Mãelévola
Amai-vos umas às outras, esse é o novo feitiço da ficção infantil!
“Fujam da enlouquecida paixão, lembrai-vos como os homens vos têm por frágeis, frívolas, facilmente manejáveis e na caça amorosa estendem armadilhas para prender-vos em suas redes como animais selvagens.” Essas palavras de alerta foram escritas em 1405, por Christine de Pizán, na pré-história do feminismo.
A nova vítima dessa sedução é surpreendente: a própria Malévola, a terrível bruxa da história de Bela Adormecida, caiu nessa cilada, apaixonou-se e pediu a seu amado que “fosse suas asas”. Até agora ela era apenas uma figura poderosa e desagradável do reino mágico, responsável pela maldição de sono da princesa.
Os Estúdios Disney fizeram em 1959 uma versão desse conto que emprestou uma imagem definitiva para esta personagem, transformada numa atraente vilã, de aparência gótica e olhos irresistíveis. No recém lançado Malévola, um lindo filme, eles bancam uma virada na história clássica: agora a bruxa é soberana das fadas, reina em harmonia com a natureza, sem hierarquia nem autoritarismo. A descoberta do amor a fragiliza e, sem escutar o alerta de Pizán, encontra a destruição nos mesmos braços em que pretendia repousar. O ressentimento amoroso é o motivo da maldição, pois a princesa é a filha daquele que literalmente lhe cortou as asas.
Em Malévola os homens não prestam: são abjetos, beligerantes e traidores, quando bons são servis ou insignificantes. Pelo que vemos, a ficção infantil caiu aos pés dos encantos femininos. O grande desafio desta história é, como sempre, um encontro amoroso, mas esqueça o príncipe: amai-vos umas às outras, essa é a ideia. É a mesma inovação que começou comValente e segue com Frozen, neste caso entre duas irmãs.
A disputa entre as mulheres pelo amor do pai, assim como por ser escolhida a mais bela entre as mulheres, faz parte da tradição dos contos de fadas. A entrega, seu único destino, alimentou essa competição, tantas vezes desleal. De fato, para mães, assim como para os pais, é uma derrota fenecer enquanto o sucessor floresce. Mas há algo a legar e o orgulho dessa herança compensa pelas perdas. Sem valor social, às mulheres essa contrapartida até agora estava vedada.
Através da vilã, embelezada por Angelina Jolie, somos levados a supor que a maldição é o romantismo que enfraquece, corta-nos as asas e leva-nos à vilania. Livres dele, seríamos portadoras de uma visão de mundo mais justa e harmônica do que a que foi alimentada pelo machismo. Essa promessa é uma novidade nos novos contos de fadas. Neles as mulheres resgatam o apreço pelas antepassadas e umas pelas outras, o que ainda é um feitiço necessário.
Eduardo Coutinho, o cineasta psicanalista.
A arte de perguntar, no cinema de Eduardo Coutinho e na psicanálise.
O psicanalista é um anfitrião que recebe pessoas para conversar. Sua arte consiste em colocar as perguntas certas, essas que levarão o assunto para um território novo, de preferencia surpreendente para o paciente. Mas é muito difícil compreender o que faz um psicanalista sem submeter-se à experiência de uma análise. Há livros técnicos, assim como literatura onde pacientes e analistas são personagens, onde pode se matar um pouco da curiosidade. Para tentar entender esse ofício, pelo menos aproximativamente, recomendo assistir “Edifício Master: um filme sobre pessoas como você e eu” (2002).
Este janeiro cheio de perdas deixou-nos sem um poeta do documentário: Eduardo Coutinho, autor desse filme. O Master é um prédio em Copacabana: 276 pequenos apartamentos, onde vivem aproximadamente quinhentas pessoas. A equipe foi visitando os moradores e colhendo suas histórias, das quais Coutinho selecionou algumas para compor o documentário. Estruturalmente idênticos, abrem para uma maravilhosa diversidade quando a equipe bate à porta. O cineasta não é invasivo, mas faz perguntas difíceis, sempre atento aos pontos delicados da conversa, centro de seu interesse.
