Boa trégua!

Sobre férias e o livro A trégua

Quando a vigência dos campos de concentração chegou ao fim, os sobreviventes, prisioneiros de várias partes do mundo, começaram a abandonar a Polônia. Alguns partiram rumo ao que restara de seus países, famílias e casas. Outros, que haviam perdido as referências e esperanças, procuraram outros destinos ou a terra prometida de Israel. Nesse momento, por dentro dos cenários de destruição e confusão que caracterizavam a Europa do pós-guerra, vagava um grupo de italianos provenientes de Auschwitz, do qual fazia parte o escritor Primo Levi.

Devido a burocracias de um planeta em renegociação política, eles foram levados na direção contrária para a qual deviam ser enviados: foram para o norte, para a Rússia. Ali passavam sendo removidos de uma cidade para outra, numa marcha sem sentido, explicações ou informações. Livres da opressão dos nazistas, as más condições de vida e o caráter errático da viagem pareciam suportáveis, passíveis até de serem narradas de forma literária, por vezes até pitoresca. Esse é o argumento do livro “A trégua”, no qual Levi conta a parte final de sua experiência como sobrevivente dos campos.

Ao finalmente aproximar-se da Itália acometeu-os algo maior do que a saudade: o medo da volta. Quem eram aqueles farrapos humanos cheios de memórias inenarráveis? Sentiam “fluir nas veias o veneno de Auschwitz”, faltava-lhes força para voltar a viver. O projeto de retomar um cotidiano que nunca mais faria o mesmo sentido era uma ameaça. Frente a isso, os estranhos desvios que, principalmente através da Rússia, Romênia e Hungria, os levaram para casa, acabaram assumindo o significado de umas estranhas férias. “Os meses transcorridos, embora duros, de vagabundagem às margens da civilização, pareciam agora uma trégua, um dom providencial, embora irrepetível, do destino”, observa Levi.

Talvez a idéia da trégua seja uma ilustração possível para o que podemos esperar das sempre merecidas férias: ficar em um lugar onde sejamos ninguém, onde nossa presença não faça sentido algum e o rumo que tomamos não tenha objetivos pragmáticos. Partir do que nos assombra a alma rumo a algo que representa, mais que prazer e felicidade, uma trégua, um lugar e um momento para não ser. Levi, cujas narrativas jamais eram trágicas ou de autocomiseração, carregava um pesadelo que jamais o abandonaria, não podia almejar mais do que alguma trégua. Quanto a nós, que não tivemos essa vivência extrema, também precisamos algum descanso do nosso cotidiano opressivo, no qual, de um jeito ou outro, sempre nos afogamos. Boas férias, ou melhor, boa trégua!

02/02/11 |
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Um Comentário
  1. Susana permalink

    Nenhuma necessidade de trégua dos seus sempre excelentes posts.

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