A comilança

Sobre os banquetes natalinos

Desde que o homem é homem comunga em torno do alimento, mas não basta que comamos juntos, a refeição deve oferecer uma fartura que garanta a saciedade e deve haver sobra. Uma boa mesa de celebração deve causar nos comensais a sensação de que eles são muito poucos para dar conta da quantidade e ou variedade oferecida. É esperado que os convivas aleguem estar mais que satisfeitos, devem se declarar totalmente incapazes de ingerir um bocado a mais que seja.   

Evidentemente que outros excessos além do alimentar também indicarão a importância da festa, os maiores gastos, o maior porre de um parente, a maior briga do ano, mas estes são optativos. Por isso, caro leitor, conforme-se ao exercício do pecado da gula no dia de hoje, considere apenas que ele faz parte de um ritual onde o limite de seu estômago será imolado num altar sacrificial. Dietas serão consideradas uma afronta, se estiver de regime, disfarce, faça comentários dignos de um verdadeiro guloso.

Aliás, a cozinha francesa desenvolveu o salutar hábito de trocar a quantidade pelo refinamento em pequenas porções, podendo se ser magro e gourmet ao mesmo tempo. De qualquer maneira fica claro que você pode até não querer se empanturrar, mas, como os franceses, terá que dedicar tempo e discursos ao alimento. Vale tudo, menos desconsiderar a importância da refeição.

Embora o Papai Noel já tenha sido mais severo em seus julgamentos a respeito de quem merece presentes ou não, ele ainda guarda um pouco de sua autoridade ao ajudar os pequenos a abrir mão de seus bicos. Não é a toa que tantas crianças tem medo dele e se desesperam com sua presença ostensiva nesta época. Desta forma, sua figura ainda fica associada a um certo controle que se deve ter dos desejos orais. Depois de crescidos não podemos ficar chupando uma borracha por sono ou tristeza. Por outro lado, a mesa de Mamãe Noel é de uma generosidade irrestrita: a comida é para todos, independente de como se comportaram ao longo do ano e, ao contrário de seu parceiro, ela invoca um apetite sem limites. Deve ser esta mãe nutridora, a eminência parda do Natal, a verdadeira responsável pela infalível pança do patriarca da festa.

Atualmente não sabemos mais exatamente o que estamos festejando no Natal, provavelmente para muitos a capacidade de consumir e para poucos o nascimento de Jesus, mas o certo é que temos um cardápio a cumprir. Por isso, hoje que tantos excessos serão cometidos em nome da tradição, faço meus votos de que a mesa de nosso país possa nos próximos Natais incluir aqueles que tem direito mais do que a zero de fome, que muitos possam se empanturrar, como manda o figurino.

24/12/03 |
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