“Só” uma intérprete

Nos 30 anos da morte de Elis, a lembrança de que nada se cria, tudo se interpreta.

Depois que tomava uma música para si, Elis Regina lhe emprestava a alma. Olhava o público nos olhos, parecia que um a um. Era lúdica, gorjeava travessa, abria um sorriso solar, o corpo inteiro se engajava na voz, os braços abertos em hélice. As canções ficavam marcadas a fogo com seu selo, tornavam-se dela, abafava outras versões. Jamais escreveu letra ou melodia, sua autoria era conferida pelas interpretações. Amanhã farão trinta anos de sua ausência.

Um bom ator é um intérprete de seu personagem, mas a qualidade da cena dependerá da entrega, de que o porta voz esqueça sua própria identidade e vista o papel. Minha carreira teatral sucumbiu brevemente quando, tomada de suores e tremores, não conseguia esquecer minha pobre pessoa, cujo fracasso no palco se impunha sobre as falas da peça. Tão preocupada com meu vexame só conseguia interpretar a mim mesma. Um verdadeiro intérprete entrega-se à Pomba Gira, deixa-se possuir, e assim, num contragolpe, termina apropriando-se do espírito que o toma. Se for genial não conseguiremos diferenciar a criatura do criador, o demônio da vítima que o conjurou. Assim era Elis, de quem se dizia que era “só” intérprete.
Os psicanalistas se aproximam desse espírito: ao interpretar sonhos, por exemplo, o fazemos num estado de entrega, como o dos artistas. A verdade oculta sob o enredo maluco de um relato onírico pode ser lida sob o texto daquele que o narra. O paciente lembra o que sonhou, mas em sessão faz um relato peculiar onde, sem saber, opina sobre a aventura onírica. Seu analista exercita uma escuta sem preconceitos, sem deixar-se influenciar por suas teorias. É preciso surpreender-se por uma formulação curiosa de palavras, um desencaixe no relato, um estribilho: eis a dita atenção flutuante. Assim descobre a nota dissonante do relato e a destaca do contexto, essa será a chave do enigma ou pelo menos de uma porta para entrar nele. Também o analista se relaxa e se perde de si, pois sem entrega não ocorre essa peculiar forma de escuta. Interpretações, como se vê, são sempre uma inusitada autoria, onde alguém se apropria do texto do outro para produzir a novidade.

Somos versões dos nossos antepassados, adaptadas ao nosso tempo. Seus traços nos assaltam e com eles compomos uma identidade. A originalidade possível não passa da apropriação peculiar dessa origem, que é de certa forma uma interpretação. Uma intérprete, como Elis, é autora de versões. Versões também são obras de arte, ou, como diria Borges: obras de arte são sempre “só” versões.

19/01/12 |
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