A maconha e o apocalipse
A grande vantagem de demonizar algumas substâncias e culpá-las pela nossa miséria é a de nos colocar fora da equação.
Para o gaúcho o Uruguai é uma espécie de extensão territorial, frequenta suas praias geladas e sua hospitalidade quente, além de achar que fala espanhol. Essa familiaridade não impede que lá usufrua da sensação de estrangeiridade, já que de fato é outra cultura. Entre as várias diferenças a se observar, está a idade média do uruguaio. Parece um país de velhos. Os anos de chumbo, aliados a uma longa crise, varreram gerações de jovens do país, quadro que recentemente mudou. Portanto, não há motivos para crer que a liberação regulamentada da maconha, se for aprovada pelo senado uruguaio, vá transformar essa terra numa Woodstock permanente. Diria que o país é mais conservador que o nosso quanto aos costumes.
É bom esclarecer, pois o mero anúncio dessa possibilidade despertou uma onda de medo desproporcional. Muitas pessoas, em geral leigas nessa questão, vaticinam o pior. A questão das drogas facilmente abandona o patamar da razoabilidade: quando se trata de diferentes formas de gozo a paranóia assombra o pensamento. Dividimos o mundo entre quem goza assim ou assado, o que pode e o que não pode, tememos desejos não catalogados e ainda não domados, o velho problema da tentação.
Sucumbimos ao pânico imaginário de, se experimentadas, essas formas diferentes de prazer nos dominarão, ignorando que somos mais fracos na fantasia do que na prática. Torcemos os dados e as experiências para explicar nossas crenças de que gozos não admitidos põe em risco a civilização. O álcool e o cigarro não trouxeram o apocalipse, mas a maconha o faria, o sexo livre após a pílula não nos jogou na devassidão, mas os homossexuais o fariam. O padre interior que (todos) temos é convocado a vociferar contra a decadência que estaria à nossa porta.
O que pode fazer possível essa nova postura do Uruguai frente à maconha é puro pragmatismo, buscando uma solução para o consumo endêmico dessa droga. Duas questões de fundo os auxiliam nessa decisão: a tradição laica do país é muito marcante, o que os religiosos pensam não pesa; segundo ponto, eles são mais críticos do que nós na importação do modelo americano de saúde mental, contaminado de um moralismo puritano, sob uma fachada científica. No Brasil, aderimos com entusiasmo a essas ideias que economizam variáveis e superestimam a influência química. Isso nos impede de buscar, como o país vizinho, alternativas ao modelo fracassado da tolerância zero e criminalização de tudo que tem relação com as drogas.
O tráfico é uma hidra, podem cortar as cabeças que elas rebrotam automaticamente. Enquanto existir demanda e proibição haverá tráfico. Tanto aqui como em lugares com polícias melhores. Temos a ilusão que a repressão deixaria nossos jovens longe da droga. Isso não resiste a qualquer prova de realidade, qualquer um que queira fumar maconha consegue sem delongas. Apenas deixamos os usuários mais próximos de péssimas companhias e transformamos a droga em ótimo negócio.
O que o Uruguai quer fazer é parar de se enganar e encarar isso como uma realidade que precisa outra abordagem. A maioria dos que fumam não quer parar e não se acha um drogado. Consideram que, se álcool e fumo, drogas comprovadamente perniciosas, são livres, por que não a deles? E dizem mais: se nem todo consumo de álcool é alcoolismo, porque qualquer consumo de maconha seria drogadição?
A maconha está envolta em dois mitos. Primeiro o de que seria uma droga leve, pelo fato de praticamente não fazer internações. Sim, mas como os efeitos não são agudos, ela pode fazer um estrago crônico. Não é sem conseqüências acostumar-se a anestesiar a vida, cortando a angustia produtiva que nos impulsiona e coloca questões. É bom lembrar que se pode fazer o mesmo também com antidepressivos e ansiolíticos tomados sem indicação correta. O outro mito é que ela seria uma porta de entrada para drogas mais nocivas. O contato com essa população, especialmente os que fazem uso recreativo e eventual, não nos dá margem para pensar isso. Aliás, várias vezes encontramos o contrário: quem usa maconha para ficar longe de outras, especialmente da cocaína, de maior potencial destrutivo. Se for para pensar em porta, o álcool de longe parece ser a mais escancarada.