Os entrevistados abrem o coração, choram, cantam, recitam, gargalham, se queixam, lembram glórias, contam grandes histórias sobre pequenas coisas e, inevitavelmente, fazem um balanço da sua vida. Muitos são velhos, mas há alguns jovens e todos têm uma trajetória para contar. Uma moça que morava sozinha e lamentava a perda do zelo dos pais e avós, conta a história de uma voz de criança que ela escutava através do respirador. Embora curiosa, não conseguia tomar a iniciativa de descobrir o rosto daquela pequena, cuja vida espreitava. Provavelmente essa voz representava a criança que ela estava deixando de ser.
Emoldurada pela câmera toda vida torna-se grande. Aliás, é exatamente isso que fazem os escritores: transformar o prosaico em poético, a vida comum em evento literário. Meu espaço, o consultório, também é sempre idêntico. Ambiente invariável, como são os apartamentos do Master. O que muda são as vidas que passam: relatos de minúcias, queixas, ressentimentos, bravatas, vergonhas, sonhos noturnos e diurnos. Através das histórias que escolhe para contar, ao longo do dia cada um que entra vai ocupando meu espaço a seu modo. A escuta do analista é atenta aos momentos sensíveis do relato. Por vezes é a história de um trauma, um acontecimento marcante, por outras, a vida encontra suas encruzilhadas em sutilezas, como a voz de uma criança no respirador. O cenário pode ser fixo, variadas são as pessoas.
O documentário é uma arte na fronteira entre a ficção e a realidade e Coutinho dedicou-se acima de tudo aos relatos, por vezes longe dos fatos. Pouco importa: sofremos menos dos fatos e muito mais dos pontos de vista, da forma como narramos a realidade. No cinema de Coutinho, assim como no consultório do psicanalista, realidade e ficção são indissociáveis.
Kryptonita
O passado sempre continua nos apedrejando
Tive todas as oportunidades de emburrecer com a babá eletrônica. Fui uma criança apaixonada pela telinha pequena e imprecisa, em preto e branco. Ansiava muito pela hora da tevê começar e me sentia miserável ao término da programação. Dessas extensas jornadas televisivas restam muitas memórias, mas uma evocação é insistente: a Kryptonita, proveniente dos desenhos animados do Superman.
Trata-se de uma arma que era usada contra seus super-poderes pelos inimigos, a única que o colocava fora de jogo. Aproximar dele um fragmento dessa pedra, um mineral verde luminoso, deixava-o fraco, indefeso. O mais enigmático é que a Kryptonita era uma das raras coisas provenientes do planeta natal do herói, Krypton. Do mesmo lugar de onde se originaram os poderes veio o calcanhar de Aquiles. O fragmento de ficção, e da pedra, sobreviveu na memória por portar uma verdade e um alerta: há um lugar, nossa origem, que determina o que somos, mas é também de onde nossa derrota pode se insinuar.
Não posso omitir a cilada do meu inconsciente: meus dois sobrenomes, tanto materno como paterno, contém a palavra “stein” (pedra, em alemão), ou seja, meu passado é uma “pedreira”. Mas não só o meu, também o seu, o de todos. A infância, quando os outros são grandes e nós pequenos, é lugar de proteção, mas também de submissão, passividade, medos. O mundo dos pequenos é uma massa escura que não enfrentamos sem uma mão para segurar. Não é fácil lembrar disso. Tornamo-nos fortes e grandes graças ao exílio desse planeta natal da fragilidade. Só ficamos “super” porque crescemos.
Ao voltar à casa dos pais, mesmo velhinhos, sentimos a sinistra sensação de que lá o tempo congelou. Perdemos os bons modos, catamos no prato, distraímo-nos ao som da voz da mãe, testamos a força do pai, ficamos irritadiços, por vezes irreconhecíveis. Os lugares do passado são magnéticos, atraem à superfície fragmentos, cacos sobreviventes de outras eras. Atravessar a porta familiar dessa casa é como a queda de Alice no assustador País das Maravilhas. Não é porta, é portal, do outro lado esperam memórias que nos tomam de assalto. Assombrados pelos nossos outros “eus” do passado, descobrimo-nos, como Alice, viajantes surpresos num país de pesadelos, dentro de um corpo que encolhe, espicha e nunca nos abriga direito.
