relato, Victor Frankenstein foi primogênito de uma importante família genebrina e aos 17 anos, quando se preparava para sair de casa e frequentar a universidade, perdeu sua mãe. Junto da família vivia Elisabeth, adotada pela família quando ambos tinham cinco anos e eles se tratavam como primos. Porém, apesar do vínculo familiar que o ligava à moça, a mãe pede em seu leito de morte que eles se casem, e é a essa noiva que o coração do rapaz estava entregue. A perda da mãe, embora já não fosse uma criança, o deixa desconsolado, com muitas questões sobre a morte e pouco disposto a aceitá-la. Victor já possuia curiosidades científicas, e uma vez na universidade em Ingolstadt, volta-se para as ciências naturais, mas com uma ênfase muito particular: seus estudos são norteados pela obsessão à qual vai dedicar a vida, que é vencer a morte. Essa sua inclinação particular o afasta dos seus pares, por isso acaba conduzindo sozinho as pesquisas mórbidas a que se entrega. Ele estuda os mecanismos da morte, a putrefação e norteia-se pela sua crença de que poderia revertê-la ou impedi-la.
Na história escrita por Mary Shelley não há detalhes sobre a fabricação da criatura, a maior parte deles foi acrescentada pelas versões posteriores, principalmente as cinematográficas, que relançaram a história em novas inflexões. Shelley apenas cerca a gênese de mistérios e de discursos filosóficos, nos faz crer que o Dr. Frankenstein domina a ciência moderna, mas não dispensa a tradição alquimista antiga. Após o frenesi que domina sua vida através de anos de pesquisas, ocorre o esperado “nascimento” de um corpo de mais de dois metros, composto a partir de restos de cadáveres. Mas o ser por ele criado, desde o momento em que abre os olhos, desafia seu criador como algo bem maior do que um experimento científico.
Paradoxalmente, ao invés de comemorar a vitória da ciência sobre a morte que ali se consagrava, a conquista do objetivo que consumira suas forças até ali, o cientista ficou tomado pelo horror. Ele considera que a origem do pavor que sentiu emana dos olhos mortiços do espantalho que acabara de animar. Após realizar os procedimentos necessarios para a animação do corpo que construira, viu “abrir-se o baço olho amarelo da criatura (…) seus olhos desmaiados, quase da mesma cor acinzentada das órbitas onde se cravavam”, descreve ele. A partir daí, o cientista caiu imediatamente em uma mistura de sono e desmaio, na qual sonhou que estava beijando Elisabeth, mas ela se transformava no cadáver decomposto de sua mãe.
Após esse sonho, acorda apenas para ver a criatura que já estava em pé, ao lado de sua cama, contemplando-o: “seus olhos, se é que assim podiam ser chamados, estavam fixados em mim”. Em uma inversão de papéis, desta vez é o criador que desperta e encontra sobre si o olhar do “cadáver demoníaco ao qual tão desgraçadamente eu havia dado a vida. Nenhum mortal seria capaz de suportar o horror daquele rosto. Uma múmia revivida não seria tão horrorosa quanto aquele destroço. Eu o contemplara antes de terminar meu trabalho; ele era feio, porém, quando aqueles músculos e articulações passaram a se mover, ele se tornou uma coisa que nem Dante poderia ter concebido”. O horror do cientista parece ser um fato naturalmente inspirado pela sinistra imagem de sua criação, cabe a nós compreender a fonte desses desencontros de olhares.
Assim que pôde, Frankenstein fugiu do local, abandonando o monstro à própria sorte, e nos dias em que se seguiram caiu enfermo, em estado de inconsciência, sendo amparado pelo seu melhor amigo que justo chegou para encontrá-lo. Por isso, a formação da criatura que vai progressivamente aprendendo a compreender o mundo, a pensar, a falar e até a ler se dará em total isolamento, de forma indireta, isenta de qualquer tipo de olhar que lhe dê suporte e reconhecimento. O monstro tudo vê, mas nunca pousaram sobre ele quaisquer olhos que não o quisessem matar. Para ele, que era um corpo inerte, abrir os olhos equivale ao nascimento, significou estar vivo. Porém, no princípio de sua existência ele provocou o desejo de que ela não tivesse acontecido. Isso é ainda pior do que ser rejeitado ao nascer, a criatura invoca no criador o horror, o impulso de negar esse fato. Victor Frankenstein renega o que fez, arrepende-se.
Desde a primeira centelha da vida de sua criatura, o cientista não lhe desejou mais que a morte. Pior, pois matá-lo talvez não fosse tão difícil, desejou que seu experimento não tivesse dado certo. Mais do que matar o monstro,Victor gostaria de eliminar sua obra, mas isso era impossível. Mesmo que a criatura tivesse sido destruida ao despertar, o cientista continuaria perseguido pelo seu feito. O rastro de violência que segue o monstro é somente a encarnação dessa culpa pela descoberta da reversão da morte. Após este ato de negação da morte, o Dr. Frankenstein não faz mais do que reencontrá-la. Aliás, a morte o persegue, encarnada no monstro, que elimina todos seus seres queridos. Enquanto isso progride, Victor não consegue matar seu monstro, em uma mistura de impotência com vacilações, como se a destruição só pudesse se alastrar após semelhante experiência.
Mas de onde vem essa mudança de rumo tão brusca? Uma pista pode ser o pesadelo que Dr. Frankenstein teve depois do “nascimento” do monstro: “… tive a impressão que segurava em meus braços o cadáver da minha mãe; um sudário envolvia-lhe o corpo, e eu via os vermes rastejando pelas dobras do pano”. Esse sonho não seria tão revelador se não estivesse ligado ao que acontece imediatamente, ele desperta e o monstro o está contemplando, tentando falar e tocá-lo. Ele se desespera e foge. Na sequência do texto há uma continuidade entre a monstruosidade do corpo da mãe, por estar morta, e a do monstro, passando de um horror a outro, e é o horror da morte que está no fundo. Em outros momentos da história já intuíamos que obsessão do cientista por vencer a morte era fruto do luto malsucedido da perda de sua mãe, e aqui é a visão da mãe morta que retorna em sonhos quando ele finalmente “vence” a morte.
A educação do monstro
Depois de ser abandonado por Frankenstein, o monstro deixa o laboratório e aprende a alimentar-se, abrigar-se e a decodificar suas percepções. Solitário e sorrateiro, sobrevive às intempéries isolado dos seres humanos, que sempre que lhe pousam os olhos gritam, fogem ou o apedrejam. Em uma ocasião, ocupa um esconderijo ligado à casa de uma família constituída por um ancião cego, seu filho e filha. Eles acolhem uma estrangeira, noiva do rapaz, e lhe dispensam uma série de ensinamentos, desde a língua e as letras, até literatura, ciência, política, filosofia. Em segredo, escondido e espiando por uma fresta, o monstro apropria-se das lições e torna-se letrado e pensante. Grato pelo que indiretamente aprendia, ele lhes dispensava pequenos favores sempre oculto pelas sombras.
