A cura da homofobia

Os territórios dos sexos nunca foram tão indefinidos e isso deixa muita gente confusa, além de produzir fobias. Como diz o nome, trata-se de “homofobias”: pessoas que sentem temor, não podem conviver, saber a respeito ou aproximar-se de outras que desejam os do seu sexo.

Em 1999 o Conselho Federal de Psicologia baixou uma resolução sobre a questão de curar homossexuais. O objetivo era impedir que se usasse uma ciência, a psicologia no caso, para proselitismo preconceituoso, vindo de setores religiosos e conservadores. Tal ato seria desnecessário se não existissem profissionais que confundiam crenças pessoais com indicações terapêuticas. Resumindo: o que o CFP diz é que não se pode curar algo que não seja uma doença. Na verdade apenas traz ao Brasil o que já é consenso em quase todos países ocidentais: não existe nenhuma teoria psicológica ou psiquiátrica séria que defenda tal posição. A questão volta à discussão agora que setores políticos, especialmente os evangélicos, insistem em rever a questão.

O objetivo da derrubada dessa resolução seria dar aos profissionais da saúde o “direito” de considerar o desejo por pessoas do mesmo sexo como um sintoma a ser curado, uma doença a ser combatida. Isso possibilitaria aos psicólogos religiosos agir em nome de sua formação acadêmica para tratar como doença uma forma de amar. Isso não encontra respaldo em nenhum conhecimento que eles possam ter adquirido na universidade. Em outras palavras, se alguém quer combater a homossexualidade, que o faça sem o aval da academia e do órgão regulador da profissão.

É de se perguntar por que é um problema tão grande para uns o fato de outros amarem pessoas do mesmo sexo? O desejo de homens por outros homens e mulheres por mulheres é velho como a história da humanidade. Por que tanto estardalhaço em torno disso? Por que dedicar tanta energia a combater modos de amar e desejar?

As piores repressões incidem sobre os desejos que sentimos como mais insidiosos, tentadores. Se antes a fidelidade era o grande tema, pois tratava-se de defender a permanência do casamento tradicional, agora a identidade sexual parece se o ponto mais frágil do edifício subjetivo. A ambiguidade sexual é hoje um fato em nossas roupas e condutas, mulheres usam calças, homens colocam brincos, todos trabalham nos ofícios que quiserem e ter um filho não condena ninguém à prisão doméstica.

Os territórios dos sexos nunca foram tão indefinidos e isso deixa muita gente confusa, além de produzir fobias. Como diz o nome, trata-se de “homofobias”: pessoas que sentem temor, não podem conviver, saber a respeito ou aproximar-se de outras que desejam os do seu sexo. Esses sujeitos frágeis estão assim preocupados com o embaralhamento dos territórios dos gêneros porque, no âmago, sabem ou intuem, que as fronteiras são arbitrárias, não há nada que nos obrigue a ser ou desejar de determinada forma. Podem clamar à vontade pela obviedade da anatomia, pela necessária complementariedade do pênis e da vagina, pela fecundidade macho-fêmea. Isso nunca foi unívoco para o desejo dos humanos e nunca será.

Usa-se hoje falar de gênero em vez de sexo, essa forma de se expressar comporta a compreensão de que a anatomia não é um destino, que há múltiplas variações para os pensamentos que guiarão a vida sexual e a forma de se parecer. Os psicanalistas insistem em “caso a caso”, porque é assim.

É fundamental que se tenha claro que quando falamos de “homo”, “hétero” ou “bi” sexuais, estamos necessariamente misturando canais, pelo menos dois são mais claros. Por um lado há a identidade sexual. Ela se constrói de tal modo em que o comportamento e aparência de uma pessoa pode ou não corresponder à expectativa do sexo em que se nasceu: nos tornaremos homens másculos ou afeminados, mulheres masculinizadas ou femininas. Neste caso, um homem pode, por exemplo, parecer-se com o sexo oposto, mas também amar alguém do sexo oposto. Não é preciso parecer um machão para amar as mulheres. Isso ocorre porque o desejo sexual, é o outro lado, uma segunda questão, que não necessariamente se articula com a identidade. Portanto, um homem pode parecer feminino e gostar de mulheres, assim como uma mulher ter uma aparência e comportamento viris e interessar-se por homens. Pode também um homem gay, que deseja outros homens, ser muito mais macho que muito hétero e entre as lésbicas é muito comum que sejam delicadamente femininas.