Faz toda a diferença como encaramos e como nos contamos as experiências que vivemos, a mesma história pode ser enquadrada por diversas lentes. Diferentes visões produzem novos efeitos. Mas nem tudo pode ser posteriormente resgatado, sempre há restos, alguma pedrinha nociva que incomoda ou obstrui. O passado é esse planeta natal, fonte de nossa força e vulnerabilidade.
Uma por todas: Stella a detetive de “The Fall”
Para os viúvos e viúvas de Lisbeth Salander, o seriado “The fall” é um consolo.
Lisbeth Salander foi uma heroína ímpar, ela apareceu na trilogia Milenium e encontrou a consagração longe dos olhos do seu criador. O sueco Stieg Larsson morreu sem ver a carreira de sua criatura e, principalmente sem poder nos brindar com a continuação de suas aventuras. Ela era muito jovem, tão absurdamente inteligente quanto emocionalmente inibida, bissexual, de aparência adrógina, forte e ágil como uma ninja. Seus inimigos estavam todos na lista dos lobos maus: machistas, fascistas, perversos egressos da corja das ditaduras, representantes principalmente do despotismo patriarcal. A todos que não a conhecerem ainda só posso invejar, pois já li todos os livros e assisti a todas as versões cinematográficas.
Para meu consolo, uma nova detetive surgiu. A estréia do seriado britânico The Fall (que pode ser assistido no Netflix, veja o trailler em http://www.youtube.com/watch?v=tP5Tl04gv3g ), nos brinda com a interessantíssima personagem da detetive Stella Gibson. Nesta primeira temporada ela chega a Belfast para caçar um assassino de mulheres. Desde o começo da narrativa, ao contrário de Stella, nós sabemos quem ele é, como escolhe suas vítimas e quais suas técnicas, portanto, não se trata de mistério, mas sim de um duelo entre eles.
O criminoso é um jovem e bonito pai de uma família margarina. Além de uma esposa interessante, enfermeira de UTI pediátrica, duas crianças lindas, ele tem uma profissão bacana, da qual nunca ouvimos falar aqui: é “conselheiro de luto”, seu trabalho como funcionário público é acompanhar as pessoas que estão sofrendo as conseqüências de uma perda. Como se vê, gente boa. Nos intervalos, estrangula mulheres com requintes de sadismo.
Stella é linda, é uma loira parecida com Merryl Streep quando mais jovem (Gillian Anderson), veste-se formalmente mas transpira sensualidade. Sua presença faz um contraponto com a tradicional Irlanda, pois ela é solteira convicta, não parece nem um pouco inclinada à maternidade e visivelmente gosta de sexo, do qual não se priva sempre que alguém lhe interessar. É uma figura forte, como já vimos em outras detetives televisivas, mas ao contrário da maioria delas, inclusive Lisbeth, não parece afetada por traumas pessoais que configurem algum tipo de motor de vingança. De seu passado sabemos pouco mas algo muito significativo: a primeira (de várias) formações universitárias foi em antropologia. O que significa uma mulher antropóloga como heroína?
Acima de tudo, temos uma mulher marcada pelo relativismo cultural. Ela sabe que as prerrogativas de seu gênero respondem a um lugar e tempo, podem e são diferentes em outros contextos. Ela, portanto, escolherá seu jeito de ser feminina. Talvez o visual tatuado e ambíguo de Salander seja muito mais contemporâneo do que a loira de olhos azuis e terninho, mas Stella nos garante que se ela quis aparecer assim é porque lhe convinha, faria qualquer coisa diferente que lhe ocorresse, conforme o caso. O nome do seriado “A Queda”, poderia ser uma alusão à buscada derrocada do homem mau que ainda resta e se esconde atrás da renovada imagem do contemporâneos e democráticos pai e marido que estão surgindo. O lobo na pele de cordeiro agora divide a troca de fraldas com a companheira, mas odeia as mulheres, as teme, precisa mostrar-se superior. É como senhores da morte que os homens consagraram sua supremacia ao longo de milênios, nas guerras que os fizeram heróis, principalmente frente uns aos outros. Neste momento, pelo jeito, há uma guerra dos sexos em curso e nesse embate temos Lisbeth e Stella como heroínas na ficção.
Só lamento que a segunda temporada só começará a ser filmada em 2014. Até lá, quem poderá nos defender?
Sede de vingança
Com o que mexe a ficção vingativa de Tarantino?
