A bombacha e o kilt

No mundo moderno o mito adquiriu uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos.

A história não poderia ser mais triste. No distante século XIII, o príncipe Llywelyn sai de casa e deixa seu filho pequeno sozinho. Por sorte seu cachorro Gelert cuida da casa. Voltando não encontra o filho. Apavorado observa que o cachorro está com a boca, o focinho e o pelo empapados de sangue. Num impulso de raiva mato o cão assassino. Pouco depois encontra o filho que estava escondido e, a seguir, um lobo morto. Desolado se dá conta que entendeu tudo ao avesso. Matou o fiel cão que salvara a vida de seu filho. Cheio de remorsos, enterrou com honras o cão para reparar seu erro. Quem visita o condado de Caernarvon no País de Gales ainda pode ver o marco funerário.

A história é boa, nos ensina a pensar sempre com calma, não se deixar levar pelas aparências. O único problema dessa história é que, com pequenas variações, é conhecida por

vários povos do mundo todo, e claro, sempre contada como verdadeira, com local e personagens definidos. Essa coincidência nos coloca uma pulga sobre a autenticidade do relato. De fato, a placa existe, mas a história é mito. A lápide foi feita por um hoteleiro proprietário do Royal Goat Hotel em Beddgelert e dizem que a lenda (adaptada) também seria de sua autoria. Os turistas adoraram a história que ganhou até um poema famoso onde se conta o incidente. Esse fato diz muito de nós, sempre tendemos a acreditar mais nos mitos, que são mais ricos, mais sábios, mais elevados, do que na triste e pálida história. Entre o mito e a histórias tendemos a preferimos o mito.

Creio que qualquer pessoa medianamente informada já sabe que ontem, dia 20 de setembro, a data gaúcha por excelência, celebramos um mito que inventamos para nosso deleite. Saudamos uma revolução que não foi revolução, cantamos uma vitória que foi uma derrota (forçando muito, um empate em casa), e assim por diante. Criamos uma mitologia gaudéria com elementos díspares, geralmente com pouco contato com a realidade vivida. Mas qual seria o problema? Afinal, tantos povos fazem isso, o folclore é sempre uma criação a posteriori que edita para melhor nas nossas mazelas históricas.

E existem micos maiores, Eric Hobsbawm no seu livro A Invenção da Tradição demostra, com exaustiva pesquisa histórica, que o Kilt, o saiote escocês que é o símbolo da identidade escocesa, nunca fora usado antes de ser “descoberto” como o traje típico. Toda aquela arenga de cada tecido (tartan) lembrando um clã é pura farofa. Portanto, o que perderíamos cultivando a nossa pequena pátria imaginária, que pelo menos usa bombacha para tapar as pernas? Há quem vá mais longe nesse argumento do mal menor, ou do fato inofensivo, quando lembra do imaginário caipira atual do interior de São Paulo. Lá se copia o pior dos cowboy texanos. Logo, dizem, poderíamos estar pior, tendo que aturar rodeio com chapéu de vaqueiro americano. Isso sim seria o fim da picada.

Portanto, mito por mito, melhor contar com algo feito em casa, certo? O problema é que a questão é um pouco mais complexa. Não vivemos sem um relato histórico, tanto que se não o temos, inventamos. Precisamos de origem, de pais fundadores, de raízes que não nos deixem soltos no rio da história. Aqui entra o gaúcho, como nosso ancestral primitivo, simples, franco, rude, mas leal e honrado.

Na sociedade tradicional o mito era o horizonte do pensamento. Mais do que uma coleção de histórias, como hoje nos chega, o mito era uma forma de interpretar o mundo, portanto uma forma de pensar e de processar informações. No mundo moderno o mito adquiriu a função oposta: ele é uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos. Impede que possamos ver o nosso passado diferente das formas fixas que os tradicionalistas elegeram.

Se o mito fosse só para dias festivos não haveria problema algum. Assim é o Carnaval e o20 de setembro tem algo dele, mas aqui com a fantasia única e regrada. Não uso Carnaval como metáfora, mas como conceito mesmo: como um tempo em que se suspende o presente para que se possa viver uma fantasia, e que se dilua, ao longo de seus festejos, a hierarquia social. No Carnaval cada um vive seu personagem e adquire o valor que imagina que tem ou que gostaria de ter. Um tempo de exceção para sonhar em voz alta e esquecer a estreita e pálida realidade.