Quando se sente suficientemente forte, sai de seu esconderijo e apresenta-se ao cego, seu professor involuntário, para demonstrar-lhe sua gratidão, esperando ser aceito pelo grupo. A conversação com o velho vai bem, mas se interrompe quando o filho entra no recinto, o vê, e o costumeiro comportamento de agressões e fuga se repete. Só que desta vez a criatura, que se sentia muito ligada aos seus benfeitores indiretos, sofre e se vinga, colocando fogo na casa que eles haviam deixado para trás em sua fuga.
Entre as roupas que saíra vestindo do laboratório de Frankenstein, o monstro descobre em um bolso o diário do cientista, onde se encontra narrada em detalhes a aventura de sua origem. Lê com horror: “neles está relatado tudo o que se refere à minha origem maldita. […] Encontrei minuciosa descrição de minha odiosa figura. […] Maldito o dia em que recebi a vida! Exclamei cheio de agonia. Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado?” Mary Shelley criou nesse monstro um ser filosófico que em sua reclusão havia feito várias leituras, entre elas O Paraíso Perdido, de Milton. Portanto, ele já se comparara com Adão, ao qual invejava a proteção recebida pelo seu criador. A epígrafe do livro contém uma citação de Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para que me arrancasses das trevas?”.
A revolta contra o criador principia-se aí, quando reflete sobre os motivos de seu desamparo e solidão. Para o monstro, ele não estava à altura do gesto de originar a uma vida e no decorrer da história o fará pagar caro por isso. A intenção de dar-lhe origem, como fica claro nessa epígrafe, partiu do criador, portanto ele precisa responsabilizar-se por ela, pois o monstro, como um filho qualquer, não pediu para nascer. Inicialmente a mágoa não mostra o potencial destrutivo que assume quando ele tem a desilusão com essa família do pai cego, pois mais uma vez é rejeitado por aqueles de quem esperava alguma filiação. Trata-se de uma renovada experiência de frustração, na qual novamente aquele de quem espera uma adoção não pode olhar para ele.
Parte então em busca do criador, a quem culpa pela sua desgraça. Tendo localizado, através do diário, a cidade onde residia a família Frankenstein, ele se dirige para lá em busca de vingança. Assim que teve oportunidade, estrangulou o irmão menor de Victor e colocou a correntinha do falecido no bolso de uma criada da família, que foi enforcada injustamente, considerada culpada pelo assassinato.
Após esse crime, ocorre um encontro entre Frankenstein e o monstro no qual este lhe conta sua história e reclama do abandono. Em troca de deixá-lo em paz, exige que lhe seja fabricada uma companheira, sua Eva. No início, o cientista chantageado, aceita, mas quando a está concluindo e se vê frente a mais uma obra sinistra, se apavora e a desmancha em pedaços, o que deixa o monstro ainda mais furioso. Mais adiante, ele também matará o melhor amigo e a amada do criador, em plena noite de núpcias. O monstro não se contenta em destruir Frankenstein, quer secar-lhe a linhagem, salgar sua terra, fazer dele alguém tão solitário e ímpar como ele próprio. No final, voltamos ao ponto de partida do romance, onde criador e criatura vão aos extremos do mundo um no encalço do outro, sem conseguir eliminar-se mutuamente. “Tu, meu criador, me detestas e me abominas, a mim que sou criatura tua, a quem te achas ligado por laços só dissolúveis pelo aniquilamento de um de nós. Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? Cumpre teu dever para comigo, e eu cumprirei o meu para contigo e o resto da humanidade.”
A demanda não poderia ser mais clara, é uma mágoa contra seu pai, exigindo-o a assumir a responsabilidade sobre sua presença no mundo. São centenas de páginas de exortação para que o cientista se responsabilize, de alguma forma pague pelo abandono e rejeição da sua criatura. O monstro é um filho que acredita ter direito à acolhida e orientação por parte daquele que considera seu pai: “eu aprendera pelos seus papéis que você era meu pai, meu criador. A que outra pessoa poderia eu recorrer senão a você, que me dera a vida?”
A condição irreversível da paternidade é um dos pesadelos da função. Para a mãe, o uso de seu corpo por parte do feto já se incumbiu desse trabalho de convencimento de que o filho passará a ocupar espaço para sempre na sua vida. Já o pai, irá descobrindo isso aos poucos, convencendo-se, muitas vezes de forma dolorosa, de que seu destino passou a ser inseparável daquele que gerou. Observamos que quanto mais paranoide o homem for em relação a isso, mais seu filho tenderá a tornar-se um pesadelo, um perseguidor, exatamente como ocorreu com a criatura de Frankenstein. A paternidade dita biológica, não assumida espontaneamente, comprovada por exame genético, é a versão jurídica desse pesadelo. Nesse caso, um homem se descobre eternamente ligado a um filho que ignorava, renegou ou nunca desejou.
Nas inúmeras adaptações da obra que se seguiram, inicialmente no teatro e depois nas telas, a criatura de Shelley perdeu o direito à palavra. Os longos discursos de ressentimento e cobrança deram lugar a um monstro tosco, abrutalhado e balbuciante. Mas em quase todas perdurou esse impasse inicial, no qual o cientista se horroriza frente à sua obra, desfalece e abandona-o. O monstro vaga solitário, incompreendido e acaba reagindo a tanto desamparo com raiva e sede de vingança. O cerne do mito, portanto, pode ser entendido a partir da criação e abandono de um filho, que por isso torna-se monstruoso; mas também o pânico causado pelo ato de originar um ser é uma das fontes do horror contidas nesse mito literário que atravessa os tempos.
As mutações do monstro
Mary Shelley teve um encontro feliz com uma ideia que sintetizou um feixe de fantasias muito úteis a seus contemporâneos e a muitos que ainda estavam por nascer. Assim que ela publicou seu livro, ele foi transposto para o teatro, com imenso sucesso de público. A partir dessas adaptações teatrais algumas novidades somam-se e modificam a história original. A história dessas versões demonstra, conforme Hitchcock, que “certos elementos permaneciam constantes: um ser criado horroroso e de estatura desmedida, a presença de raios e eletricidade nos acontecimentos da história e a relação psicológica íntima entre criador e criatura. Ao mesmo tempo a história já começara a agregar novos elementos, estranhos à versão de Mary Shelley, muitos dos quais vinculados tão fortemente que sempre aparecem desde essa época: um monstro incapaz de articular palavras, um assistente de laboratório desastrado, uma multidão irada em busca do monstro e um final cataclísmico no qual a criatura e o criador perecem juntos. O público devorava avidamente essa história de monstro, contada e recontada, remodelando-a muitas vezes”. Essa descaracterização tanto da solidão e isolamento do cientista, quanto, e principalmente, da criatura, que no romance é tão discursiva, não irritou a autora. Pelo contrário, ela ficou sensibilizada pela comoção da plateia, que parecia entender o espírito de sua obra. A partir de então, o livro original, que segue nas prateleiras após quase dois séculos, assim como a personagem emudecida pela sua versão dramática firmaram-se enquanto um mito literário.