Sede de vingança
Não mais nos reunimos em praça pública para ver a cabeça dos culpados rolar ou pender. Mas, sempre que possível, fazemos isso no noticiário e, principalmente, nos cinemas. Nos antigos filmes de cowboy, um catártico tiroteio garantia a punição dos bandidos e a saída incólume do herói. Duros de matar, esses homens a cavalo foram logo substituídos por policiais igualmente solitários. Final feliz requer o chão coberto de corpos dos maus. Em “Django Livre”, como já fizera em “Bastardos Inglórios” e em “Kill Bill”, o diretor Quentin Tarantino arma seu roteiro a partir da nossa sede de vingança contra escravocratas, nazistas e machistas violentos.
Sou uma vingativa confessa, quero ver sangue. Mas fique tranquilo, no sentido figurado. Nada de pena de morte e torturas. Sei que a civilização começou quando alguém abriu mão da retaliação. Na vida real, a morte só deve ocorrer quando inevitável. Porém exorcizo minhas pendências na ficção. Da segunda guerra, onde meus antepassados e parentes foram assassinados, gosto de lembrar que existiu o Levante do Gueto de Varsóvia. Como eles, se fosse para morrer gostaria de levar pelo menos um nazista comigo. Na fantasia sempre somos mais corajosos.
A vingança, seja histórica ou pessoal, funciona de forma parecida com o fim litigioso de um relacionamento amoroso. Sejamos sinceros, não queremos que o outro seja feliz, lhe desejamos a morte lenta e o ostracismo. Todo mundo sabe que odiar é outra forma de amar, às avessas, que o oposto do amor é a indiferença, que o melhor troco é ignorar, genuinamente. Mas isso leva muito tempo para ser possível e mesmo assim sofremos recaídas. A dor deixa cicatrizes e elas são lembretes lavrados na pele, para sempre.
Os protagonistas dos filmes de Tarantino carregam essa insígnia, assim como os judeus tatuados, os escravos marcados, o mesmo ocorre com o maior vilão nazista em “Bastardos”. Há coisas que não são passíveis de um desfecho elegante, como seria a superação. Nem tudo se consegue esquecer, mesmo porque precisamos garantir que nunca se repita.
Questiona-se a cantilena de afro-descendentes e judeus que estão sempre na defesa e não perdoam os maltratos sofridos. Em parte, ela é necessária: preconceitos estão sempre ressurgindo, é preciso ficar em guarda. Porém, nem os descendentes de alemães nem os brancos da atualidade têm culpa pelos absurdos cometidos pelos seus antepassados. O que fazer, então, com os restos desse ódio vingativo? Tratá-los com o mesmo preconceito que se sofreu seria indigno, igualmente vergonhoso. Mas como conviver com as cicatrizes que latejam, a mágoa que espreita pronta para pular sobre nós, a autocomiseração, que pode não orgulhar-nos, mas compõe nosso lado sombrio?
Depurá-lo no cinema é uma forma de eliminar o excesso. É uma sangria do despeito, da tristeza, que permite manter o fluxo da civilidade. Não somos, nem nunca seremos, totalmente civilizados. Potencialmente, somos tanto algozes, quanto vítimas vingativas. Haja matinê!
Síndrome da porta
Quando desejamos a ausência do outro, tememos a punição do abandono.
A noitada termina, a comida foi apreciada, a conversa ótima. Tudo na medida: confissões e risos tiveram seu lugar, o álcool fez seu papel, ninguém ficou pastoso, inconveniente. Um encontro perfeito, mas chegou ao fim. A hora de partir de um jantar, de uma visita, é para mim sempre delicada. Temo ser mal interpretada. Será cedo demais, pareço ingrata? Tarde demais? Terei abusando da paciência dos donos da casa?
Do outro lado, ao receber, não me sinto mais cômoda. Depois dos bons momentos, já estamos todos cansados, hora de deixar os convidados partirem. Eles comunicaram sua intenção em hora oportuna, mas deveria insistir? É aí que desenvolvo o que chamo de “síndrome da porta”. Tomada dessas incertezas, fico envergonhada de desejar partir, ou querer que meus amigos vão para casa. Por isso, começo a desenvolver pequenas estratégias para retê-los. Afinal, sempre temos tanto o que falar! Quanto mais quero terminar a noite, mais puxo conversa. Na derradeira despedida, na soleira do prédio, faço uma pergunta importante, tornando infinita a despedida. Grudo nas minhas visitas como carrapato, justamente quando acho que está na hora delas partirem.
