Auto-ilusão

Texto sobre a falácia da auto susficiência, sobre o filme Muito além do jardim

Entre as tantas palavras que nosso tempo adotou com paixão, uma das prediletas é o prefixo “auto”. E não se trata do automóvel, que tem esse apelido, mas de auto-ajuda, auto-estima, autodidata, autocrítica, auto-biografia, auto-suficiência, ou seja, da autonomia enquanto um ideal. O sujeito auto-suficiente é uma espécie de tradução psicológica do “self made man”, aquele que fez a si mesmo, que foi o grande personagem do capitalismo nascente.

 Afinal, em nosso tempo importa menos de onde você venha, o que interessa é aonde quer chegar, e quanto mais alguém conseguir afastar-se do ponto de origem, maior sua proeza. Se o grande magnata começou vendendo jornais, ótimo, se o herdeiro de um império industrial mudou de ramo, ou modificou radicalmente aquilo que recebeu, imprimindo sua marca pessoal, excelente! Se o intelectual era analfabeto, se a modelo era o patinho feio da escola, perfeito! Vale a capacidade de superação, mas, acima de tudo, o importante é auto-engendrar-se, vingar-se das limitações ou adversidades do ponto de partida, o contraponto entre a determinação do indivíduo e as adversidades do meio.

Nos filmes de ação, via de regra, os heróis são desacreditados por todos e não podem confiar em ninguém. Dependente apenas da própria valentia, inteligência e força a personagem, a princípio um João-ninguém, vence os inimigos e revela-se aos olhos do mundo em toda sua potência. É como nos contos de fadas, onde quem nada valia vinga-se no final feliz, mas enquanto nestes havia fadas, duendes, animais falantes e todo tipo de expediente e ajudantes mágicos, na ficção contemporânea parece que as únicas companheiras na luta contra a adversidade são a solidão e a paranóia. Vire-se sozinho, pois se esperar algo de alguém você só encontrará covardia e traição.

Tal valorização da trajetória individual cria um falso contraponto entre o individual e o coletivo. O mundo fica sendo uma selva que é preciso transpor sozinho, onde não há nenhuma valorização da solidariedade e o trabalho em grupo é inexistente ou inútil. No princípio do “faça você mesmo”, tudo o que precisamos é de força de vontade, paciência e um bom manual de instruções. É como se a vida viesse desmontada numa caixa, como um eletrodoméstico, e os livros de auto-ajuda fossem os manuais de que necessitamos para saber montar e usar, sozinhos. Bom, já que estamos no “auto”, essa é a maior auto-ilusão de que somos capazes. Por mais fortes e virtuosos que sejamos, o ponto aonde chegaremos depende do de onde partimos e a forma como chegaremos lá vai ser determinada pelos companheiros de jornada. A vida é um trabalho em grupo, apesar de hoje negarmos isso o tempo todo.

De fato, viemos ao mundo meio desarmados. Um bebê nasce com um corpo que sente como estranho, dotado apenas de alguns mecanismos automáticos de sobrevivência fisiológica e sistemas rudimentares de organização corporal e de conexão com a mãe (ou quem cumpra esse papel). É como se nessa caixa algumas partes do motor, poucas, já viessem montadas. Com infindável paciência, a função materna incumbe-se de ir montando o quebra-cabeça do filho, emprestando-lhe seu olhar, que dá vida e movimento ao corpo do pequeno. Em pouco tempo, proeza incrível, ele consegue erguer-se sobre os dois minúsculos pés e andar ereto. É preciso ter muita confiança em alguém para, instigado por suas palavras e dependurado nos seus olhos, aceitar o desafio de andar como os humanos fazem. Tanta coragem, para afastar-se do chão, da mamãe, e sair em viagem pela vida, conhecendo lugares e aprendendo a falar a língua, provém da solidariedade e do trabalho em grupo da família e do meio ambiente, pois é isso que um é bebê: fruto de uma tarefa coletiva.

Para começar, foi necessário que a mãe tenha tido uma mãe, que colocou nela os rudimentos do que ela transmite ao seu bebê, e  algum tipo de pai, cuja presença a instigou a sair por aí em busca de amor e do desafio da procriação. Além de que a concepção é necessariamente feita a dois, nunca um bebê se refere apenas à mãe, se assim fosse, ele não falaria nem caminharia para longe do corpo dela. Crescer implica em convocar o mundo para dentro da vida individual. Outros seres humanos, o pai, a família, pessoas na rua, escola, as coisas da cultura, como sons e imagens que nos chegam, cedo invadem a praia da vida que se inicia no restrito convívio da dupla mãe-bebê. Enfim, nascemos e crescemos muito dependentes de todo tipo de relacionamento, amor e aprovação.

Os manuais de auto-suficiência nos ensinam que basta estar em paz consigo mesmo que iremos longe. Pois bem, a tal paz consigo mesmo só é possível quando as inúmeras vozes que falam dentro da nossa cabeça estão reconhecendo ou aprovando o que fazemos. Essas são as vozes de nossos pais, dos ancestrais que falavam dentro da cabeça de nossos pais, dos parentes, dos mestres que tivemos, dos amigos que conseguimos, dos amores havidos ou frustrados. Mesmo se partirmos para longe de tudo o que tínhamos quando nascemos e crescemos, certamente levaremos essas vozes conosco. E elas falam, gritam, mandam, discordam, aplaudem ou vaiam, mas não se calam.