Um mito não tem autor, ele pretende estabelecer a história da origem das pessoas, do mundo, dos objetos e extrai sua veracidade da provável fonte sobrenatural da narrativa. Seu uso busca amalgamar o máximo de elementos possíveis, pois ele não existe para gerar interrogações, mas sim para dar explicações, para fechar questões. Para tanto, um mito engloba em seu interior todos os elementos úteis que puder angariar: referências históricas, fantasias comuns, elementos do cotidiano de cada época. O mito é uma tentativa de dar explicações através de histórias para o que é frequentemente inexplicável, e se não se ocupasse das fronteiras do nosso conhecimento, não seria necessário recorrer a argumentos fantasiosos para dar conta do assunto. Já os mitos literários são assinados, sua fonte é humana e claramente estabelecida, porém eles possuem a mesma característica de imantar elementos de um momento histórico, da forma como se estrutura a sociedade e a intimidade dessa época, e combiná-los com fantasias atemporais, gerando uma trama que pode ser transposta a outros lugares e outras épocas. Uma história se torna mito quando ela se transforma, permanecendo ela mesma, em um aparente paradoxo.
Mitos literários, portanto, são histórias que transcendem esse ponto de partida claramente autoral, para caírem em outras mãos, porque o público consome versões que vão transformando-a a seu gosto, ele se apropria delas para fins de elaboração de suas questões e as vai transformando sutilmente. Mais do que a corrupção de um original, se estabelece uma harmonia entre um cerne essencial da narrativa que se conserva, enquanto cenários e personagens se modificam, que é justamente o que nos autoriza a pensar que estamos lidando com algo maior do que o livro de um autor.
O monstro é órfão de mãe, e filho da relação de um homem com a ciência, é a criatura incompreendida e abominada por todos, que persegue seu pai-criador até o fim da vida de ambos, essa é sua essência. Embora ele tenha sido privado das palavras que usava para acusar Frankenstein, sua imagem continua angariando pena e horror ao mesmo tempo, pois ele é a encarnação de um erro, além do retrato do abandono.
O horror provém do ato monstruoso que parece ter sido a própria criação e o desafio à morte que ela pressupõe, nisso estão igualados o cientista e seu monstro, enquanto o feito de um e seu produto resultante que é o outro. Por isso, em todas as versões joga-se com a alternância das duas personagens que, para efeitos populares, acabaram atendendo pelo mesmo nome, criador e criatura, já que o monstro fica identificado à loucura onipotente que lhe deu origem. Por outro lado, a fuga do cientista que deixa a despreparada criatura à mercê de um mundo nada acolhedor produz uma empatia inesperada no público, que acaba penalizando-se daquele que tem tudo para ser apenas rejeitado.
O livro recorre a um arrazoado filosófico, que associa o monstro ao bom selvagem, um ser ávido de receber acolhida e uma formação, ao qual a rejeição transformou em obstinadamente mau. Na obra de Shelley a empatia com a criatura é racional, discursiva: escutamos dele todos os esforços que fez para parecer-se com os humanos, que ele observava de longe e escondido, assim como seu anseio por ser admitido entre eles e o sofrimento cada vez que era reduzido a ser a abominável representação de um ato inaceitável. Ele queria ser humano, mas os maus-tratos o lembravam de que não passava de uma forma artificial de vida infundida a pedaços mortos, assustador como um fantasma. Ele buscava compreensão e só encontrava exorcismo. Já no teatro, ao ver substituídos por rudimentares balbucios, gestos e olhares os complexos raciocínios com que defendia sua essência originalmente boa, que ele acusava de ter sido corrompida pelos homens, só lhe resta a identificação com uma criança que ninguém aceita como filho, que sequer é admitida como alguém da nossa espécie, para obter a simpatia e a compaixão do público.
A imagem corporal de alguém composto de pedaços costurados, cujo resultado tem aparência monstruosa, tem precedentes na teratologia. Conforme Warner, “a monstruosidade participa do desajeitamento da irregularidade, de suas classificações e harmonias imperfeitas, e encena a aberração por não conseguir permanecer consistente nem mesmo consigo próprio”.
A falta de um olhar materno que unifique as partes desconexas da criatura é o que empresta um caráter monstruoso à sua imagem. Em menor escala, observamos inúmeras distorções na imagem corporal de sujeitos que se enxergam como disformes, abjectos, com partes que devem ser ocultadas ou corrigidas. Em geral, nesses casos trata-se de pessoas em cujas vidas ocorreu algum desencontro radical ou uma importante falta de sintonia com a mãe. Mas a dismorfofobia aparece muito frequentemente na adolescência quando um outro olhar, agora como corpo sexuado, o desafia, portanto sua causa pode estar na confirmação desse corpo que o olhar materno colou.
O livro Frankenstein foi escrito por uma órfã de mãe. Talvez por isso não surprende que a história seja a de um filho, que contando apenas com a figura paterna, só possa oferecer ao olhar alheio a imagem da falta de harmonia de seu conjunto. Mais uma vez, vemos aqui retratadas as limitações que atribuímos à Função Paterna. O pai pode nomear, mas carece do poder do olhar que unifica. Criador e criatura, portanto, fecham os olhos um para o outro.
A sobrevivência dessa história, e sua transformação em mito, está ligada ao fascínio gerado por esse ato profano de criação, que já alimentava a popularidade das histórias sobre o Golem. É uma instigante fantasia sobre a prepotência de um homem que tentou negar a morte, descobrindo um método para impingir vida à matéria inerte, que quis superar deus, a ciência de seu tempo e prescindir das mulheres para dar origem a um ser vivo. Filho de tanta pretensão masculina e de nenhuma mulher, essa criatura involuntariamente acaba representando a bancarrota da onipotência de um pai, de quem o desmaio, a fuga e o arrependimento mostram a fragilidade. Esse homem que quis tanto, negando a própria morte com seus atos, é tão mítico quanto seu enorme filho desamparado. Na verdade, um não existe sem o outro, por isso eles partilham o nome. Ele quis tudo e ficou com nada, por isso foi, no livro, totalmente destruído.
Frankenstein também é o protótipo do “cientista louco”, personagem que ganhou espaço a partir dessa época. Desde então tentamos saber o que resta da sabedoria, já que a igreja e a tradição não mais respondem por ela. Através dessa figura do cientista louco nos mostramos nostálgicos, negamos a ele a totalidade de saber e o castigamos pela ousadia. A ciência é a herdeira imediata da expectativas que depositávamos na religião: que seja fonte de segurança, antídoto contra o desamparo. Se até mesmo a fé, com toda a sua convicção, foi abandonada, por que a ciência, com suas certezas sempre transitórias, teria nossa adesão garantida?
