Eduardo Coutinho, o cineasta psicanalista.
A arte de perguntar, no cinema de Eduardo Coutinho e na psicanálise.
O psicanalista é um anfitrião que recebe pessoas para conversar. Sua arte consiste em colocar as perguntas certas, essas que levarão o assunto para um território novo, de preferencia surpreendente para o paciente. Mas é muito difícil compreender o que faz um psicanalista sem submeter-se à experiência de uma análise. Há livros técnicos, assim como literatura onde pacientes e analistas são personagens, onde pode se matar um pouco da curiosidade. Para tentar entender esse ofício, pelo menos aproximativamente, recomendo assistir “Edifício Master: um filme sobre pessoas como você e eu” (2002).
Este janeiro cheio de perdas deixou-nos sem um poeta do documentário: Eduardo Coutinho, autor desse filme. O Master é um prédio em Copacabana: 276 pequenos apartamentos, onde vivem aproximadamente quinhentas pessoas. A equipe foi visitando os moradores e colhendo suas histórias, das quais Coutinho selecionou algumas para compor o documentário. Estruturalmente idênticos, abrem para uma maravilhosa diversidade quando a equipe bate à porta. O cineasta não é invasivo, mas faz perguntas difíceis, sempre atento aos pontos delicados da conversa, centro de seu interesse.
Os entrevistados abrem o coração, choram, cantam, recitam, gargalham, se queixam, lembram glórias, contam grandes histórias sobre pequenas coisas e, inevitavelmente, fazem um balanço da sua vida. Muitos são velhos, mas há alguns jovens e todos têm uma trajetória para contar. Uma moça que morava sozinha e lamentava a perda do zelo dos pais e avós, conta a história de uma voz de criança que ela escutava através do respirador. Embora curiosa, não conseguia tomar a iniciativa de descobrir o rosto daquela pequena, cuja vida espreitava. Provavelmente essa voz representava a criança que ela estava deixando de ser.
Emoldurada pela câmera toda vida torna-se grande. Aliás, é exatamente isso que fazem os escritores: transformar o prosaico em poético, a vida comum em evento literário. Meu espaço, o consultório, também é sempre idêntico. Ambiente invariável, como são os apartamentos do Master. O que muda são as vidas que passam: relatos de minúcias, queixas, ressentimentos, bravatas, vergonhas, sonhos noturnos e diurnos. Através das histórias que escolhe para contar, ao longo do dia cada um que entra vai ocupando meu espaço a seu modo. A escuta do analista é atenta aos momentos sensíveis do relato. Por vezes é a história de um trauma, um acontecimento marcante, por outras, a vida encontra suas encruzilhadas em sutilezas, como a voz de uma criança no respirador. O cenário pode ser fixo, variadas são as pessoas.
O documentário é uma arte na fronteira entre a ficção e a realidade e Coutinho dedicou-se acima de tudo aos relatos, por vezes longe dos fatos. Pouco importa: sofremos menos dos fatos e muito mais dos pontos de vista, da forma como narramos a realidade. No cinema de Coutinho, assim como no consultório do psicanalista, realidade e ficção são indissociáveis.
Depois que assisti o filme, fui procurá-lo em Copacabana. Ele está lá, no endereço preciso, entre a Siqueira Campos e a Figueiredo de Magalhães. Mas nunca mais será o mesmo; Coutinho o modificou para sempre.
querido, imagino que me aconteceria o mesmo, é isso que os artistas fazem, depois que eles fazem o recorte, ressaltam, descrevem, editam, passamos a ver mais, outra coisa, em algo, à la ready made, de vez em quando conseguimos produzir naqueles que a gente escuta esse novo olhar né? a gente tenta pelo menos… abraços