Ponto de vista
Olhar é uma arte.
No filme de Cortina de fumaça (1995), escrito e co-dirigido por Paul Auster, há um personagem, representado por Harvey Keitel, que é o dono de uma pequena tabacaria de bairro. Ele tem por hábito fotografar diariamente sua própria esquina, sempre na mesma hora e desde a mesma perspectiva, sem jamais falhar, ao longo de mais de 10 anos. Guarda essas imagens em álbuns, que registram as variações da constância.
Os lugares são como um rio, que nunca seria o mesmo pois as águas que contemplamos já estão de passagem. A paisagem também flui. Nas fotos desses álbuns revelam-se os detalhes sutis, somente perceptíveis aos conhecedores do cenário. Na contramão do olhar habituado, que no mesmo enxerga somente isso, neste caso a curiosidade se preserva.
Quando viajamos, contemplamos muito mais enigmas do que o cérebro tem condições de catalogar. Tampouco adianta fotografar, tive uma paciente que ao voltar de uma viagem, dessas excursões estilo sobe e desce de ônibus, trouxe para a sessão seu álbum de fotos (na época usava-se isso); indaguei sobre uma daquelas imagens e ela ignorava o que era. A explicação soava engraçada: “fotografei para olhar depois”. Quantas vezes fotografamos tentando reter algo do que nos escapa naquele excesso? Vã ilusão. O olhar do viajante é como o das crianças que em geral não decodifica a situação e não raro entende tudo errado.
História oposta é a da minha avó com sua janela que se abria para uma escola secundária. Já muito idosa, teve seus movimentos restritos, o que era bem difícil para uma senhora rueira. Pelo menos ela nunca perdia o espetáculo da hora da saída do colégio, pois já conhecia os jovens, os agrupamentos, os namoros. Para vários deles já tinha uma história em sua cabeça e inclusive algum apelido. Quando a visitava ela me chamava para partilhar seu hábito, me apresentava suas versões para aquelas vidas desconhecidas que faziam sua literatura visual.
A vantagem é que não há lugar imune à diversão dos olhos. Que o digam os antigos, os quais raramente se distanciavam do lugar onde haviam nascido. Conheciam seu território com uma intimidade que hoje ignoramos, o que é uma perda para nós. Todos gostam de exibir-se contando viagens incríveis, de preferencia a territórios exóticos, gabando-se de ter ido onde os interlocutores não foram. Dependendo da prosa do viajante, uma simples passagem pela mais parte mais descarnada e periférica de uma cidade, se bem contada, pode render uma história bem mais interessante do que uma excursão à selva africana. Esta última pode ser até, acredite, soporífera.
Vale a pena nunca esquecer que a capacidade de enxergar o encanto independe do movimento do corpo, transcende a paisagem propriamente dita. Sempre teremos um ponto de vista, como o dono da tabacaria de Auster, desde onde o que poderia parecer igual tem chance de nos surpreender. A vida é uma história, nosso cérebro é um cineasta, os olhos a câmera, mas o pensamento tem que ser um diretor sensível. Da minha janela vê-se a cúpula de uma igreja visitada por pombas e gaviões.