A personagem do cientista louco, marginal em relação aos seus pares e capaz de superar o conhecimento de seu tempo, reflete nossa ambivalência. Confiamos que sua genialidade ultrapassará as fronteiras do que já se sabe, mas como a condição transgressora e revolucionária de suas descobertas é punida, é como se, ao mesmo tempo, déssemos também um voto de desconfiança. Supomos que suas invenções, que o desgarram do já estabelecido, vão produzir algum tipo de desequilíbrio: ele ficará transtornado, ou sua obra será de alguma forma perigosa, ou ainda trará algum tipo de alteração no mundo cujos efeitos serão nocivos. No caso de Frankenstein ocorreram essas três consequências de sua descoberta.
Em seguida ao surgimento do livro, e ao longo de um século, as peças de teatro foram dando contornos novos ao monstro, até que, em 1910, a criatura de Shelley encontrou um novo meio para expandir sua influência. A Edison Film Company, pioneira na história do cinema, o recrutou entre as primeiras personagens do recém-nascido cinema mudo, com direito a inéditos efeitos especiais. Mas foi a versão cinematográfica de 1931, com direção de James Whale, o momento crucial para a difusão de Frankenstein e a sua posterior transformação em mito. A imagem que vem à cabeça de todos, de um ser de cabeça quadrada com eletrodos no pescoço, cheio de cicatrizes mal costuradas, usando roupas pequenas para seu tamanho, é a do ator Boris Karloff maquiado para esse filme.
Whale estabeleceu o cânone estético e muitos dos aspectos que hoje consideramos intrínsecos à criatura. Como já era de hábito, seu monstro se limita a grunhir e movimenta-se como um grande bebê, já que o ator usava ferros nas pernas e pesos nos pés para que seu andar ficasse vacilante. Os olhos profundos e negros de Karloff, com a maquiagem pesada nas pálpebras eram frequentemente enfocados, fazendo do monstro um rosto triste a ser olhado para angariar nosso afeto. Se para o cientista, na narrativa de Shelley, o olhar de sua criatura o apavorou por serem olhos mortiços, no cinema isso foi substituído por uma expressividade que redunda no contrário: é desamparo que constatamos nos olhos caídos de uma criatura que clama por adoção. Whale também retoma a tradição teatral do ajudante corcunda e sinistro, e coloca grande ênfase no roubo de cadáveres, o que no original é apenas uma alusão.
A temporalidade indefinida em que a novela é tecida está bem ilustrada nesse caso e ajuda aos contornos míticos que a personagem ganhou posteriormente. No filme, tudo se passa em uma aldeia genérica europeia onde o passado e o presente, o arcaico e o moderno se confundem. Embora sofra as influências de seu tempo, ele é um romance não datado e mistura um saber científico de ponta com alquimia medieval. O laboratório do Dr. Frankenstein, um lugar que congrega todos os instrumentos científicos da época de Shelley, situando-os dentro de uma torre gótica, é uma boa imagem dessa síntese. Aliás, o cânone dessa imagem foi estabelecido pelo filme de Whale, mais de um século depois, pois no livro, o laboratório é apenas é um lugar sinistro.
Embora nos forneça imagens definitivas, o filme simplifica a trama. Temos no início o Dr. Frankenstein obcecado pelas suas investigações sobre a fronteira entre a vida e a morte. Ele rouba cadáveres para prosseguir suas investigações solitárias, afinal a academia não iria tão longe como suas experiências. Um erro que ele não se dá conta vai ser fatal para sua criação: enviado ao necrotério para obter uma parte fundamental da criatura, seu ajudante trapalhão rouba o cérebro errado, não de uma pessoa normal, mas de um psicopata.
Depois da criação, o ansiado resultado da pesquisa científica a que havia se entregue com tanto entusiasmo é como sempre renegado pelo criador horrorizado que adoece. Enquanto isso, o novo ser é deixado preso, aos cuidados do ajudante corcunda que o chicoteava impiedosamente. Acossada pelos maus-tratos, a criatura devolve-lhe a brutalidade e o mata. Como o monstro já nasce então fadado ao fracasso pelo seu cérebro doente, neste caso pouco se espera dele a não ser uma carreira criminosa, portanto, não há dúvidas de que ele deva ser eliminado. Quando fica consciente do seu erro, o Dr. Frankenstein e seu professor, que curioso do resultado havia comparecido para observar a experiência, concordam que ele deva ser destruído. O criador é resgatado por sua família que o recupera da saúde abalada pelos anos de esforço dedicados à ciência, enquanto se prepara o esperado casamento com Elisabeth. Enquanto isso, o professor fica no laboratório incumbido de eliminar o monstro, que já revelara sua natureza criminosa. Porém, a ciência é como uma sereia cujo canto enfeitiça o bom senso, e ele não resiste em fazer algumas últimas experiências no corpo anestesiado da criatura. Óbvio, para o bom andamento da trama, que ela acorda, mata seu algoz e foge.
Na sua escapada comete mais um crime, mata uma menina que encontrou ao acaso no caminho e brincou com ele. Desta vez, como da anterior, não há maldade: ele é inexperiente, tosco, incapaz de entender a lógica da brincadeira e comete um erro fatal: a menina jogava flores na água para que boiassem e convida-o para fazer isso com ele; entusiasmado com a brincadeira, ele atira a menina na água, para que ela também boie como as flores, e ela se afoga.
O cérebro do psicopata utilizado na construção do monstro, que supostamente teria desencadeado toda maldade não é convincente, sua carreira de assassino mais parece uma sucessão de trapalhadas do que de maldades. O monstro mata da primeira vez porque é brutalmente maltratado. Sua segunda investida é praticamente em legítima defesa, pois iria ser sacrificado e se salva matando o professor. Quanto à menina, trata-se de um mal-entendido lógico, do tipo que fazem as crianças pequenas. Elas colocam-se em risco em função da combinação perigosa de curiosidade com ignorância, tal como a que teve a criatura, que quis experimentar se a menina boiaria como uma flor. Quando a vê afundar, desespera-se e tenta retirá-la das águas de forma atrapalhada e inútil, resgatando apenas seu corpinho sem vida. O monstro porta-se como um bebê gigante, sem saber falar, sem entender direito o mundo, andando desajeitado, vaga mais perdido e digno de pena do que evocando terror.
O pai da menina leva a filha morta para a aldeia, que estava em festa, reunida para comemorar o casamento do Dr. Frankenstein. A cena da chegada do cadáver da criança, nos braços do pai desesperado, que vai estragando a festa por onde passa e transformando os aldeões em uma multidão de linchadores, é antológica da história do cinema. Quando ele chega lá todos compreendem o que aconteceu e saem à caça do monstro.
