Aproveitando o leite derramado
Sobre narrar a própria vida
Tinha tudo impresso, mas li mal os dados e perdi o avião. Alguns telefonemas depois, desmarcados os compromissos, finalmente parei de me martirizar por ser tão distraída e descobri que tinha uma manhã livre. Porém, na balbúrdia do aeroporto não havia clima para ler o livro sobre psicanálise da depressão que carregava comigo, já estava bem deprimida com minha trapalhada. Na livraria, o título providencial do último livro de Chico Buarque – Leite Derramado – foi um encontro revelador.
O livro consiste no monólogo contínuo, sem separação de parágrafos, de um velho decrépito e gagá, semi-abandonado em uma cama de hospital, que vai narrando sua vida várias vezes, em sucessivas rodadas. A história que ele conta se repete, a cada vez com novos detalhes ou mesmo em diferentes versões para os mesmos fatos. A demência senil da personagem seria a razão das incoerências do relato, mas sabemos que não é bem assim. Não somos muito diferentes dele quando contamos nossa vida para alguém: nossa história é sujeita a inúmeras revisões, os fatos mudam conforme a ocasião do relato, ela se modifica conforme o interlocutor e o estado de espírito com que narramos.
Em meio à verborragia do senhor Eulálio d’Assumpção, homem de berço nobre e destino medíocre e triste, os desencontros e fracassos vão mudando de significado e contexto. Enquanto sua trajetória de poucos méritos vai assumindo algum sentido, ele elabora perdas, perdoa seus algozes e as próprias incapacidades, conforma-se com os fracassos dos descendentes, exalta os antepassados. No limiar da existência, sua história terminal parece estar sendo ainda escrita, em processo de ser formulada. Nossa vida é uma narrativa em curso e somente o último suspiro selará as aventuras que deixaremos de viver ou imaginar. Até esse momento, tudo pode ser re-interpretado.
Uma manhã perdida no feioso aeroporto de Curitiba foi um turno encontrado com um livro que há muito queria ler. Minha culpa era óbvia, afinal foi um lapso que me proporcionou a manhã inteira sem trabalhar. Não seria estranho aos meus hábitos dedicar o inesperado tempo livre a ficar me acusando pelo erro, enquanto fingia para mim mesma que estudava psicanálise. Mas o título do livro de Chico foi uma espécie de interpretação que me resgatou para uma saída mais criativa. É preciso aproveitar o leite derramado, sem lágrimas inúteis fazer dele um espaço para reinventar-se. Afinal, tudo pode ser reeditado, até o ponto final da morte. Só depois disso, nossa história terminou e quem quiser, que conte outra.