Quando penso um exemplo de onde essa ilusão sobre o homem autocentrado  pode nos levar, lembro dum filme que considero um tratado sobre a autonomia impossível. Trata-se de “Muito além do Jardim” (“Being There”, direção Hal Ashby, 1979), com Peter Sellers no papel de um jardineiro desconectado. O tal senhor, nos é apresentado já maduro, no momento em que seu patrão morre e a casa em que cresceu e sempre morou é esvaziada, deixando-o sem teto. Chance, esse é seu nome, até aquele momento nunca havia saído de casa, viveu sem contato nenhum com a vida real e é obsessivamente conectado com a televisão, aparelho onipresente em todas as peças da casa e em todas as horas de seu dia. O filme foi considerado um libelo contra a alienação produzida pela televisão, tal fama também se deve a tradução do título do livro que deu origem ao filme: no nosso país o livro do polonês Jerzy Kosinski ficou com o nome de “Vidiota”. Nesse título encontra-se uma sugestão de interpretação, que atribui sua aparente deficiência mental ao fato dele se conectar apenas com a TV. Contém um aviso, se você fizer o mesmo, também ficará assim!

Mas é preciso acompanhar Chance em seu caminho para fora dos muros de seu jardim, para constatar que a televisão era seu interlocutor possível, pois ele demonstra ter escassa possibilidade de decodificar o que ocorre e ao seu redor. Expulso de seu lar, Chance percorre as ruas pobres e sujas, onde sua casa se localizava e que desconhecia, com o controle remoto da televisão no bolso. Para ele, a tela se expande e julga ter entrado nela, ao invés de saído de seu jugo, como esperávamos. Quando algo acontece de errado, pois é ameaçado com uma faca por um delinqüente, ele aciona o controle remoto na cara do agressor, como se fosse possível mudar de canal na vida, quando a programação não agrada. É uma boa idéia, pena que não funciona…

Por uma reviravolta da trama, o jardineiro Chance se atravessa na frente de uma limusine, num quase atropelamento. É levado então para uma mansão para ser tratado de uma insignificante lesão na perna. Graças a este incidente, por primeira vez anda de carro, de elevador e tem outras experiências que não faziam parte do jardim em que cresceu confinado. Ocorre que os habitantes da mansão, um casal maduro composto de um magnata com uma doença terminal, sua esposa, seu médico e a criadagem, interpretam as tiradas ingênuas de Chance de acordo com seu próprio sistema de referências. Abre-se um festival de equívocos, onde o jardineiro deficiente é tomado como um empresário falido, homem de raro equilíbrio e fala espirituosa, de promissor futuro político. Chance nunca deixou de falar dos únicos assuntos que conhece e lhe interessam, a televisão e o jardim de que cuidava, enquanto os outros contextualizavam suas palavras como metafóricas de algo maior.

Culpar a televisão pela desconexão do jardineiro Chance é o mesmo que tomar um autista, cuja única diversão é assistir o girar das pás de um ventilador, e culpar o eletrodoméstico pela sua patologia. A televisão apenas cumpria o papel de preencher o vazio que havia na cabeça de Chance e dela extraia seu mundo possível, pois, diferente do mundo real e seus habitantes, a televisão respondia aos comandos do controle remoto. Chance era televisão-dependente, o que ele fazia era uma repetição das imagens que via e das frases que escutava no aparelho, mas ninguém se dava conta disso. Por seu comportamento bizarro, todos o julgavam inteligente: deduziam uma genialidade no que não passava de uma deficiência. O filme termina com Chance sendo cotado para ser presidente da república.

Nesta visão paradoxal, na qual se via uma originalidade naquele que apenas oferecia  repetição e estereotipia, temos uma preciosa lição: a constatação de que cada um enxerga no outro aquilo que quer ver e não o que existe de fato. Embora numa forma hiperbólica, Chance e sua debilidade mental denunciam que podemos ser bem sucedidos e poderosos sendo tão desconectados e ingênuos como ele, também vivendo presos em jardins “ilhas”, interpretando o mundo de modo limitado. Com ele também aprendemos o que seria a verdadeira situação, que tanto idealizamos, de alguém independente de tudo e de todos, que se bastasse com seus aparelhos de televisão (ou de outro tipo qualquer), livre do mundo e de seus habitantes. Chance também fascina porque só quer um jardim para cuidar, dane-se o amor, o poder, o dinheiro, coisas que ele nem sabe que existem.

Chance foi considerado o personagem exemplar daqueles que vivem a mercê dos meios de comunicação, o que é correto, mas, paradoxalmente, não deixa de ser um exemplo de autonomia, pois sendo desligado dos outros, ele encarna uma outra maneira de ser um self made man. Passou-se um quarto de século desde o lançamento desse filme, hoje considerado um clássico, mas continuamos sendo tão idiotas como os milionários ingênuos que o acolheram e viam no jardineiro Chance alguém muito sábio. Temos extrema dificuldade em reconhecer que nossa vida precisa negociar seu destino com seu contexto, com o mundo real e com seus personagens, ou seja, as pessoas com que convivemos. A ilusão de autonomia é como o controle remoto que Chance carregava no bolso, que considerava um instrumento mágico para controlar esse mundo imprevisível e suas pessoas complicadas. Ainda, idiotamente, valorizamos esses personagens que voluntária ou ingenuamente parecem independentes dos outros. O jardineiro interpretado por Peter Sellers é apenas um homem limitado, já seu contexto, povoado de personagens aparentemente saudáveis e capazes, esse é feito de todos nós, que somos ingênuos a ponto de crer que é possível viver e vencer apesar dos outros e não com ajuda eles. Como disse, a vida é um trabalho de equipe e é preciso ser muito desconectado para ignorar isso.

Publicado no livro Umbigo é nosso rei?, organizado por Marco Antonio Boa Nova Valério, Ed. Artes e Ofícios
18/01/06 |
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