Trata-se de cinema para as grandes massas e essa história trágica precisa terminar bem: o monstro tem que ser eliminado, pois ele é um equívoco científico e o casal de protagonistas, o cientista e sua noiva, deve dirigir-se para um final feliz. As intermináveis conversas e encontros entre o monstro e o Dr. Frankenstein, que fazem o núcleo do romance de Shelley, estão eliminados. Além disso, agora ele se limita a uma visita a Elisabeth, sendo que nesse encontro, ao invés de ser assassinada apenas desmaia. Antes do cerco final, a criatura encontra seu criador e após uma luta ele carrega-o consigo para um moinho, mas o cientista escapa. O desfecho é previsível. O monstro acaba acuado em um velho moinho, em cujo interior ele é queimado vivo. Trata-se de um bem-sucedido exorcismo coletivo. Mas que demônio se expurga nessa cena?
Qual mito?
Se Frankenstein é um mito, a pergunta é qual seria, no sentido de sua filiação, ou então ele seria um mito novo? É claro que podemos ver traços de outros mitos nele, como o de Doutor Fausto, por exemplo. Afinal vemos uma equivalente paixão pelo conhecimento no Dr. Victor, já o monstro de Shelley lembra Mefisto pela eloquência, mas por certo essas comparações não dão conta da totalidade do tema, são pedaços de um todo mais complexo. A própria autora tenta nos convencer que se trata de um Prometeu moderno, isso está inclusive no título da novela. Provavelmente no sentido de uma insubmissão ao estabelecido, pelo roubo dos poderes e saberes celestes, e do castigo por tal ousadia, ou ainda de uma revolta contra uma autoridade despótica. Mas nada disso dá uma explicação da totalidade, apenas acrescenta aspectos. Nem a ideia de um Pigmalião sinistro, como já foi lembrado, nos traz muita luz, é apenas uma referência.
Certas interpretações colocam Frankenstein na categoria do Duplo. Parecem certas, pois não faltam elementos que apontem nessa direção: a criatura, como não tem nome, acabou sendo conhecida então com o nome de seu criador. De certa maneira, eles compartilham o significante, sugerindo que redundem no mesmo significado que se desliza entre eles, se completa. O monstro não tem infância, ele nasce adulto, possui quase a mesma idade de seu criador, não há uma geração que os separe e o fim de ambos é desaparecer no Polo Norte.
A criatura só se reporta ao seu criador, suas conversas são o centro do drama. Só o Dr. Frankenstein praticamente vê seu monstro. Cada um à sua maneira, os dois estão fora do sistema, ele não é aceito pela comunidade científica, por suas crenças, enquanto a criatura é fora de tudo, de uma genealogia, de um lugar no mundo. Os dois têm sérios problemas com a alteridade que o sexo coloca, são celibatários, os casamentos não se consumam, pois um mata a noiva do outro. Existe a espera de uma mulher, mas ela nunca chega de fato. Ou seja, nada de sexo, nem para nascer nem para nada. Os dois acabam ilhados em si mesmos, um fixado na destruição do outro.
Se de fato essa história pode nos dar então uma radiografia dos dilemas de uma alma partida, ela nos deixa sem respostas a uma questão central do romance: tanto a criatura pede o tempo todo que seu criador seja um pai para ele, que lhe dê um lugar e lhe diga por que o fez, quanto Dr. Victor foge várias vezes por não se mostrar à altura dessa empreitada. Nesse quesito a questão do duplo nos deixa sem respostas, não faz sentido ver apenas um homem acusando a si mesmo por não conseguir encontrar sozinho respostas para suas inquietudes. Como alguém pode acusar-se de abandonar a si próprio, de não ter cuidado de sua infância e educação? Existe uma reiterada denúncia da falta de ascendência, da falta de transmissão de uma educação efetiva. O monstro pede um lugar e pede para ser amado, é por ter esses direitos negados, dos quais ele se julga merecedor, pois não pediu para nascer, que se torna malvado.
Mas o que a criatura pede a Dr. Victor? Sem nome para se fazer valer, em outras palavras, sem origem ou, ainda, sem um passado para reivindicar, o monstro é um sujeito pós-revolução francesa. Filho da ciência nascente, ele é mais um herói do individualismo, afinal ele é único e ilhado, não tem pares, é inédito, desenraizado e intelectualmente muito lúcido.
As interpretações em que lançamos a ideia do duplo são onde o drama se desenvolve quando a um aspecto da personalidade não é permitido aceder à consciência do sujeito. É a cisão da personalidade que cria o duplo, ou seja, uma parte não quer saber da outra, o duplo é o outro de si mesmo. Como no caso clássico de Dr. Jekyll e seu duplo, o monstro Mr. Hyde, o qual, como diz seu nome, é a encarnação da face escondida do médico. Ou ainda como temos em Oscar Wilde no Retrato de Dorian Gray onde apenas no retrato a face narcisista da personagem envelhece. O que ele não suporta da alteração que o tempo faz a seu corpo está jogado para fora, não é reconhecido. Essa questão de uma suposta cisão da personalidade não é o aspecto mais relevante em Frankenstein, embora de fato caiba ao seu monstro o trabalho sujo do mal. Entender o monstro como a parte recalcada de uma suposta agressividade homicida, ou a personificação da sua melancolia renitente, ou ainda uma tendência antissocial é uma possibilidade, embora não abarque todo o sentido da obra.
A nosso ver, o aspecto central de Frankenstein é a procura por um pai, no sentido de alguém que forneça um lugar na sociedade e na genealogia, pois justamente estava-se em um momento histórico em que o lugar de onde provem a autoridade paterna sofria profundas mudanças. Na época do nascimento desse mito, início do século XIX, a Europa assiste ainda aos desdobramentos imediatos das revoluções industrial e francesa, à queda de várias monarquias, enquanto a autoridade da igreja começa a sofrer fissuras. Além disso, a autora, Mary Woollstonecraft Godwin Shelley, é filha de dois importantes pensadores dessa época, sendo que sua mãe, falecida em consequência de seu nascimento, foi uma das primeira feministas da história. Educada por seu pai com uma liberalidade inédita para seu tempo, sem uma mãe para identificar-se, a jovem escritora tinha todos os motivos para compreender os sofrimentos de uma criatura ímpar, inédita e sem referências palpáveis no mundo em que vivia.
Ora, o pai, ou melhor, sua função na estruturação de cada indivíduo, também é marcado por isso. Em um tempo de tantos rompimentos, apenas ser filho de alguém já não possui o sentido de antes. O sujeito da modernidade não se faz mais pelo nascimento, por quem seria seu pai, mas pela sua trajetória, pelas suas escolhas, pelo que ele consegue fazer de sua vida. Somente no seguinte sentido poderíamos compreender pai e filho como duplos um do outro: irmanados no desamparo, eles se repetem no sofrimento do pai que se sente órfão do próprio pai, do filho que acredita ter um pai insuficiente, no desencontro entre o desejo e a realidade que caracteriza a função paterna.
