Armarinho

Sobre o divórcio dos os antigos dons femininos

Não sei corte e costura, mas prego botão, faço bainha e cerzidos, também posso bordar pontos simples e até tricotar algo que lembra um cachecol. Essas pequenas habilidades dão um mínimo de autonomia para não contratar costureira para coisas banais. Mantenho um pequeno costureiro para essas tarefas, o que se revela bastante complicado. Encontrar um armarinho na maior parte dos bairros é pior, perdoem o trocadilho infame, do que achar uma agulha num palheiro. Para quem não sabe (homens e mulheres), armarinho é uma loja especializada em aviamentos de costura, que são os apetrechos necessários para tal fim.

Perto de casa havia uma loja de 1,99 que fechou, onde funcionava uma espécie de armarinho clandestino. Entre flores de plástico e estatuetas de gesso, era possível comprar alguma linha (esqueça cores mais ousadas), talvez um fecho, mas não se esperava encontrar linhas de bordar e botões. O que foi que condenou esses lugares à extinção, ao ostracismo, à raridade?

Fiar, tecer e costurar historicamente sempre fizeram parte da condição feminina, tornando-se quase seu sinônimo. Porém, na conquista implacável de novos territórios a que nós mulheres nos lançamos, abandonamos com desprezo tudo aquilo que fazia parte do confinamento doméstico. Por milênios a metade fêmea da humanidade viveu exilada da vida pública, alienada de todas as decisões importantes, inclusive as que afetavam seu destino. Em sua gaiola, ela podia costurar e tecer, apenas na reta final do exílio feminino, algumas privilegiadas conquistaram o direito de dedicar-se a ler e escrever. Não admira tenhamos feito um divórcio litigioso das agulhas.

Temos assistido alguns resgates comerciais ou lúdicos das artes femininas: mulheres artistas têm ateliês de costura, assim como cozinheiras gourmets fazem das antigas ocupações um bom divertimento ou negócio. Mas reparem, aqui também elas estão avançando sobre o espaço dos homens: foram eles que fizeram da costura e da comida um comércio, pois o trabalho feminino sempre foi expediente interno.

Não seremos vistas entrando num armarinho, no máximo numa loja de Patchwork. Na realidade cotidiana, orgulha-nos a incapacidade de executar tarefas que seriam naturais às avós. Foi uma alienação necessária para criar uma nova identidade para a mulher. Mas talvez hoje possamos evitar a infantilidade adquirida: mulheres agora precisam de outros para vestir-se e alimentar-se, reproduzindo a impotência que os homens sempre tiveram no lar. A feminista Betty Friedan os chamava de “homens-criança”: no mundo eram importantes, em casa incapazes de cuidar da própria higiene. É triste copiar tanta inermidade. Uma boa meta para a cruzada feminina pela libertação talvez seja resgatar os dons e a sabedoria das nossas antepassadas. Incluindo a costura, entre tantos outros. Ou ao menos voltar a ser capazes de pregar os próprios botões.

PS: descobri um armarinho na minha própria rua. Dentro de um brechó!

4 Comentários
  1. Roséli Cabistani permalink

    Pois é, somos de uma geração que tinha que se livrar daquilo que as mães consideravam a prisão do lar. Eu não podia fazer comida na casa dos meus pais, mas tinha livro de receitas. Adoro cozinhar.
    Legal o texto Diana.bjs

  2. Christiane Neusser Sichinel permalink

    Amei seu texto, cara Diana, você falou diretamente do meu coração. Defendo que devemos ser feministas sim, mas sem abandonar a feminilidade. E a nossa independência vem casada ao fato de sabermos fazer tudo- sim, de sermos verdadeiramente autônomas, e sabermos nos sustentar em qualquer situação. Tenho prazer e orgulho em cozinhar, costurar, visitar armarinhos (adoro!), fazer os reparos e as decorações necessárias para o lar.
    Abraço,
    Christiane.

  3. Carmen Tavares permalink

    É engraçado ver no teu texto algo que sempre acreditei mas, nas muitas vezes que emiti a minha opinião, recebi como retorno olhares um “quequisso!” das outras mulheres. Tenho 48 anos e fui educada para a independência. Lembro do meu pai me ensinando a pregar botões. O mesmo pai que queria me dar uma moto aos 17 anos, quando passei no vestibular, pois achava que era um meio de transporte barato e prático. Na cabeça dele pregar botão, saber cozinhar, ter educação e poder se locomover rapidamente era tudo parte de uma educação para a autonomia. Adorei teu texto, bj Carmen

    • Diana permalink

      que experiência linda, apesar de seres jovem (mais que eu, pelo menos) ela foi além do teu tempo! que pai bacana!
      bjos

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