Poderia atribuir esse hábito ao excesso de polidez, mas acho que sua maior fonte é a angústia de separação. Da mesma forma fazem as crianças pequenas, na clássica cena da choradeira na porta da creche: depois de fazerem um espetáculo pungente de dor ao ver a mãe partir, elas viram as costas e muito faceiras rumam para suas brincadeiras. Ficar feliz na escola é o mesmo que dizer à mamãe que ela não é mais o centro do mundo.
O balé da porta é um movimento complexo. Por um lado, o anfitrião e a visita querem descansar, assim como a criança quer se divertir. Por outro, todos temem ser menos amados se não demonstrarem sofrimento pela separação. É agradável pensar que a visita não desejaria partir e que a mamãe vive para nós. Crianças e adultos temem a perda dos pais, amigos, amores, parentes, nenhum vínculo é sempre seguro.
A solidão que se estabelece depois de um encontro é desejável, é bom quando nos deixam a sós. Hora de pensar no que aconteceu, no que se disse e viveu, de opinar para os únicos ouvidos com que somos totalmente sinceros, os nossos. Porém, quando desejamos a ausência do outro tememos a punição do abandono. Ele saiu, adormeceu, distraiu-se de nós, enfim, de alguma forma partiu, mas ao desligar-se, deixou-me para sempre? Mesmo depois de crescidos, padecemos de angústias de separação até nos momentos mais banais, ou mesmo agradáveis, da vida cotidiana. No escuro, antes de dormir, a solidão que nos contempla sempre enxerga uma criança desamparada. Essa é a única que nunca nos deixa.
Mudança
Narrativas, recriações da verdade, ajudam a elaborar grandes e pequenos traumas, não perca “A vida de Pi”!
Desconfiada, fui assistir ao filme sobre um menino e um tigre náufragos. Não fossem as recomendações de pessoas próximas que me garantiram ser imperdível não teria ousado. Isso dito por uma incorrigível fã de filmes de aventura, fantasia e ficção infanto-juvenil. Com a mesma confiança dos apreciadores que me deram esse presente, recomendo ao leitor: se já não viu, não perca!
A magia da jornada marítima do garoto indiano funciona porque Ang Lee, diretor de A vida de Pi, administra o improvável, as cenas malucas, com boas doses de humor sutil. O filme é mais do que uma aventura, é uma pulga atrás da orelha sobre como ver e narrar a própria vida. A organização da informação, que devemos a jornalistas e historiadores, é imprescindível, mas insuficiente para fazer-nos compreender quem somos, onde estamos e o que diabos aconteceu. Precisamos mais que isso. Para isso servem a ficção, a fantasia, a beleza dos diversos tipos de vozes e olhares.
São essas recriações da verdade que nos tornam capazes de elaborar um trauma qualquer. Não precisa ser uma guerra, uma catástrofe, um abuso, também ficamos marcados pela morte de um avô, pela ocasião em que esqueceram de nos buscar na escola, pela perda do primeiro amor.
Contado com arte, o vivido transforma-se em algo que pode ser visto e compreendido de vários jeitos. Por isso, longe de ser supérflua, a arte é um instrumento de crescimento e equilíbrio emocional eficaz para todas as idades. Artigo de primeira necessidade!
Passaram-se quase 12 anos, desde setembro de 2001, quando recebi um telefonema da Claudia Laitano, convidando-me a uma contribuição quinzenal neste espaço do Segundo Caderno. Tenho escrito estas colunas, misto de crônica e mini-ensaios, sobre fatos reais e imaginários. Esta é a última vez que sou publicada aqui. Migro para o espaço de Opinião da Zero Hora, mensalmente aos domingos, além de outras escritas esporádicas.
A duras penas aprendi que as histórias que pedem para ser contadas pelo colunista, por vezes são fatos, outras ficção. Seguirei falando sobre produtos culturais, que não passam de ilusões, exatamente como os sonhos: tramas inverídicas onde os psicanalistas garimpamos as maiores verdades!