Há uma lição que é repetida inúmeras vezes nos mitos: um homem não pode fazer o que é atributo dos deuses. Criar um ser do nada, fazer algo vivo da matéria inanimada ou ressuscitar mortos é atributo divino, se os homens assim procederem, com certeza farão isso de modo imperfeito e seus resultados serão monstruosos e se voltarão contra o criador. Temos com Frankenstein uma versão agora científica deste mito de criar ou prolongar a vida. Frankenstein é o mito da onipotência da ciência, transposta para uma suposta onipotência paterna. É o fracasso atribuido àqueles que hoje responsabilizamos por apontar a direção que devemos tomar. Em seu encalço caminharemos até o Polo Norte.
Cicerone do nosso passado (prefácio ao livro de Cláudio Moreno)
O encanto presente de textos de trinta séculos.
Poucos consensos são tão unânimes: uma segunda língua é fundamental. Os argumentos geralmente são práticos: os bilíngues conseguem melhores empregos e ganham mais, ou conseguem melhor conexão com o mundo globalizado. Certo. Mas isso fica muito aquém das vantagens cognitivas que o habitar outro universo linguístico nos proporciona.
Quando nos aprofundamos em outra língua, descobrimos o intraduzível. Damo-nos conta de que o quadro da realidade feito por outra língua é distinto. Às vezes isso é visível em coisas prosaicas, como a maneira que vemos as cores, ou em coisas mais complexas, como o modo que cada uma dá conta de sensações, ou a expressão de conceitos de um modo que não nos ocorria.
O desafio de traduzir instala uma questão essencial, nem sempre há correspondência, e esse é o melhor ensinamento da tradução. Ou seja, não existem conceitos abstratos partilhados universalmente, o que existe é a história de uma comunidade linguística e sua particular experiência de circunscrever o real. Cada uma delas faz isso à sua maneira, cada qual lê o mundo de uma perspectiva própria.
Essa mesma experiência amplifica-se ainda mais quando estudamos outra cultura e sua história. Só com a imersão em outra forma de entender o mundo, de como é ou foi viver nela os pequenos e grandes sonhos, podemos de fato olhar para a nossa modalidade e não tomá-la como natural. Cada grupamento humano tem o seu jeito de hierarquizar valores, de pensar a moralidade e os costumes.
Enquanto permanecemos monoculturais tendemos a ver nossa experiência como a única e óbvia, ainda que imperfeita, maneira de enxergar a vida e de nos conduzirmos nela. Apenas o estudo ou a experiência de uma cultura distinta da nossa possibilita chacoalhar o senso comum e desvelar a limitação da nossa compreensão. A ideia de que possa existir um único ideal para todos os homens, ou uma forma certa de levar a vida, ou ainda verdades gerais para conduzir a humanidade, tudo isso fica sem sentido quando múltiplas experiências humanas são confrontadas. O mundo deixa de ser um vetor evolutivo e torna-se um mosaico complexo.
Já nos primeiros mergulhos percebemos que para conhecer outra cultura é necessário coragem intelectual, suspendemos nossas convicções e vemos nosso chão de certezas ficar instável. Mas o aprendizado é inestimável, vale a pena a vertigem, pois é a única vacina segura contra o fundamentalismo, o extremismo, a arrogância intelectual, e a contagiosa tolice do nosso mundo, tão cheio de si, que confunde domínio técnico com sabedoria. Em síntese: conhecer bem uma segunda cultura também é fundamental.
A cultura da Grécia Antiga é a mais estudada do Ocidente, a que mais dispõe de fontes históricas e, ao meu ver, o seu estudo é o que oferece mais retorno intelectual e, ao mesmo tempo, como um brinde, mais encanto. Embora tenhamos todos uma porção grega, já que uma das nossas mais influentes raízes é helênica, a cultura da Grécia Antiga é muito distinta de tudo que nos tornamos. Suficientemente distinta para ser esse espelho invertido que nos proporciona um olhar para o presente que semeia dúvidas sobre nossas verdades; suficientemente próxima para um texto de trinta séculos nos comover com paixões que são como as nossas.
Nunca lembro exatamente quando me descobri grego. Coloco como marco arbitrário a leitura de As Histórias de Heródoto. Vivi esse livro como se fosse pessoal. Era a minha luta contra os persas, estava em cada batalha, lamentando as perdas, enterrando os mortos, vibrando com as vitórias. Sabia que ali fundava-se algo decisivo para a nossas civilização ser o que é. Nunca mais parei, creio que são uns 30 anos de dedicação a causa da Grécia. Li os clássicos e comentadores e tive a sorte, que aqui compartilho com vocês, de ter um amigo que nunca me deixa sem respostas para os detalhes e passagens obscuras desse universo fascinante.
Se você fizer como eu, escolher a cultura grega como sua pátria imaginária para se descentrar do nosso tempo e, só assim, perceber algumas das mais importantes tramas invisíveis que nos norteiam, aqui está um excelente guia desse labirinto. Poucos enfrentarão com sucesso os dez séculos gregos clássicos, sua longa e complexa história e sua ainda mais rica mitologia sem um cicerone erudito, e curioso. O professor Claudio Moreno há muitos anos vem ensinando com generosidade os mais importantes passos para quem se lança na odisseia de conhecer a magia da Grécia mítica.
A experiência deste livro e dos outros do autor, é mergulhar na Grécia antiga e nos seus comentadores. Ele se debruça sobre o passado para tentar descobrir quais as perguntas que os homens sempre se fizeram e como eles as responderam. O professor Moreno já passou por muitas das perguntas da vida e já se curou da arrogância dos que acreditam que existam as respostas certas, mas sabe que existe uma história dessas respostas, e é nessa sua variedade de experiências que encontramos a farta sabedoria que pode nos ajudar a construir a nossa própria conclusão. Em resumo, ele resgata no passado os fios que nos oferece para que possamos costurar as dúvidas que temos no presente. O resultado é que saímos de suas páginas com um olhar mais acurado sobre o nosso tempo, os nossos semelhantes e sobre nós mesmos.
Como o autor nos avisa, existe uma Grécia alemã, uma francesa, cada povo, cada comentador, faz a sua imersão e resgata as joias que lhe parecem melhores. Eu percorri muitas, algumas eruditas, outras populares, em poucas achei um tom tão didático sem perder o rigor e erudito mantendo o encantamento. Essa é a Grécia do professor Moreno!
PS: eu só fiz o prefácio em troca da promessa que depois de ter contado a Ilíada, no seu monumental Tróia, iria nos brindar com sua versão da Odisséia, Esperemos.
Livros impróprios ou pais censores?
A literatura nunca é perigosa, muito pior é o silêncio censor.