O problema, no nosso caso, é que nossa fantasia de origem gaudéria se desborda para o ano inteiro. O que seria uma festa, um mito fundador, torna-se ideologia. Usamos o mito para criar auto-estima, mas também para pensar os fatos que se nos apresentam hoje. Mas fica a questão: como uma fantasia pastoril do século XX, idealizando o XIX, pode nos fornecer chaves para entender a complexidade do XXI? Tentamos, mas o fato de usar bombacha e idealizar nosso passado não nos poupa dos dilemas do nosso tempo. A aceleração da história nos coloca desafios constantes, o novo nos invade e pede que o decifremos para não sermos engolidos. Não temos opção de não viver nossa época. Todos esses movimentos de criação de identidades regionais fazem parte duma tentativa de barrar a globalização, de se defender do novo. São reafirmações do local frente ao global, e do passado frente ao presente.

A questão não é abrir as portas do Rio Grande ao que vem de fora de modo a perder a identidade regional. Penso o contrário: em como fazermos nossa própria versão de modo a responder ao que a ocasião nos pede. Nesse sentido, a ideologia gaudéria não soma, na verdade nos deixa mais frágeis. Como todo mito, ideologia ou religião, seu aparato conceitual faz uma leitura simplória do mundo. Oferece boas soluções para um mundo que já desapareceu e não ajuda a enxergar melhor o presente multifacetado que é o nosso verdadeiro desafio.

O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante, o pala o protege do minuano, mas não dos ventos inclementes da história atual. Essa ideologia não nos ajuda, serve apenas como barreira imaginária ao que vem de fora, e nos fornece apenas armas ilusórias para uma batalha real, que é fazer desse estado um lugar realmente melhor.

4 Comentários
  1. Assis Aymone permalink

    Parabéns!
    Pela primeira vez vejo uma critica sem agressões.

    …. Sabedoria intelectual significa entender o processo como um todo e cada fato ou fenômeno como parte e com seu respectivo tamanho e peso, ou dimensão! Oq os pernósticos pedantes, meros criticistas idiossincráticos fazem é aumentar os pontos que os ligam as emoções recalcadas, tentando desfazer a história e a grande rede, juntam-se a eles os pseudo-intelectuais de plantão… gerentes da pasteurização critica…

  2. Ricardo Bins di Napoli permalink

    Prezada Diana,
    concordo contigo que o mito do Gaúcho pode estar nos atrapalhando. Há autores como o Dacanal que já expressaram isso há um tempo atrás em época de eleições.
    Concordo com ele também.
    Tu concordarias comigo também que ir contra o mito tornado ideologia tem sido difícil de ser combatido, inclusive entre as pessoa que se dizem de esquerda e progressistas.
    Os políticos recorrem sucessiva e incessantemente a ele para mobilizar apara isso ou aquilo. Isso é uma lástima. Houve um tempo que se quis quebrar isso. E não houve um que quis encarnar o próprio Paixao Cortes só porque tinha bigode.
    Um abraço,

  3. Ogilson de Almeida permalink

    O texto nos faz refletir, de alguma maneira. Mas considerando que o ser humano, tem historicamente criado mitos por fatos, heróis por conveniência, poderemos da mesma forma, expandir esse conceito à religião.
    É a velha maneira de se auto proteger, afirmando que o mal, o ruim, etc… está do outro lado.

  4. Gibs permalink

    Meu irmão, esta eu entendi. O pai (os intelectuais pensantes) saem de casa e deixam o
    menino (o povo gaucho) aos cuidados do cachorro (o que se tinha eram os CTGs) quando o lobo (a ideologia americana) ataca. O pai resolve esculhanbar os CTGs quando decobre que foram os americanos vorazes que iam atacar o filho e no fim se arrepende.

    Conclusao. Não tem tu vai tu mesmo, e regue com muito NPK o solo sobre o cachorro morto pra nascer ceara farta.

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