A esperança equilibrista
Sobre os 25 anos da morte de Elis Regina
São 25 anos sem Elis Regina. Ela legou um repertório escolhido e interpretado com tal paixão autoral que certas músicas são indissociáveis da sua versão. Partiu deixando em todos a impressão que perdemos um parente. A arte dela nos pega de diversas formas, mas em mim uma foi particularmente inusitada: quando me tornei mãe e me propus a entoar cantigas de ninar, imiscuiu-se entre as cucas e bois da cara preta “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, cantada por Elis.
Em certa ocasião foi pedido a uma turma de crianças que desenhassem o Bicho-papão, aquele que mora embaixo da cama, para mim pelo menos. Pois não apareceu um igual ao outro: dragões, ciclopes, extraterrestres com tentáculos, criaturas híbridas de todas as espécies fantásticas e animais se misturaram para dar forma ao medo de cada um. Nossa criatura assustadora é construída à imagem e semelhança das necessidades individuais.
Como se vê, a face do Bicho-papão varia, mas não sua função de transformar angústia em medo. Pode não parecer grande coisa, mas para bebês é tudo. Eles sabem tão pouco sobre si próprios quanto sobre o mundo que os rodeia. Ignoram, por exemplo, se eles ainda existem quando a mãe está ausente.
O sensação de um pequenino que adormece é muito mais próxima da angústia do que do medo. A angústia é uma experiência de diluição e vertigem em que nos sentimos perdendo os contornos sobre os lençóis, enquanto explodimos em palpitações mortíferas. Por isso, paradoxalmente, é tranqüilizador quando a mamãe evoca o medo, canta que a cuca, o boi-da-cara-preta e o tutu-marambá é que são os perigos. E eles rondam lá fora, logo não são a mamãe, pois ela está a falar deles, nem estão dentro do corpo da criança, pois se eles podem vir, é porque não estão aqui. Ufa!
É na letra de “O bêbado e a equilibrista” que mora o segredo desse inusitado uso para o acalanto. Cresci trajando luto, perdi meu pai e meu avô ainda bebê e a evocação dessas mortes, incompreensíveis para alguém tão pequeno, misturou-se com outras. Eram as causadas pela guerra e pela repressão, das quais os adultos cochichavam em volta. Mesmo sem ter consciência disso, precisava alertar minhas filhas desses perigos. De que há tanta gente que partiu, mas que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente. A morte a repressão e o exílio eram o meu bicho papão.
A tarde sempre cai pesadamente como um viaduto e nos conduz ao fim do dia, e não há fim que nos caia bem. Quando estamos frágeis, a tardinha parece um tipo de morte, por isso as depressões tantas vezes nos atacam a essa hora. O momento em que o cotidiano apaga suas luzes e vamos antecipando o temido encontro com as inevitáveis ruminações neuróticas. O sono é como uma morte temporária: interrompe esses pensamentos chatos, mas nos braços de Morfeu reduzimo-nos aos sonhos e pesadelos. Ainda bem que já somos grandes e sabemos que depois do crepúsculo sempre vem algum amanhecer, para os indivíduos e para os povos, porque o show tem que continuar. É a esperança equilibrista!
dianacorso@portoweb.com.br
Lindo texto. Com escrita e escuta. Uma interpretação que amplia o alcance da música. Teve seu tempo de resistencia, de cantar o que não se podia dizer. Com esta crônica, pode dizer um pouco mais sobre a vida e a vida que se quer transmitir.
grde. bj.
R.