Ainda o Dr. House
Análise desse personagem da série de TV homônima
Duas semanas atrás, a jornalista Cris Gutkoski escreveu sobre o seriado House neste caderno. Não é réplica nem espero tréplica, é apenas continuação. Gostei do artigo, gosto da série, então emendo umas linhas que espero estejam à altura dele. Não tenho o mesmo entusiasmo de fã com a série que a Cris, mas, como ela, penso que o seriado dá mesmo o que falar.
House é uma série de TV americana centrada na personagem que lhe dá nome, ou seja, o Dr. House, cujo seu sucesso o coloca acima das outras, e creio que essa empatia do público não é gratuita. O esquema é simples, House é um médico especialmente brilhante que só se dedica a casos que lhe desafiam a inteligência. A cada episódio vemos a o doutor encontrar a saída dentro de um labirinto de sintomas que não fazem sentido. Em quase todos, ele arranca alguém dos braços da morte, sempre quando quase já é tarde demais. Não espere um médico bonzinho e compreensivo, House é dedicado, mas é o mais mal-humorado, antipático e grosseiro médico da história da TV, e arrisco, do cinema. Com os que lhe são próximos é ainda pior, maltrata a todos que ama.
De onde provêm tanto entusiasmo com esse misantropo? Cris lembrou-nos do conforto do reencontro com os mesmos personagens que esse formato parecido com a novela nos traz. Gostaria de centrar na análise da personagem, acho que ele é o grande achado. Em primeiro lugar temos um enredo policial, ao modo Sherlock Holmes. A fórmula é a mesma das histórias policiais, só que o inimigo oculto é a doença traiçoeira. Ela não mostra sua face diretamente, esconde-se no corpo sofredor do paciente.
Como nos mistérios policiais, a busca de House visa reunir indícios mínimos e pela via da dedução chegar à conclusão, à revelação da doença culpada. A cura é uma mera conseqüência, apenas um epílogo da aventura da descoberta. Todo o aparato tecnológico de ponta está à disposição desse médico detetive que revira as nossas entranhas pedindo mil exames até encontrar o mal insidioso. Não deixa de ser irônico, que no mundo real os médicos são tão mais respeitados quanto menos exames necessitem para chegar a um diagnóstico, usando a cabeça no lugar das máquinas. O que o paciente tem a dizer sobre o mal que lhe aflige em geral é considerado bobagem, mentira. Para House são os sintomas do corpo que contam.
Mas esse detetive é muito particular. Ele teve um coágulo na perna mal diagnosticado e quase a perdeu, e depois disso vive num inferno de dor crônica que o leva a ser dependente químico de analgésicos fortes (geralmente Vicodin) e a andar de bengala. Só quem teve uma dor dessas pode saber o mau humor que brota dessa situação, e a desesperança que é acordar todo dia com essa amiga indesejável agarrada a um membro. Essa posição lhe faz ficar num lugar único, ele é médico e paciente ao mesmo tempo. House representa a onipotência da medicina, mas tem o fracasso dela inscrito no corpo, ele não tem cura, apenas alívio. Ele prescreve remédios e os toma o tempo todo. Ele detêm o conhecimento sobre as doenças, mas está subjugado a uma. Ou seja, ele é médico, mas é um de nós, ele sabe o que é sofrer.
Os antropólogos e folcloristas o classificariam como um trickster, ou seja, aqueles seres que embaralham as classificações justamente por estarem nos dois lados. Por isso mesmo nunca sabemos o que esperar dum trickster, ele pode nos tratar mal ou nos tratar bem, pode nos roubar ou nos dar um pressente, nos bater ou nos tirar duma enrascada. Sua essência é a imprevisibilidade: esse é House.
Freud estava certo quando dizia que viveríamos tempos hipocondríacos, nunca a preocupação com o corpo foi tão grande. Transformamo-nos em babás eternas de nosso corpo frágil e entre esses cuidados obsessivos com a saúde está o pânico da doença. Partindo desse zelo, para desenvolver uma hipocondria, esse tipo de paranóia invertida, onde o perseguidor vem de dentro do próprio corpo, é só um curto passo. O inimigo já não está no mundo, mas se esconde dentro de nós, esperando um momento de descuido para nos ferir, portanto todo cuidado é pouco.
Os seriados que envolvem medicina aproveitam essa onda, falam dos nossos medos, contrabandeiam a ilusão de conseguir mais informação sobre as doenças. Hoje os médicos em seus consultórios precisam discutir os diagnósticos com pacientes formados na prestigiosa Google Medical School. Esse “saber” sobre a doença fornece uma idéia de controle, como um espantalho destinado a afugentar a morte, ou ainda, na idéia da Cris: “como se a morte, fosse, também ela, uma ficção”.
O establishment das ciências médicas hoje é de um determinismo materialista radical. A homossexualidade é genética, o autismo idem, depressão é um desarranjo da química cerebral, os nossos antepassados com maior capacidade de retenção de energia foram selecionados e isso nos faz sermos obesos, e por aí vamos. A experiência de vida e a nossa família pouco contam, seríamos pré-destinados, portanto é inútil pensar em nossa trajetória e em nosso passado. O que acaba sendo uma boa notícia: afinal, não seríamos responsáveis por nada. Aproveitem! Não somos sujeitos de nada e somos “assujeitados” a tudo. Das idiossincrasias do desejo sexual, passando pela agitação motora, chegando ao comportamento serial killer, de tudo, mas tudo mesmo, de alguma forma, a biologia daria conta.
Em House isso vai ao paroxismo, os pacientes dele nunca são conversivos, hipocondríacos, psicossomáticos, raramente têm quadros auto-imunes, tampouco as fibromialgias com sua névoa de indefinição comparecem, nem ao menos uma enxaqueca idiopática o questiona. Deve haver uma competente triagem prévia no Princeton-Plainsboro Teaching Hospital, que afaste esses pacientes, que tantas dores de cabeça dão aos clínicos. Seus pacientes realmente têm algo no corpo, às vezes até a alma sofre, mas o bisturi resolve quase tudo, a subjetividade nunca conta nem é causa de nada.
Em várias mitologias, os seres que mostram uma assimetria corporal, especialmente no andar, são os que de alguma forma já estiveram do outro lado: conheceram o mundo dos mortos, voltaram e no seu corpo ficou uma marca dessa viagem. Será que é só coincidência House mancar? Ou é mais uma marca de que ele simboliza um mediador dos mundos, aquele que conhece a passagem e escolhe (nesse caso protege) quem passa? Enfim, acredito que a personagem oculta desses dramas é a morte e House é seu competente toureiro. Nós o amamos como a um anjo torto da morte, afinal, nunca se sabe, ele pode nos dar mais uns dias.
Adorei o post! Sou fã de House tbm e já acabei a série.
Sou estudante de psicologia,assisti á todos os episódios do House…talvez demorará anos para se gravar algo novamente tão espetacular.Na verdade ,esmiuçar o tema “Dr.House é como estudar Freud :inesgotável.