Bastidores da psicanálise
Sobre o livro Cartas a um Jovem Terapeuta de Calligaris
Há uma velha história, contada como verdadeira, sobre certa bizarrice de um notório psicanalista inglês. O referido senhor considerava o setting de uma análise (seu entorno: como o espaço físico do consultório, a roupa do profissional, os rituais de entrada e saída da sala, etc.) como sendo necessariamente imutável para que prevalecesse a subjetividade do paciente. O analista deveria ser como uma folha em branco, onde pudesse brilhar o mais minúsculo ponto marcado. Para tanto, diz-se que ele teria uma série de conjuntos de roupas iguais, desde o terno e camisa, até meia e gravata, com os quais trabalharia. Essa história casa muito bem com uma imagem pública atribuída aos psicoterapeutas em geral, particularmente aos psicanalistas, segundo a qual se supõe que a profissão obriga-os a uma comunicação lacônica e a ostentar uma face congelada.
Mas a quem serviria falar com uma parede? Por sorte, não é bem assim. A prova disso é um livro recém lançado, Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos (São Paulo: Elsevier, 2004), onde o psicanalista Contardo Calligaris abre seu armário de roupas multicoloridas e mostra sua bagunça. Aliás ele o faz por acreditar que é nisso que reside a alma de nosso ofício. O livro conta histórias dos bastidores da formação de um psicanalista e da sua prática, mas contém duas meias verdades na capa: a primeira é a palavra jovem e a segunda é terapeuta.
Calligaris usa a palavra terapeuta em primeiro lugar para fugir do debate estéril de identidade entre os psicanalistas e os psicoterapeutas de orientação psicanalítica. Afinal, o tipo de tratamento (a profundidade que ele irá atingir) depende da formação do terapeuta, mas também serão decisivas a disposição e necessidades do paciente. Por isso a psicanálise terá seus aspectos terapêuticos e, se houver preparo do profissional, também uma psicoterapia terá efeitos analíticos. Além disso, a psicanálise nasceu do empenho de Freud em curar sintomas rebeldes à medicina de sua época e Calligaris resgata essa força de origem. Ele quer dizer aos analistas que, por mais teorias que façam, a psicanálise é um ofício de cura do sofrimento psíquico. Por este motivo somos todos psicoterapeutas. Quanto ao jovem, a palavra é verdadeira, na medida em que responde dúvidas que assolam os principiantes, porém os velhos devem ter acesso também às corajosas e instigantes provocações que ele faz. No livro está relatada a trajetória percorrida por uma geração de psicanalistas franceses, com palmas para aqueles que a marcaram (na teoria e na prática) e um humor ácido é dedicado às situações ridículas que testemunhou e protagonizou.
Um psicanalista não deve ser um normopata, convém que ele seja suficientemente irreverente e excêntrico, para perpetuar, pelo resto da vida, a coragem que foi requerida para enfrentar sua neurose. Por isso, o livro interessa também aos pacientes, pois ali encontrarão um bom exemplo do tipo de pessoa que viabiliza uma experiência psicanalítica, da qual só queremos algo bem simples: mudar tudo.