Talvez o Uruguai tente sair desse conto da carochinha que o drogado é fruto de um simples encontro com a droga e que essa substância é um canto de sereia que o captura para uma forma de gozo aprisionante e irrecusável. As pessoas não se tornam toxicômanas apenas porque as drogas existem, isso ocorre porque algo vai muito mal com elas, estão sem rumo e acima de tudo estão desencantadas com a própria trajetória e com a vida. As drogas são automedicações contra a dor de existir. Tanto que as desintoxicações não funcionam se não houver uma retomada mínima de alguma significação para suas vidas. Sem a droga apenas retornam às suas existências vazias, por isso tantos recaem.
A grande vantagem de demonizar algumas substâncias e culpá-las pela nossa miséria é a de nos colocar fora da equação. Enquanto pais não precisamos nos confrontar com a educação falha, omissa, ou vazia de sentido e valores que proporcionamos. Tampouco precisamos olhar para as drogas lícitas, largamente usadas e abusadas, mas que sendo “receitadas” seriam menos aditivas ou daninhas. Nem refletiremos sobre o preço que pagamos por viver numa sociedade baseada no consumo supérfluo, que acredita que é a felicidade se compra com gadgets. A droga é apenas uma modalidade de consumo específica, mas o fundamento é o mesmo: existiria um objeto que possibilitaria um atalho para a felicidade. Ou seja, buscamos um sentido fora dos laços humanos para nos satisfazer. O drogado é um consumidor levado às extremas consequências. Dar todo esse poder a um objeto é uma mentira atraente, tão logo desmascarada pela urgência de continuar consumindo. Qualquer comprador conhece a sensação de saciedade triste, passada a novidade. Toxicômanos, o que não é o caso de todos os usuários de determinada substância, são apenas aqueles cuja vida se reduziu a muito pouco, a uma luta inglória contra o próprio vazio, uma sucessão interminável de encontros com seu objeto de obsessão, de saciedades, que deixam lugar a um buraco ainda maior. Por isso os drogados são descontrolados, porque sem esse encontro, e mais a cada novo encontro, descobrem-se nada, ninguém. O detalhe é que não se cai nessa tentação de reduzir-se a tão pouco sem sentir-se já previamente miserável de valores e de esperança.
O pânico de que a maconha leve massas de jovens à drogadição se baseia na ignorância de que o que leva alguém a ser assim não é uma droga mais leve, consumida anteriormente, mas sim uma subjetividade de horizontes mínimos. A saída para quem se sente e espera tão pouco, acaba sendo a de levar uma existência dedicada a esse prazer agoniado, ao encontro dessa paixão simplória. Se partirmos do pressuposto de que essa tentação é tão irresistível para tantos, o leitor há de convir: o problema não são as drogas, somos nós.
Excelente! Texto lúcido, esclarecedor e verdadeiro. A sociedade precisa de vocês como profissionais e formadores de opinião!
Sr. e Sra. Corso, tenho algumas refutações a fazer ao vosso artigo. Não os conheço nem tenho costume de responder a articulistas, mas pela importância do tema, e pelo alcance que os senhores podem dar a ele, opto por contribuir. Seguem abaixo alguns trechos do seu texto que resolvi destacar, e logo em seguida as minhas considerações.
1) “Temos a ilusão que a repressão deixaria nossos jovens longe da droga. Isso não resiste a qualquer prova de realidade, qualquer um que queira fumar maconha consegue sem delongas. Apenas deixamos os usuários mais próximos de péssimas companhias e transformamos a droga em ótimo negócio.”
– Submetendo-me a um teste de realidade, neste exato momento, em que não se consegue maconha na primeira esquina, pergunto-me: onde raios posso conseguir um baseado, acaso eu o queiro fumar, digamos, agora? A isso eu chamo delongas. No entanto, descriminalizada, eu teria maconha à venda, talvez, na vendinha aqui do lado. Não é que temos a “impressão” que a repressão deixaria nossos jovens longe das drogas: ela deixa. Mas de forma insuficiente, por essa mesma repressão ser corrompida. Sabe o que é transformar a droga em um ótimo negócio? Visite qualquer dia o website da Dr.Green Store (http://www.drgreenstore.com/), americana (daquele país que os senhores dizem envenenar com puritanismo nossas questões de saúde mental…eu até gostaria de exemplos, se possível) ou visite outras lojas da Califórnia ou então holandesas, que vendem a mesma planta com requintes de uma Wine Store. Acham que o negócio da venda da maconha, atualmente, é ótimo? Dimensionem o da venda de cocaína, crack, alucinógenos e, primo próximo, o do comércio ilegal de armas. Qualquer usuário “recreativo” de maconha faz seu uso em péssimas companhias: ou de pessoas que reforçam e apoiam seu vício, ou da sua própria solidão desoladora e confusa, na qual, sob efeito da droga, acredita histerica ou alucinadamente encontrar a luz no fim do túnel.
