Em defesa das trevas
A escuridão esconde segredos e belezas.
Nas noites da infância, costumava percorrer o corredor que conduzia ao banheiro na expectativa de encontrar um fantasma específico: o do meu pai, que morreu antes que pudesse conhecê-lo. Não havia noite em que eu não levantasse aterrorizada pela possibilidade desse encontro, mas na esperança de vê-lo ao menos uma vez. É na escuridão que moram nossos fantasmas imprescindíveis, mas também nela se escondem malfeitores reais e imaginários e, principalmente, os monstros das crianças.
Por vezes os pequenos têm terrores noturnos, não conciliam o sono paralisados pela sensação de veracidade das próprias fantasias ou pesadelos. Em função disso, muitos pais evitam contar histórias que possam alimentar esses temores. Tentando protegê-las, na verdade as estão privando de dar uma forma ao que ameaça. O desconhecido, aquilo que não tem uma narrativa que o contextualize ou carece de contornos definidos, em vez de medo produz angústia, que é o pior dos sofrimentos. Em todas as idades encontramos o hábito de dormir com alguma luz ou a televisão ligada. Só que a meia luz produz sombras muito mais assustadoras que o breu. Quem, numa noite de insônia ou ao adormecer, não enxergou a silhueta de um vilão em um cabideiro com roupas?
A escuridão é a morada do medo, mas também do encanto. Lembro de uma velha senhora que reclamava da luz elétrica, dizendo que a achava muito feia. Parece ranço de pessoa idosa, mas não é. Eclipsados pela praticidade das noites que parecem dias, esquecemos do valor das trevas. Excetuando alguns lugares e ocasiões em que a iluminação é uma arte, a luz preenche tudo, coloniza o espaço. São noites brancas, em que se suprimem os focos, as sombras e se apagam as estrelas.
Ao conduzir-nos pela casa utilizando uma luz manual, pode ser uma vela, lanterna, ou mesmo a luz emitida pelo telefone, tornamo-nos iluminadores. Somos como esses artistas que fazem a graça de uma peça ou de um filme através do uso da luz. Eles editam, dirigem e emolduram nosso olhar, vale lembrar que a luz só ressalta se tiver o contraponto da escuridão. Quando focamos à frente, o negrume fecha-se às costas, ameaçador. Então precisamos usar outros sentidos: o tato que percorre as paredes e adivinha o contorno dos objetos, a audição que adivinha presenças e mede distâncias. Na falta da luz desenvolvemos os dons de orientação dos cegos e dos morcegos.
Até hoje, com a desculpa do banheiro, caminho pela casa à noite. As trevas ainda me gelam a espinha, mas não consigo abrir mão de buscá-las. Quando o medo me supera lanço mão do interruptor, que com sua luz chapada, imensa, dissipa todos os temores e também com eles o mistério, a beleza.