Automóveis pós-individualistas?

Sobre o filme infantil Carros

Depois de assistir Carros, último filme de animação da Disney-Pixar, você se dirige ao estacionamento e quase cumprimenta os veículos. Não é um sentimento tão estranho: no trânsito, em geral tendemos a confundir o motorista com seu veículo dizendo coisas como: “aquele Uno está louco!” ou “o quê aquela Pajero está pensando que é?”.

Os carros animados se assemelham aos tradicionais animais dos desenhos infantis, através dos quais a vida pode ser dramatizada com a distância necessária. A brincadeira infantil ocorre num outro estado de consciência, o do faz de conta. Manipulando um brinquedo, a criança pode odiar, matar, desejar, competir, trair ou até ser heróica, mesmo sabendo que é frágil, pequena e passiva. Os animais vivem e dizem por procuração das crianças, elas se identificam com eles. Como eles, estão à margem das coisas sérias dos adultos, quer porque são meio selvagens (afinal, estão em processo de se “civilizar”), ou porque se sentem meros objetos de afeto doméstico ou ainda porque têm tão pouco poder quanto um porquinho de granja. Com os carros é um pouco diferente. Assim como o animal representa a marginalidade e a impotência da criança, mesmo que rebelada ou indignada, o carrinho simboliza seu oposto. Carro é veloz, vistoso e potente, como um super-herói, do tipo que anda nas ruas e os pais podem ter na garagem.

Vivemos como se os automóveis fossem parte do corpo, uma espécie de roupa gigante, ou máscara móvel, que movimenta, ilustra e também define nossa figura pública. Dentro dele sentimo-nos integrados à sua imagem, altos e possantes, ou miúdos e versáteis, retrô, humildes, discretos, elegantes… E ninguém melhor do que os americanos, um país onde se usam mais as rodas do que as pernas, para criar esses personagens infantis.

Carros é uma lição de fair play, de valorização da solidariedade sobre a competitividade, de respeito aos mais velhos, do progresso integrado com a tradição, enfim, um filme que valoriza as virtudes que gostaríamos de infundir em nossos pequenos. Mas acima de tudo, é uma celebração saudosista da industria automobilística, cheia de cacos e deixas incompreensíveis para alguém de pouco saber automotivo, como eu. No filme, dos mesmos representantes da relação de distanciamento com a natureza, os carros, pode vir o oposto. O carro é o símbolo do culto à velocidade, da valorização do petróleo, das auto-estradas que furam a geografia sem nada saber do seu entorno. A aposta da história é que deles também possa vir o reverso dessa atitude: aprecie as velharias, curta a paisagem, use combustível não poluente, não corra, dê lugar ao outro. O herói é um carro que no seu processo de crescimento deixa de ser individualista, enquanto justamente um dos ícones do individualismo, talvez a mais irracional das nossas paixões, seja esse centauro mecânico.

Como eles ali nos representam, vale a metáfora de que os mesmos humanos que destruíram a natureza, que se comportam como sanguessugas egoístas e competitivas, podem também ter atitudes mais construtivas. Tomara.

02/07/06 |
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