Biografias de espectros

Sobre uma conferência de Milton Hatoum, memória e narrativas

Dois Irmãos, de Milton Hatoum é uma experiência imperdível, se você não leu, comece agora. Se o livro já é de deixar uma leitora psicanalista entusiasmada, as colocações do autor em sua palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento completaram o encantamento. Para ele, a “literatura é a transcendência dos fatos”, escreve, como é inevitável, tendo o passado como uma fonte de riquezas, pois “os momentos seminais da vida de um escritor acontecem na infância e na juventude”, do quais, completa: “a distância é importante para inventar essas lembranças”. Hatoum afirma que começou a “re-trabalhar a memória enquanto literatura, quando os velhos da família estavam indo embora” , acrescentando, para meu deleite, que a escrita é “uma biografia de espectros, por isso a literatura e a psicanálise tem algo em comum”. Visto dessa forma, o passado deve ser visto mais como uma história que nos contamos, do que uma que vivemos, ele é sempre literatura, embora somente muito poucos saibam escrevê-la.

Freud nos ensinou que reinventamos nosso passado com as “Lembranças Encobridoras”, ou seja, eventos que não ocorreram bem assim como os evocamos. Elas são como as lendas: têm um fundo de realidade, sobre o qual joga-se uma boa pintura de ficção, porém acabam funcionando como se fossem realmente a nossa história. Ou seja, somos fruto duma experiência, mas não de como ela realmente aconteceu, e sim como nos apropriamos dela, como fazemos a nossa versão do que aconteceu conosco.

Portanto, uma análise não é uma investigação policial em busca desses restos reais. No início de seu trabalho, Freud constatou que suas pacientes histéricas adoeciam de reminiscências, sempre tinham uma história antiga para evocar, para justificar as dores que as afligiam no presente. Mas descobriu que elas narravam antigas seduções, das quais teriam sido objeto, para falar de desejos atuais, de amores que gostariam de estar vivendo. Era com velhas personagens que se montavam essas novas histórias, por que é com os restos do passado que nos escrevemos.

Hatoum revelou-se um mestre da paciência, sua obra, de poucos volumes é prova de que a elaboração exige tempo, distância e coragem de invocar os espectros. De certa forma, é o que todos tentamos fazer, ficamos narrando nossa vida para ver se conseguimos transcender dos fatos banais, recriar as memórias para que elas nos revelem quem somos e o que queremos. Gosto de pensar que é disso que vivem os psicanalistas: editores de obras privadas e secretas em seus divãs.

25/06/09 |
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