A sigla LGBTTT não é assim comprida por acaso, pois a obrigação de parecer-se com o sexo em que se nasceu e de desejar o sexo oposto são questionados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Cada uma dessas letrinhas abre para um universo variado de formas de ser e amar. Ao nascer, se não formos hermafroditas, nosso corpo nos remete a um destino social, uma forma de ser e de amar. É (ou era) esperado que fossemos nos construir à imagem e semelhança do sexo em que nascemos e que estejamos interessados pelo sexo oposto, sem maiores vacilações e questionamentos. Mas nunca é tão simples assim. Para começo de conversa, temos uma complicada história de amor com o progenitor do nosso mesmo sexo, em relação ao qual temos desejos, vontade de ser amados e escolhidos por ele.

Quanto à aparência, juntamos traços da mãe e do pai, ou daqueles que cumpram essas funções em nossa vida, misturamos com vivências que incluem outras personagens marcantes (professores, amigos da família, outros parentes) e com isso montamos nossa identidade. Essa mistura toda inclui, obviamente, pessoas de vários gêneros. Antes de chegar à vida amorosa propriamente dita, as amizades na infância e na puberdade muitas vezes são sofridíssimas histórias de amor homoerótico. Meninas padecem pelo abandono amoroso das amigas, meninos se escolhem e discriminam, para tristeza de uns e outros, sem que nenhum dos envolvidos vá necessariamente se tornar gay mais adiante.

Ao longo da vida, podemos até mudar aquilo que nós mesmos pensávamos sobre nossa escolha amorosa e erótica (homo ou hétero), ou sobre nossa aparência (feminina, viril ou andrógina) em função de um processo, de experiências, encontros. Também pode acontecer de crescermos com certezas (ou suspeitas) a respeito disso desde pequenos. Há aqueles que chamamos de bissexuais porque descobriram um amor no seu mesmo sexo, e então, quando esse amor termina, voltarão à condição anterior. A sexualidade e a construção da identidade de gênero são imprevisíveis, a única certeza é o adeus às certezas.

Por isso, hoje tantos jovens têm ousado explicitar essa mobilidade, essa ambivalência sexual. Estão mais liberados para viver a complexidade de como ser a amar. Não se trata de algo criado pelos nossos tempos mais liberais, trata-se de dar visibilidade a algo que ficava nos subterrâneos, que era vivido clandestinamente, culposamente, ou era reprimido gerando quadros psíquicos variados, não raro graves e incapacitantes. Essa nova liberdade não inibe nem propicia o surgimento de homossexuais, apenas evita neuroses.

Raramente recebemos pacientes que se queixem da forma como desejam, isso é para todos nós uma força que nos impulsiona e se impõe. Os motivos de consulta, que movem experiências terapêuticas, em geral dizem respeito à relação da pessoa e do seu meio com esse desejo. Um homem dificilmente buscará tratamento por desejar outros homens, mas o fará porque isso o faz sentir diminuído frente à família, os colegas de trabalho ou estudo. Portanto, é o preconceito, é a ilegitimidade do desejo, que certamente leva ao sofrimento psíquico. Amores proibidos dóem por serem proibidos, não por serem amores.

A homossexualidade não é uma doença a ser curada, ela não passa de uma forma de desejar. Já a homofobia talvez inspire cuidados terapêuticos. A ajuda psicológica deve ser dispensada para aqueles que apresentam uma vida limitada por uma relação conflitiva com os próprios desejos. Precisam de ajuda os que sofrem quando entram em contato com algo que lhes lembra pensamentos inconfessos, com os quais não conseguem conviver, os que são assombrados por dúvidas para as quais não têm resposta. A fobia é uma dessas formas de sofrimento, na qual alguém fica fixado em algo que lhe produz horror e fascínio. Todo mundo tem alguma, mas quando elas se tornam fortes e assumem muita importância na vida de alguém acabam sendo motivo de consulta. Por sorte fobia tem cura, não é fácil, mas muitos já conseguiram.

15 Comentários
  1. Gastón permalink

    EXCELENTE ARTICULO !!!!!!!!!

  2. Ricardo Bauler permalink

    Diana e Mario Corso me auxiliaram muito na elaboração da minha monografia sobre contos de fada na educação, através do livro “Fadas no Divã” (que eu li e reli muitas vezes – bem como também adorei o livro A Psicanálise da Terra do Nunca).