2) “Enquanto existir demanda e proibição haverá tráfico.”
– Logo, deixando de existir demanda e proibição, cessa o tráfico. Ok, mas a demanda não deixará de existir, havendo proibição. Isso ameniza o tráfico em quanto precisamente? E o tráfico das outras drogas, também cessa? Os senhores não acham que estão tirando conclusões, com o perdão do trocadilho, BASEADOS em um abstratismo universal, quando seria melhor citar exemplos concretos? Aliás, não me ocorre que o tráfico de drogas tenha qualquer oponente com o potencial de anulá-lo. Pelo contrário: os traficantes poderão desfrutar de ótimas oportunidades legais de trabalho no mercado lícito da maconha.
3) “Aliás, várias vezes encontramos o contrário: quem usa maconha para ficar longe de outras, especialmente da cocaína, de maior potencial destrutivo. Se for para pensar em porta, o álcool de longe parece ser a mais escancarada.”
– Encontra-se gente que usa maconha para ficar longe de outras? Mas onde, cáspita? Sua tese sobre o uso da maconha como amortizante (ou como o senhor diz, anestésico) das dores da vida é obviamente precisa, porém contrasta drasticamente com o argumento anterior. A maconha abre sim caminhos para a curiosidade de querer saber como é com LSD, cocaína, extasy – e aí, já não mais como anestésico de nada, mas como busca do prazer pelo prazer. Esse sim, o falso caminho da felicidade.
4) “A droga é apenas uma modalidade de consumo específica, mas o fundamento é o mesmo: existiria um objeto que possibilitaria um atalho para a felicidade. Ou seja, buscamos um sentido fora dos laços humanos para nos satisfazer.”
– Colocar a droga como modalidade de consumo (e de mesmo fundamento) na mesma barca de comprar um carro, comprar um sanduíche, comprar um livro, comprar um cachorro ou comprar uma cadeirinha no céu na missa de domingo é subestimar os efeitos específicos de cada objeto de consumo, sua relação com o consumidor e seu potencial de dependência.
5) “O pânico de que a maconha leve massas de jovens à drogadição se baseia na ignorância de que o que leva alguém a ser assim não é uma droga mais leve, consumida anteriormente, mas sim uma subjetividade de horizontes mínimos.”
– O problema não é só a drogadição como conseqüência da legalização da maconha – e não precisa ser de massas, pois se 1 pessoa chegar à dependência pelo acesso facilitado, já é uma tragédia – mas, também, a imbecilização a que leva o usuário, em curto prazo de tempo, mesmo ele sendo “usuário recreativo”. A maconha tem essa característica fenomenal, que nem mesmo o álcool consegue: o usuário “vira” filósofo, poeta, articulista, artista, um intelectual virtuoso, mesmo não estando mais sob efeito. A alienação frente à realidade que o uso da maconha estabelece, bem como o estado resignado quase permanente, é uma característica da droga que só mesmo um governo maquiavélico enxergaria como útil.
Excelente texto, como sempre.
Os psiquiatras da área da drogadição não enxergam ou não querem enxergar assim. Alguns inclusive, se agarram na idéia de que a maconha é a ” porta de entrada ” para outras drogas. Parece que eles, os psiquiatras, fazem parte do sistema. Um sistema movido aos remédios de laboratórios, que enche o bolso de muitos.
Obrigada pela reflexão. Gostei muito. Geralmente, vejo textos que falam de saúde e de tráfico, mas não falam de subjetividade. Ou então leio outros que só falam da subjetividade, como se o mercado de drogas (bastante objetivo e lucrativo) não existisse ou não fosse uma questão tão importante. Abordar o problema com todas as suas arestas é mais difícil, deixar de se enganar também. Um abraço saudoso. Déborah
Concordo plenamente com o autor do texto!!!
E assim como existem os alcoólatras também existirão
Os usuários que vão ter problemas com o consumo demasiado!
Mas uma coisa e certa, ps jovens que quiserem usar drogas vão
Encontrar em qualquer lugar na mão de traficantes desprezíveis
Sendo que podiam comprar de fonte limpa e segura, pagando impostos
Ao governo que usaria (assim esperamos ) este dinheiro para o tratamento
De usuários de drogas pesadas e porque nao até os alcoólatras que até onde eu
Saiba nao recebem nenhuma ajuda do governo para se tratarem!!! Mas álcool e licito e maconha nao!!! O álcool tira milhares de vida todos os anos, destrói famílias inteiras nas estradas , e porque e permitido beber e fumar um nao? Acho que o assunto realmente merece ima discussão mais abrangente e sem hipocrisia!!!
