A cristaleira
Entrar na vida é como mudar-se para um imóvel usado, por vezes precisamos botar abaixo para fazer do nosso jeito, por outras vale a pena valorizar o passado que vem embutido em cada lugar.
No recinto vazio do apartamento recém comprado reinava ela. Reluzente, portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna. Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel imóvel, embutida, perfeitamente encaixada num vão que parecia ter nascido para recebe-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia, minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou e ponderou que então teríamos que pensar algo para colocar naquele buraco, quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto como foi que lhe questionei a permanência.
A cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento era, na verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta, por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era atestar a presença anterior daquelas pessoas. Imóvel usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao nascer, costumamos herdar várias “cristaleiras”, metaforicamente falando, mas passamos a vida obstinados em ser originais. Nem que seja na nossa própria existência queremos ser os primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como no caso da minha cristaleira involuntariamente herdada, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos embutidos das gerações passadas estamos fadados a carregar. Ficar completamente contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra. Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Como assinalou minha tolerante arquiteta, ao implicar com todas as heranças, você terá que arcar com os custos de preencher as lacunas do que erradicou. Já que na vida nosso orçamento de forças costuma ser limitado, é de bom alvitre decidir em quais renovações investir os esforços: não haveria uma cozinha que sem reformas seria impossível de usar? Tem certeza que a prioridade é a cristaleira?
Há heranças indesejáveis, como a mania de limpeza da sua vó, o humor infantil do seu pai, podem ser os antepassados perdulários ou que emprestavam o que não tinham, os sovinas, marcados pelo egoísmo, as mães severas ou desligadas, os pais ausentes ou policialescos, grandes ou pequenos dramas que recebemos ao nascer, embutidos no nome de batismo. Quem sabe vale a pena focar no que realmente obstrui o caminho, como uma família marcada pelas repetidas falências, ou pelos desentendimentos entre irmãos, ou pela incapacidade de mover-se do lugar de origem? Em caso de decidir no que investir o orçamento da reforma, chame um bom psicanalista. Esta profissão costuma entender da arquitetura da mente.
Em nossos tempos de gente que se orgulha de “ter feito a si mesmo”, heranças costumam ser incômodas. O valor maior está nas escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo “novo”, em cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos colocar um traço próprio em geral estamos sendo escravos de modismos e propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do local, da família, de uma cultura, além de não garantir nenhuma singularidade ao morador. Por que transformar o lindo parquet do nosso passado num frio porcelanato sem nenhuma história para contar?