A nova face do inferno
Sobre o filme O diabo veste prada, moda e fé
A trama de “O diabo veste Prada” é bem simples: jovem jornalista inteligente desce ao inferno do mundo da moda, fascina-se com suas tentações, o diabo a seduz com ofertas de poder e beleza, mas ela resiste a vender sua alma.
Mesmo assim vale a pena, filme ágil e envolvente como o universo que retrata. Embora a jornalista-patinho-feio resista a trocar os seus princípios pela plumagem de cisne, eles sugerem que se você não for até esse inferno ele irá até você. Há uma passagem em que um editor de revista de moda explica que no seu mundo de aparentes frivolidades trabalham os verdadeiros artistas, os que vão influenciar diretamente na vida das pessoas comuns. Ele tem razão quanto ao aspecto da influência. A que aqui vos escreve, querendo ou não, está usando um modelo de roupa, sapato, óculos, cabelo, que um desses artistas inventou. O diabo da moda, portanto, já nos possui.
A moda é uma mania nada nova. Há séculos as classes abastadas procuram ostentar as insígnias sempre mutantes do seu poder. A obsolescência das roupas e objetos, seu valor estabelecido por um mercado movido a coqueluches e manias, lembram sempre que os poderosos lançam, os remediados imitam. Os valores nesse mercado tão subjetivo são imponderáveis, movidos pela fé em que determinadas roupas e objetos são encarnações de prestígio para quem os portar. Afinal, o que é a fé senão acreditar em algo sem questionar? Só com muita devoção para acreditar que uma bolsa possa custar dezenas de salários mínimos só porque é de certa marca. Haja dedicação religiosa para levar uma legião de pessoas a uma disciplina física tão monástica: rígidas dietas, exercícios à exaustão, sapatos torturantes. Mas se isso se tornou uma nova forma do sagrado (ler “O Império do Efêmero”, Gilles Lipovetsky), porque demonizá-lo?
As personagens do filme são um bando de narcisos, incapazes de relações humanas, mas especialistas em todo tipo de trapaça para subir sempre mais. Por isso seriam diabólicos. Não deixa de ser interessante essa metáfora religiosa para um mundo tão prosaico. Em meio à vida rápida dos sacerdotes do novo, da alta costura, também há lugar para os impasses. Colocam-se a pergunta pela possibilidade de escolher que conduta tomar, pois cada vez que a protagonista ou seus colegas faziam algo “errado”, revelando-se gananciosos, diziam não ter tido escolha. Como o soldados nazistas que alegavam estar obedecendo a ordens quando cometiam suas atrocidades. De fato, frente às imposições do mercado e de sua musa, a moda, freqüentemente parecemos marionetes.
O filme lembra que, sim, há escolha, valorizando a personagem que resiste à tentação. Mas também percebemos que o demônio da moda está em todas as partes, oferecendo imagens e objetos que dão forma a nossos desejos, pelos quais tornamo-nos capazes de matar ou morrer. Dessa tentação nenhum de nós está livre. É engraçado que na sociedade capitalista, pautada pelo discurso de exaltação da liberdade, seguimos nos retorcendo na arena de disputa entre o sagrado e o profano. Nada se perde, tudo se transforma.