    Também me identifiquei com o fato de os dois serem um casal de origens religiosas diferentes – apesar de ateus – uma judia e um católico (mesmo caso dos meus pais).

    Já tinha certo carinho pelo trabalho dos autores e agora fico imensamente feliz por ler esse artigo repleto de lucidez e sensatez. É bom saber que alguns dos meus autores prediletos estão também na luta contra a ignorância e as discriminações infundadas.

    • Diana permalink

      puxa Ricardo! melhor que escrever é descobrir-se menos sozinho… com vários companheiros da viagem pela vida, mesmo que a gente não se conheça, há uma cumplicidade!
      obrigado pela tua leitura, imagino que teu trabalho tenha sido bem interessante!
      abraços
      Diana

  3. Jesus Afonso permalink

    eu li e gostei do texto. Bem explicativo. Concordo com tudo ali afirmado, pois eu já pensava nesse sentido. Quis ler até pra saber a opinião de profissionais da área da psicologia, pois teve tempos, como menciona no texto, que alguns profissionais indicavam um tratamento para a cura da homossexualidade, algo totalmente infundado, sem sentido !! valeu

  4. Marilice Corona permalink

    Como sempre um texto impecável! Adorei e vou compartilhar! Bjs aos dois queridos.

  5. Gleice permalink

    Excelente o texto.

  6. Poliana Piltz permalink

    Adorei o texto! É como digo para meus amigos Homofobia é doença, a fobia é patologia, isso sim tem tratamento e é passível de cura. Respeito é o mínimo que um ser humano “deve” a outro.

    • Diana permalink

      e nem vamos tentar “curar”ninguém disso… obrigado pelas tuas palavras!

  7. Renata Mancopes permalink

    Suas palavras funcionaram como um flecha: direto no alvo. Reuniram os sentidos e políssemias, abrindo ao mesmo tempo para tantos outros. Perfeito.

  8. juliana permalink

    Q delicia de artigo!!! Simples, direto, esclarecedor.
    Já conhecia o casal através dos livros sobre contos de fadas q tbm usei em minha monografia sobre o assunto, agora sou fã total!

  9. Thiago permalink

    Sou fã dos textos e dos livros do casal. Mas discordo em parte deste texto (ênfase no “em parte”, por favor). Concordo que muito da polêmica em torno da assim-chamada “cura gay” é por conta de religiosos preconceituosos, e contordo também que se “liberasse geral”, muitos profissionais anti-éticos usariam a psicologia a favor de suas opções religiosas, o que só aumentaria o sofrimento mental dos pacientes que buscam tais profissionais. TODAVIA, não acredito em rótulos como GLS, LGBT, etc. Acredito, isso sim, em uma miríade de microssexualidades, onde cada um de nós tem a sua, independente de rótulo, denominação, etc. Eu não sou “hetero”, “homo”, “bi”, etc., eu sou o Thiago, e tenho a MINHA sexualidade. Pois bem, se um paciente me procura (sou estudante de psicologia) insatisfeito com sua sexualidade, NÃO PORQUE sofre preconceito ou porque não é aceito assim, mas porque ELE quer SER diferente, ELE quer mudar, ELE quer ser mais feliz de outra maneira, acredito ser dever do profissional auxiliá-lo. Exemplifico, digamos que a pessoa seja casada e ame seu cônjuge, mas tenha impulsos sexuais extra-conjugais e queira controlá-los; ou uma pessoa seja apaixonada por outra e seja correspondida, mas tenha impulsos homossexuais, mas não queira perder a pessoa que ama. Como vemos, a sexualidade é muito complexa, complexa demais para que pudéssemos culpar a “homofobia” por todo aquele que tenta ser e/ou manter-se heterossexual.

  10. Adriana permalink

    Vou me atrever… Atrever a perguntar: por que tanta preocupação com o que se faz sexualmente? É uma pergunta séria! Não compreendo o porquê de apresentarmos amigos como homossexuais. Se não se apresenta heterossexuais, por que o rótulo? O que mais é senão particularidade da atividade sexual? Quem se preocupa com sadomasoquista? Creio que devemos dar uma outra roupagem a esse assunto… e punir, severamente qualquer tipo de discriminação, o que dirá de violência!!
    Abraço imenso e parabéns pelo trabalho!!!!

  11. Naor Nemmen permalink

    O texto é levy de ler e fidelix à realidade. Aprovado!

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