Achei a postagem extremamente instigante e o assunto atinge várias áreas de estudo. O consumo existe em larga escala e todos sabemos desse fato. A hipocrisia da nossa sociedade, o comentário sobre as drogas lícitas comprova o fato e reforça essa tese, tenha contribuído para que as pessoas no nosso país, apesar do cenário do post ser o Uruguai continuem passando ao largo ou apenas criticando, ou seja, tocando as fímbrias de tão importante fato social. A hipocrisia pessoal e social vigente continua contribuindo e preservando o “status quo” moral e jurídico em vez de formar fileiras com artigo tão abrangente quanto pragmático e real, além de brilhantemente escrito. Por que não descriminalizar algo que acontece nas ruas e em milhares de residências, que é sintoma e não origem, mais uma vez concordo com o artigo. ” Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. ( Bretch )
Muito pertinente , neste momento que estamos vivendo e, como Psicologa Clinica , vivendo esta realidade, tem muito conteudo a ser pensado! Parabéns! Vania Wainstein
Obrigada por esse texto que consegue construir com palavras aquilo que eu sinto em relaçao a maconha. Preconceito, trafico, repressão, só geram violência. Sempre me perguntei porque as pessoas tem tanto medo da maconha, enquanto o alcool, os calmantes e outras drogas licitas são socialmente aceitas e até incentivadas. Na questão da droganiçao não é substância que comanda:é o sujeito. A maconha só é porta de entrada da geladeira! 🙂
Admiráveis e lúcidos Diana e Mário. Obrigado por mais esse excelente artigo. Mesmo não sendo usuário de maconha, creio que o controle que o Uruguai pretende fazer sobre seu uso é uma adequada medida na intenção de refrear o tráfico.
Infelizmente, no Brasil, esse controle seria frouxo e pouco eficaz. E me baseio em fatos reais do quotidiano, como, apenas para dar um exemplo, a falta de “atividade” de agentes de trânsito em Porto Alegre diante de flagrantes desrespeito às leis de trânsito. Parece mistura de argumentos, mas, de fato, se fosse adotada medida semelhante no nosso país, temo que resvale para o descaso e a incúria. Ainda assim, tentando não entrar nesse lugar de autodepreciação que, nós, brasileiros, ocupamos, gosto de pensar que seja possível minimizar os estragos do tráfico.
Esta é uma abordagem sensata , inteligente e muito consciente do tema. Parabéns aos autores.
Intrigante e instigante leitura, dos altos dos meus 55 anos já fumei maconha, lá pelo inicio dos anos 80, alguns anos atrás fumei em Garopaba com uns amigos, coisa de um baseado, só, experimentei outras drogas na época, nada pesado, tonterias, recreativamente. Fumei cigarro, muito pouco, já deixei a muito tempo, hoje talvez fume um ou tres cigarros ao ano, ou nenhum, já bebi muito álcool, pela proximidade com vinhos bons(Argentina), e uísques bons, importados no Uruguai, hoje não bebo mais, resolvi a um ano deixar de beber, fim, apenas por prazer de deixar de beber, da satisfação de estar inteiro no dia seguinte, de lembrar tudo no dia seguinte, e viver as coisas do prazer carnal em plena consciência do ato, redescobri a satisfação do gosto que tem a água, o gosto realça em toda a comida que como, acho que voces estão plenos de razão: o problema não são as drogas, somos nós. Aplausos ao escrito – outra coisa que chamou minha atenção, o único escrito contra o autor denomina-se – Renan – todos os escritos aceitando a argumentação, tem nome completo, por que será ? Meu nome, Nilo de Lima e Silva Filho – leitor do Mario e da Diana.
Caramba, muito bom!
Sr. Renan, a maconha já é vendida em Porto Alegre ” em qualquer vendinha da esquina”. Ofereceram para minha filha na na entrada de uma papelaria, quando ela mal tinha completado 12 anos. O vendedor não era um “traficante” dentro do estereótipo do que se imagina um bandido, e sim um adolescente branco, bem nutrido, com olhos e cabelos claros. Felizmente preparei minha filha, desde pequena, para não cair neste tipo de cilada. Ela recusou educadamente, assim como recusa cigarros convencionais e bebidas alcoólicas.
Na primeira vez que me ofereceram maconha eu tinha 13 anos, portanto o problema não é novo. Não foi a proibição que me manteve afastada das drogas, sejam elas proibidas ou compradas em farmácias, e sim o conhecimento dos danos que causam.