Saudades do que nunca tive
Da importância dos trens para que pudessemos existir psiquicamente ao longo dos trajetos.
Andei mais em trens imaginários do que reais. Não tive a sorte de crescer no tempo do trem. Nas andanças da vida conheci barcos e aviões, mas minha quilometragem foi mesmo de ônibus. Criança enjoadinha, literalmente falando, jamais cheguei ao destino com a roupa limpa e uma cara que não tivesse ficado verde. Só de olhar para o ônibus já sentia a chegada das náuseas.
Não estamos falando de ônibus espaçosos, esses que parecem barcos de cruzeiro sobre rodas, mas sim do transporte rodoviário dos anos sessenta. Eram veículos arredondados, pequenas janelas que mal abriam, sempre acima da linha dos olhos das crianças. Além disso, os passageiros fumavam sem parar, ali dentro mesmo.
Não me conformo em pensar que eles vieram para substituir os trens, que tinham movimentação cadenciada e previsível, eram espaçosos e havia como caminhar dentro deles. Além disso, a paisagem movia-se de modo em que os olhos podiam acompanhar a chegada e partida de uma imagem. O trem nos nina e nos conta histórias, com seu balanço e o filme da janela. Depois disso, transportar-se tornou-se supersônico, rápido, até os trens já não fazem tchu-tchu, embora ainda tenham nos trilhos um fator de estabilidade que os estômagos frágeis agradecem.
Sei que deixamos de viajar de trem pela imposição do petróleo, pelo culto da velocidade, pela popularização dos carros com a individualização de tudo. Mas gosto tanto de percursos que lastimo a eficiência de que passamos a dispor. Há uma espécie de meditação associada ao tempo demorado da chegança, à alternância entre o olhar sugado pela paisagem e o pensamento regido pelo cérebro descansado. Quando não estamos dirigindo, quando os trilhos impõe um caminho e uma velocidade únicos e a locomotiva lá na frente puxa os vagões passivos, podemos repousar das decisões e disputas, pois ninguém precisa ultrapassar o outro. Embarcamos na melancolia do que deixamos e na expectativa do que nos espera, o percurso cria um lapso em que essas duas pontas se desconectam. Uma parte importante de nós existe nesse intervalo de tempo.
Gosto de sonhar com um mundo de trens cadenciados e sem pressa. Não estou me referindo evidentemente a vagões lotados onde se viaja como bichos rumo ao frigorífico. Sei que hoje providenciamos esse momento de alheiamento da pior foma: suportamos os engarrafamentos fugindo para dentro dos dispositivos eletrônicos, refugiando-nos na música, na comunicação compulsiva, porque não há nada na janela. Editamos uma trilha sonora ou improvisamos uma companhia para enfrentar o tempo inexistente do trajeto congelado. A paisagem do trem não carece desses improvisos, é a mesma para todos, fica disponível para que cada um possa percorre-la com seus pensamentos.
Presos em lugares-nenhuns-que-se-movem, sonhamos com férias e viagens, onde nos dispomos a chegar a algum-lugar-para-contemplar-a-paisagem. Se algo ainda me enjoa é tanta claustrofobia. O mundo ficou menor, no sentido de que é possível percorre-lo com uma eficiência incrível, real ou virtualmente, mas nosso olhar nunca foi tão estreito.
Diana ! Lendo você, me lendo também. cadência de um ritmo gostoso, harmonioso, redondo, como as grande rodas que um dia giraram o mundo…o que nos faz pensar que essas rodas existem e continuam no nosso corpo. Cabeça do fêmur e acetábulo, um encontro glorioso, para se sentar, divagar, devagar, tomando um vinho e deixando a paisagem passear….
Muy buena la del tren!!! Recuerdo mis viajes Bs As Iturbe…y la vuelta: 20 horas en “camarote” con cama, desayuno…ventanas/ojos que entrelazan lo interno con el paisaje, arrullos del movimiento, vagón comedor, cafés,tiempo que aparece infinito del que disponer para pensar y ensoñar, tiempo totalmente propio en el espacio generoso del tren que se ofrece blandamente a ser recorrido sin perderte en el infinito…Hermosa nota!!! Gracias!!!