Vida descomplicada
por uma rotina sustentável, pelo menos no fim de semana…
Minha rua é cheia de gatos que costumam ser pouco amigáveis, apesar da generosidade dos vizinhos que os alimentam. Intocáveis, escondem-se e fuzilam com o olhar quando alguém passa. À exceção de um deles, chamado pelo seu dono simplesmente de Gato, que é enorme e afetivo. Seu humano não exatamente o possui: um belo dia abriu a porta e o Gato entrou, apoderando-se de mais esse domínio.
Sábado de sol, a caminho do armazém há um felino atravessado na calçada. Minha vizinha Vera, que me observa a alguns metros de distância, avisa: olha só a preguiça do Gato tomando sol! Nossa cumplicidade de rua garante que saibamos que Gato, neste caso, é nome próprio. Mais meia quadra, o dono da banca lamenta que ainda não chegou a revista encomendada, o farmacêutico me convida a apreciar a reforma em seu estabelecimento.
No “meu” mercadinho, o guardador de carros, um sujeito muito tatuado que parece ter tido dias melhores, entrou para comprar cigarros. Está discutindo com o dono do estabelecimento sobre os povos que mais fumam. Seriam os orientais segundo ele. O rapaz ruivo do balcão comenta que vendeu mais batata doce assada do que esperava num dia quente, pego as últimas. Pessoas sozinhas, quase todas idosas, comprando uma ou duas unidades de fruta, a fila do caixa anda devagar, nas sacolinhas sempre cabe muito papo. Na volta, mais encontros, mais conversa fiada, chego em casa como se tivesse tirado férias. Simples assim.
Quando me convidaram para escrever aqui, à guisa de provocação, tive vontade de chamar minha coluna de “Vida Complicada”. É de fato assim que a vejo: psicanalista de profissão, fico o dia todo lidando com as inquietudes, com a parte enigmática das vidas dos que me consultam. Mas, ao longo dos três anos em que habito a revista, a vizinhança dos meus colegas colunistas e jornalistas acabou cumprindo missão similar à do meu bairro. Uma e outra têm o dom de iluminar as pequenas coisas, emoldurar a tranquila felicidade que podemos percorrer com uma sacola de compras pendurada nos braços.
Nestas páginas nossa cabeça acaba revelando-se também sustentável. Não há fórmulas mágicas, ninguém ostenta prazeres e virtudes no grito, como é comum nas redes sociais. Aqui franqueza não significa exposição, a tristeza, os temores e vacilações são legitimados. Partilham-se tentativas artesanais de solução dos problemas, quando há alguma. É um tom que também busco na minha clínica, onde o alarmismo, a indignação, o derrotismo, o ressentimento e a arrogância só entram para serem desmascarados.
Pensando bem, esta vizinhança de revista está arejando meu modo de escrever. A Vida até pode ser vista de modo Simples, ensolarada como uma caminhada de sábado. É do seu olhar que o verão, as férias, o novo ano que está por chegar, tirarão sua luz.
(coluna da edição de dezembro de 2014 da revista Vida Simples)