A realidade por vezes é grande demais, é como um alimento cru que necessita preparo para ser absorvido por nossos estômagos frágeis. Nos jornais e revistas, o artigo, o ensaio, a crônica, a coluna tentam dar forma ao que vivemos sem entender. (Nos divãs também.) Loucos, pretensiosos, esses jornalistas e escritores. Gracias, Claudia, por ter me convidado a ser como eles!
(publicado no jornal Zero Hora, dia 16.01.2013)
Nostalgia da matiné
O épico visita nossa vida banal, sobre o filme O Hobbit
Minha infância careceu de matinê. Nunca soube o que era programação dupla: bang-bang, seguido de filme de aventuras, capa e espada ou comédia. Estive ausente do cinema da tarde, onde crianças e jovens emergiam do escuro de alma lavada. Em contrapartida, vi surgir os filmes-catástrofe, como Terremoto, quando sentimos pela primeira vez o cinema tremer com os efeitos especiais. Sem falar do, inesquecível, pânico e nojo do O exorcista. Além da diversão da tela, havia o prazer de partilhar em silêncio do mesmo sonho. O cinema é uma escuridão acompanhada, pesadelos não causam ansiedade, desejos não geram culpa. Por isso, não podia ser maior minha gratidão com Peter Jackson, que levou às telas as histórias de Tolkien.
Fui apresentada à literatura do filólogo inglês durante a infância das minhas filhas. O padrinho da mais velha presenteou-a com um exemplar de O Hobbit, livro introdutório da saga, a história que acaba de tornar-se filme. Laura tinha seis anos quando seu pai começou a lhe ler aquelas intrincadas aventuras. Ela escutava com a respiração suspensa. A operação se repetiu anos mais tarde com Júlia, a caçula, mas àquela altura eu mesma já havia entrado no livro. Lembro de ter ido trabalhar sem dormir, incapaz de deixar meus heróis em meio de uma batalha contra Trolls ou nas garras de um dragão.
“Todas as histórias precisam de polimento”! Diz o mago Gandalf num diálogo dessa adaptação de Jackson. Ele tomou liberdades, sim, mas em nome do direito de re-apresentar a saga ao público de outro tempo, quase quatro décadas após sua publicação. As histórias da Terra Média nunca deixaram de ser o lar imaginário de sucessivas gerações de jovens iniciados, no cinema se tornaram acessíveis a todos.
O mago Gandalf é uma espécie de guru da masculinidade e, como está difícil saber como tornar-se homem atualmente, seus ensinamentos vem a calhar. Quando li o livro, as músicas cantadas pelas personagens, cujas letras Tolkien inseria na trama, me matavam de tédio. Na recente versão filmada, se ouvisse aquele canto dos anões convocando para resgatar sua terra natal eu teria me alistado! Assim fez o pacato Bilbo, que abandonou a rotina doméstica rumo ao desconforto e, pior, o perigo. Suas aventuras resultaram numa história para contar e foram justamente essas narrativas que levaram seu descendente Frodo à jornada com a Sociedade do Anel. Os humanos fazem-se a partir de histórias e elas sempre podem ser mais e melhor contadas: no escurinho do cinema, nas páginas de um livro, tanto faz, desde que traga o épico para nossa vida banal.
Moonrise Kingdom
Um conto de fadas para gente grande
Desta vez não há bruxas, ogros, príncipes malvados, ajudantes mágicos, animais falantes, fadas madrinhas. Mesmo assim o clima de Moonrise Kingdom (de Wes Anderson, 2012) é de conto de fadas. Na falta de personagens fantásticos, há muita aventura: perseguições, lutas e perigos, mas o verdadeiro combate é contra os ressentimentos e frustrações que impedem as pessoas de se amarem e conectarem.
Os heróis são duas crianças apaixonadas. É um amor ainda alheio ao erotismo, o que os move é a mútua compreensão contrastante com a surdez dos que os rodeiam. Os adultos evidentemente não entendem, muito menos aceitam, o caso da menina revoltada com o escoteiro órfão e enjeitado, ambos com 12 anos. Por isso fogem numa jornada pela ilha onde vivem, arrastando atrás de si um exército de escoteiros, a família da menina, o policial secretamente apaixonado pela mãe dela, a assistente social que quer internar o garoto. O casal leva consigo o que considera essencial: ele sua parafernália de escoteiro, garantindo virilmente bem estar e orientação; ela uma mala de livros de fantasia e uma vitrola com discos, que sabe usar habilmente para tranqüilizá-los e animá-los sempre que necessário.
