Analfabetismo místico
Sobre tautar ideogramas
Não tatuaria um ideograma chinês, por mais que desejasse que as palavras sorte, felicidade ou saúde penetrassem na minha carne até fazerem parte inerente de meu ser. Nada contra tatuagens, o problema é com os ideogramas.
Uma lenda urbana que escutei confirmou minha preocupação paranóica: um mestre oriental visitante perguntou a uma moça se ela sabia o que diz a sua tatuagem, ao que ela respondeu: amor e felicidade. Já o mestre revelou o que de fato estava escrito: carne fácil. Na minha fantasia, um oriental teria elaborado um catálogo, desses que o cliente e seu tatuador utilizam para escolher o motivo a ser desenhado, contendo falsos significados. Seria um terrorismo psicológico, destinado a fazer de bobos aqueles que, fascinados com os mistérios do oriente, se fazem marcar com seus símbolos, sem um mínimo de iniciação nestas culturas tão diversas da nossa. Além disso a invasão dos ideogramas não se limita às tatuagens, ele se espraia por todo tipo de objeto, nos carros, roupas, xícaras…
Semelhante coqueluche oriental está ligada ao que alicerça minha fantasia: trata-se do desconhecimento que empresta poder mágico a um alfabeto diferente. Quando somos pequenos, as letras são tão insondáveis como os ideogramas. Até o momento em que as crianças reconhecem as letras do seu nome por todos os lados (inaugural da alfabetização), tudo vem marcado com caracteres incompreensíveis. Freqüentemente esquecemos a importância de termos começado nossa vida analfabetos e ficado assim uns quatro ou cinco anos. Ao ser iniciados nos mistérios do código escrito, o efeito é similar ao que produz a tradução daquelas músicas em inglês que achávamos tão espirituosas: elas se revelam babacas, há um certo desencanto. Tudo o que era dito, quando incompreensível parecia ser tão importante. Gente grande parece falar sobre assuntos grandes (dos quais a criança mal pesca pontas de sentido), usa palavras difíceis e entende os significado desses caracteres mágicos que estão por todos os lados. Doce ilusão.
Além disso, nós inflacionamos nossa língua, falamos demais. Somos uma cultura de gente tagarela e assim a palavra perde seu gume cortante. Os orientais parecem jogar menos conversa fora. De qualquer maneira, seu alfabeto se presta para que a cultura ocidental possa celebrar a magia das palavras incompreensíveis, mas plenas de sentido. Estes ideogramas escolhidos só dizem coisas transcendentes, do tipo que gastamos de tanto usar, mas devem ser sempre lembradas, como amor e paz. Palavras que, pela relevância de seus significados, se não são tratadas como mágicas, deviam ser. Não deixa de ser um exercício poético querer renovar a força das palavras.