“Sua vida trouxe você até aqui”
Sobre a memória
Essa frase é o texto de um comercial. Na imagem que acompanha, um rapazote cabeludo, em idade de andar de ônibus, observa o que a propaganda anuncia como “Novo Prisma. Seu primeiro grande carro”. Atrás dele a vida é simbolizada por um bizarro e interessante grupo amontoado: família, amigos, amores, colegas de diversas fases da vida, médicos, religiosos, professores, mas também há personagens ficcionais, representantes da cultura pop e de comerciais.
Cada um tem sua própria seleta de elementos que integram o acervo da memória, dela é composta a vida que nos leva a algum lugar. São histórias, frases, nomes, músicas e imagens que constituem uma bagagem afetiva e intelectual. Na memória os fatos e a ficção se confundem. O mesmo ocorre quanto a eventos marcantes que disputam espaço com outros de aparente banalidade. Por isso imagens ou palavras provenientes de um gibi ou de uma embalagem de cereais podem rivalizar em importância no acervo da memória com a última frase da nossa avó em seu leito de morte.
Examinando o conteúdo de nosso acervo pessoal, veremos que a memória não prega prego sem estopa e tudo está ali por alguma razão. Nas minhas catacumbas, por exemplo, mora a imagem da Ipirela, uma loira escultural, pintada na parede do posto da esquina, garota propaganda do local. Contemporânea dessa lembrança, da época em que começava a ir à escola sozinha, é a imagem de um gato eviscerado, caído do alto de um prédio. A mulher irresistível que eu esperava ser no futuro e a morte colhendo aquele que era para ter sete vidas, aparecem através de eventos ou imagens aparentemente banais. Porém, não é irrelevante o início da independência, os primeiros passos a sós no mundo sem uma mão para nos guiar. Certamente é também o momento de encarar o crescimento, a sexualidade e a morte.
O Dr. Ivan Izquierdo e sua equipe na PUCRS avançaram mais um passo na pesquisa sobre a memória, eles investigam a formação e a consolidação de memórias e lembranças. Desvendaram “como ocorre a síntese de proteínas que possibilitam à mente registrar os eventos para sempre” (ZH 19/01/07). Eles também investigam o que acontece com as memórias quando evocadas, pois a mente é como um armário remexido, nunca mais fica do mesmo jeito, mesmo que depois se arrume. Como se vê o significado e importância do que se guarda depende do contexto e o que se evoca acaba sendo reeditado, lembrar é algo que se altera e nos altera.
Independente do rumo que nossa vida tenha tomado, o que não muda é o fato de o destino alimenta-se das memórias, boa a sacada do comercial. Ainda bem que há cientistas trabalhando para nos ajudar a preservá-las quando a idade ou alguma doença nos privam delas. O mesmo fazem os psicanalistas, procurando lembranças nos porões pessoais e alheios. Outra coisa são os pontos de chegada, espero que sejam tão particulares e variados como as memórias. Para mim um carro não é uma perspectiva atraente. Queria era ter ficado parecida com a Ipirela. Não deu!