Nas crianças admiramos a autenticidade, são espíritos ainda frescos, a vida só lhes oferece possibilidades. É como se o crescimento nos condenasse a uma estreiteza hipócrita, o que não deixa de ser verdade. A trama do filme aposta nessa idealização da infância, mas também nesse amor de principiantes. O amor costuma ser um dos nossos maiores investimentos, é nele que depositamos as maiores expectativas de plenitude e satisfação, as ilusões mais vãs. Do amor só queremos tudo.
Não levamos fé em muita coisa neste tempo sem utopias. Afogados em desesperança, tememos como nunca a solidão, esfinge que faz perguntas irrespondíveis. Apaixonar-se ou refugiar-se em sonhos, como fazem os artistas e as crianças quando brincam, são alívios fundamentais. Síntese de tudo isso, ao fugir em nome do seu amor, esses protagonistas infantis carregam a todos nós em direção aos tesouros afetivos que ainda conservamos.
Como já ocorrera em outros filmes de Anderson (Tenenbauns, Sr. Raposo, Darjeeling), os adultos são muito neuróticos, mas guardam certa graça com suas excentricidades. São atrapalhados mas esperançosos e nunca desistem uns dos outros. Esta, que considero sua obra prima, não podia ser mais otimista nesse sentido. Concordo com ele: somos bem maluquinhos, mas se conseguirmos nos conectar tudo pode acabar num final feliz. Mesmo que não seja para sempre.
Frankenstein on drugs
Sobre o filme “Legado Bourne” e o vício em extrapolar limites
O cara não se sente à altura do cargo, teve a sorte de ser selecionado, mas se acha infra-dotado. O trabalho é insano, seus colegas também estão alucinados, todos fazem coisas além das suas capacidades, superar limites é o mínimo que se espera. Conhecem-se pouco, para a organização são números, importante é o sucesso da missão. Só há um jeito de garantir a eficiência: drogas. Consumidas garantem um desempenho perfeito. Os outros também usam, todos temem a abstinência, sem elas nada feito.
O discurso acima serviria para o mundo dos negócios, do entretenimento, da vida social, mas no caso trata-se de um filme, no qual agentes americanos, a serviço de missões secretas, são submetidos à manipulação bio-química. É Legado Bourne, o quarto filme da série inspirada nos livros de Robert Ludlum, agora sem o charme de Matt Damon, mas ainda divertido. A novidade desse episódio é a conexão das capacidades superlativas do herói com as substâncias que lhe são administradas, o que o torna um dependente químico. A corrida toda, que é a luta da criatura contra o criador, característica dos episódios anteriores, agora circula em torno desses remédios. O herói atual sonha em libertar-se deles, mas não sem antes garantir o efeito permanente dos poderes que lhe emprestam.
Os filmes sobre o agente Jason Bourne são variações sobre o tema da história de Frankenstein. Desde o monstro de Mary Shelley (1818), surgiram muitas versões dessa criatura.Todos eles, a exemplo dos Replicantes de “Blade Runner”, são fruto de um sonho transformado em pesadelo. O enfrentamento entre cientista e sua obra, a criatura, é sempre terminal e o arrependimento pela empreitada determina a eliminação da experiência. Victor Frankenstein recriou a vida, reanimou tecidos mortos e horrorizou-se com seu ato no mesmo momento em que seu monstro abriu os olhos. No caso dos Replicantes, de vários robôs da ficção e destes agentes secretos turbinados, produzem-se seres de potência incontrolável, que pecam por ganhar autonomia e desobedecer. Mas o importante nesta série de reaparições do mito, é investigar as novas formas que ele assume.
Neste caso, o que a criatura quer é eficiência. Para tanto, precisa das drogas da eficiência, legais ou ilegais, que fazem parte da nossa cultura. Na missão de vencer, distração é pecado, os outros são inimigos ou rivais, limites são para os fracos. Se falhar, a fila anda, você está morto. Hora de reler Frankenstein, pois a história começa com um aviso: a obsessão por ignorar os limites torna-nos seres assustadores, irreconhecíveis aos próprios olhos.