Pergunte a um professor de literatura do ensino médio qual é o seu maior dilema em aula e a resposta provavelmente será: quais livros devo sugerir para serem lidos e debatidos. Mas atenção, a questão não é que o professor não tenha suas escolhas e preferências, seus livros de estimação, o ponto é como não ferir suscetibilidades, principalmente dos pais da garotada e raramente dos seus alunos. Se o assunto é sexo o campo é sempre minado. O resultado é que os professores se autocensuram e escolhem obras menos polêmicas, enquanto os jovens precisam buscar informação sobre sexo em outros lugares. Geralmente em becos bem mais escuros e a sós.
Saber é poder e no que toca ao sexo, nessa idade, vale como nunca, por isso os adolescentes são tão ávidos por obras que lhes forneçam alguma informação. O desafio de sua vida nesse momento é fazer laços afetivos entre seus pares que os ajudem a se desgrudar do amor dos pais. Ora, sexo, erotismo e amor se confundem na cabeça do nosso jovem, ele está a mercê de uma certa fascinação e da supervalorizada expectativa que temos sobre a questão. Seria útil se houvesse um manual de instruções, ainda que fosse vago, impreciso, imperfeito. A questão é que, por sorte, os manuais não funcionam, seu alcance é limitado.
A leitura poderia ajudar, existem obras da literatura que não fogem da raia, que tratam da questão. Como essas raramente são adotadas, os jovens as descobrem sozinhos, ou no boca boca e as leem sem discussão, ou então só com o entusiasmo dos amigos. A literatura tenta ensinar aquilo que nem os pais nem a escola conseguem. Ela mostra como a vida é complicada, como nossos pensamentos que parecem anormais são corriqueiros. Ela nos deixa menos sós, não somos os únicos a sofrer de angústia sem explicação, há outros que se sentem perdidos e sem rumo, que fazem besteiras sem saber a razão. A boa literatura é o único espelho dos abissais que são a diversidade e complexidade humanas e sua tênue fronteira com a loucura. Ela ajuda a pensar certos comportamentos, fornece novas palavras para sensações enigmáticas, renova a linguagem corrompida pela fala materialista e burocrática da política e da propaganda, funda mundos imaginários para descansarmos do presente. A riqueza de um texto tem o dom de recriar a linguagem envenenada pela banalidade do pensamento obscurantista daqueles que sabem o que é bom para os outros. Ela não necessariamente nos salva, mas fornece boas pistas para achar o fim do labirinto da adolescência.
A literatura adoraria ter tanto poder formativo como acreditam seus censores. Especialmente no sexo, é bom esclarecer que ela não cria fantasias sexuais, apenas fornece cenários que enriquecem e polemizam certas questões. Ninguém vai se tornar pervertido por saber que isso ou aquilo se faz. As fantasias que comandam a vida sexual já estão construídas num adolescente, apenas ele não as explicitou, não as explorou. Confunde-se a descoberta da própria sexualidade com a sua formatação que vem da infância. Não é sem influência, mas é como colorir um desenho que já está feito.
Na mesma linha de raciocínio: recorte algo que existe na realidade e todos conhecemos, coloque isso num lugar público visível e está feita confusão. Pode ser um beijo gay, o sexo mais banal de um casal, um adolescente fumando maconha, enfim, desejos e comportamentos nem tão incomuns ou obscuros. No julgamento de quem censura, tudo deveria permanecer oculto, como se a exposição do já existente justificasse e legitimasse esse fato.
Os pensamento censor acredita que a literatura, a propaganda, a novela não são amostras das várias formas de ser, pensam nelas como autorização e convocação à imitação. Na verdade só cumprem a função provocativa que abre portas para discutir o assunto. A questão é: quem tem medo de uma discussão? A reposta é óbvia: quem não tem argumentos senão escudado na suposta autoridade dos que pretendem nos livrar da perdição. Esses mesmos que veem o público como uns desmiolados que só esperam um exemplo para seguir.
Com o acesso à internet, hoje disponível na maioria dos lares, qualquer jovem encontra pornografia, apologia às drogas, incentivo ao suicídio, e qualquer outra bestialidade imaginável. Mas o detalhe: ali ele está sozinho, sem um adulto, sem um guia que o ajude a discriminar o que serve do que é lixo, do que destrói sua sensibilidade e embota sua inteligência.
A adolescência é um momento sem bússola. Longe de seus antigos pais protetores, que com o fim da infância perderam seus poderes, melhor deixar que eles ao menos estejam perto de alguém que já tenha mais estrada na vida. Os mestres e seus livros podem ajudar a lidar com o peso das exigências do sexo. Confie nos professores de literatura ou nos professores e orientadores que não fogem dessas discussões em aula. Talvez eles não tenham a mesma opinião que você, mas é um adulto tentando uma ponte para ajudar neófitos a discernir o sublime do vulgar no açougue que o sexo pode vir a ser para nosso adolescente. Se evitarmos as obras sobre sexualidade e erotismo nos currículos, vamos deixar que o único professor de nossos filhos na educação sexual seja a pornografia.
Deuses e astronautas
A fé e os discos voadores
Lido aos 16 anos, Eram os deuses astronautas, de Erich von Däniken, marcou minha adolescência. Hoje discordo de suas teses, na época encaradas com seriedade. Jung dizia que a fé e os discos voadores funcionam como uma gangorra. Por isso, quando a religião perdeu seu prestígio, surgiram os extraterrestres, a contribuição magna do século XX para o menu de seres fantásticos que nos assombram.
Este livro era uma resposta aos sempre presentes enigmas da origem. Segundo Däniken, o que nos tornou humanos e nos fez chegar onde chegamos, foi-nos oferecido por visitantes espaciais. Eles teriam feito parte do nosso passado, mas nossos tolinhos antepassados os tomaram como deuses. Apesar do acerto em pescar as questões quentes sobre a humanidade, a saída proposta resvala na superficialidade, confunde história e mito, e não resiste a uma crítica dos pontos de vista da arqueologia, história e antropologia. Enfim, uma simpática maluquice bem articulada.
Quando vejo o surgimento de novos mitos, lembro da minha relação com essas teorias mirabolantes, que foram presentes em um momento da vida cheio de inquietações. São teorias pseudocientíficas, conspiratórias, mitologia rala, vendidas como revelação, frente às quais tenho um certo incômodo e ao mesmo tempo empatia, já fui usuário.
A internet não as inventou, mas potencializa uma série delas, como a farsa da viagem à lua, vacinas que causam autismo, a AIDS que fora criada em laboratório, entre tantas. História e ciência levam muito tempo para serem entendidas, mais trabalhoso ainda é a coragem para enfrentar o desamparo de viver sem pensamentos mágicos. Infelizmente, a ciência não substitui bem a religião no item conforto espiritual.
Já a maioria das teorias conspiratórias, mesmo que tornem o mundo e o universo mais assustadores, podem ser repousantes. Paradoxalmente, é pior suportar o aleatório, o incompreensível, a sensação de ser apenas poeira cósmica. Levar fantasias a sério economiza estudo, pensamento, biblioteca e principalmente angústia. Ainda por cima elas somam o charme do secreto e transgressivo: seriam uma verdade da qual os poderosos estariam mantendo-nos alienados, mas nós enxergamos além. Supor que somos enganados é tentador, pois contém a ideia de que tudo têm explicação, apenas estamos alijados dela. Qualquer teoria, mesmo capenga, é preferível ao vazio de sentido com que podemos nos deparar.
O céu ainda me causa assombro, mas meu firmamento, para meu azar, ficou menos povoado. Sobrevivo sem deuses, anjos e astronautas, a fantasia teve que procurar outras moradas, mas eles me fazem uma falta!
Geração Harry Potter
por ocasião do lançamento do último filme da série, artigo para a Revista Carta na Escola.
O observador desavisado pode pensar o fenômeno Harry Potter apenas como um investimento bilionário da indústria cultural. De fato foi, mas só depois de ter trilhado um caminho solitário, com tropeços e sem outro incentivo que não o de ter tocado o coração dos seus primeiros leitores. Foi na base de uma difusão boca a boca que esse livro, de uma autora estreante, conseguiu seus pequenos admiradores.
Claro, depois da história se provar viável, a mídia investiu forte e fez dela o que é: marco literário da ficção para jovens. Podemos inclusive falar que existe uma “geração Harry Potter”. São jovens que estão hoje ao redor dos seus 20 anos, que nasceram em torno da década de 90 e pegaram a onda quando chegavam à puberdade ou no começo da adolescência. Em razão de que outras marcas ideológicas entraram em declínio, tornou-se comum as pessoas se referenciarem e identificarem na condição de consumidoras de certas obras literárias. O universo que J.K. Rowling criou é sem dúvida uma delas, mas esse fenômeno é partilhado por fãs, até então mais velhos, de sagas como Star Trek, O Senhor dos Anéis ou Star Wars, a galáxia distante de George Lucas. As crianças que celebrizaram o bruxinho de Rowling, além de habitar esse complexo reino mágico, o acompanharam enquanto ele nascia, com cada livro e filme aguardados ansiosamente. Ou seja, trata-se de uma geração e uma série que cresceram juntas.
Mas o que podemos aprender com o fenômeno Harry Potter? Se ele realmente fez eco em tantos é impossível que não traduza questões que estão postas para esses jovens. Uma resposta para esse encontro feliz entre obra e geração está no mais óbvio: a busca da magia, mas entender o que significa essa magia é algo que requer um esforço a mais.
Max Weber notava que a marca mais forte da modernidade foi o desencantamento do mundo, no sentido do pensamento mágico que revestia o cotidiano, a cultura e o raciocínio dos antepassados. O declínio das religiões e o avanço do pensamento científico reposicionaram o homem ante o cosmo. Mas, infelizmente, as promessas do iluminismo, da ciência, da razão, falharam.
Acreditávamos num mundo racional, no qual, graças ao avanço das ciências, as paixões humanas perniciosas estariam dominadas, mas o que realmente vivemos foram duas guerras mundiais que devastaram a Europa, supostamente o lugar mais avançado. Acrescentem-se a isso Hiroshima, Auschwitz, totalitarismos e a Guerra Fria, com sua possibilidade de um desastre nuclear em que todos perderiam. O século XX é um cemitério de promessas, como então seguir confiando em tais ideais? Assim, o apelo ao mágico dessa série ganha contornos de uma crítica nostálgica ao nosso tempo. A sobrevivência da barbárie tornou inegável que ainda existem fatos obscuros nos homens e na sociedade, que a ciência e a razão não conseguem explicar suficientemente. Representando uma forma lúdica de lidar com esse lado sombrio, a literatura nos restou como o único espaço possível da magia.
Acompanhando os acontecimentos do mundo dos bruxos e as batalhas de Potter, fica claro que Rowling está em busca de circunscrever o mal. Afinal, uma das questões que está em aberto é sobre a essência do mal. O que ele seria? Como entendê-lo e principalmente, como contê-lo? Haja feitiços suficientes para neutralizar e tentar reparar um século tão trágico como o XX!
Especialmente no Brasil, temos uma dificuldade com a ficção de inspiração mágica. Nossa literatura é essencialmente realista, com poucas exceções, e nosso pensamento político lhe faz eco. A ideia de fundo é: como, com tantos problemas sociais, poderíamos reforçar o pensamento mágico, já que este nos afastaria da nossa difícil realidade?
Por sorte os jovens não aceitaram essa prevenção absurda, que não capta a essência das possibilidades da fantasia. O mundo fantástico permite outra forma de apreensão da realidade e não um afastamento. Quem imagina o mundo encantado de Rowling como refúgio idílico onde encontraremos as bondades do Papai Noel vai se sentir traído: ele é mais assustador e perigoso que o nosso. Não existem concessões, meio termo, nem ilhas de sossego. O que encontramos lá é uma luta política contínua, com traições, mortes e golpes baixos a todo o momento. Os heróis dessa saga sofrem sem tréguas e a mensagem é que só o engajamento e a disputa corajosa podem resolver seus destinos e os daquele reino.
Apesar de usar o acervo mitológico clássico com tempero gótico, é muito provável que o cerne mítico que está embutido em Harry Potter seja indissociável da experiência europeia com o nazismo. Filosoficamente, a Segunda Guerra é uma ferida não supurada, ainda não a entendemos em todos os seus mecanismos. Acredito que a geração de agora, por meio dessa obra, a recebe de maneira indireta e mítica, por ser a primeira que não foi tocada diretamente pelos seus tentáculos de horror, perplexidade e luto.
Harry Potter trilhará o mesmo caminho de Peter Pan, Pinóquio, Alice, Dorothy e tantos outros, figurando entre os heróis infantis de todos os tempos. Seu sucesso provavelmente não se repetirá com tanta força nas próximas gerações, primeiro porque tem o sabor do ethos da que passou e também porque, por se tornar um clássico, essa história será conhecida e recomendada pelos adultos. As crianças gostam de compartilhar com seus pais as histórias que as encantaram, mas também gostam de ter um universo onde elas saibam mais, onde elas sejam mestras dos caminhos. Para a primeira geração, foi uma experiência de independência: seus pais não eram iniciados nos assuntos do bruxinho, já para os filhos desta, talvez ele se torne personagem de uma história familiar.
Há algumas décadas, Umberto Eco ponderava sobre o que aconteceria caso um professor universitário pedisse a seus alunos que fossem tão dedicados a um assunto qualquer quanto eles eram devotos ao mundo enciclopédico de Tolkien. Ele não seria seguido e certamente arranjaria uma briga e tanto. Talvez, o que possamos dizer sobre isso é que esses universos mágicos nos apaixonam também porque não somos obrigados a entrar. A porta está aberta e espiamos por suspeitar que ali vamos nos divertir, nos assustar e ter contato com dimensões do humano que só a literatura nos proporciona.
Publicado na Revista Carta na Escola
14 setembro 2011
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