Brinquedo assassino sobre adultos e crianças no fim do século XX
Texto sobre violência e abusos
Em 13 de fevereiro de 1992, dois meninos ingleses, Jon Venables e Robert Thomson, ambos de 11 anos, seqüestraram no interior de uma loja de departamentos o pequeno James Bulger, de 2 anos, cuja mãe encontrava-se distraída no momento. Iniciou-se então uma jornada de 5 km, ao longo dos quais Bulger foi arrastado, tendo sido visto ao longo do trajeto por 38 adultos. Ao final Jon e Robert assassinaram James ao cabo de muita tortura.
Em recente reportagem da Folha de São Paulo sobre este e outros crimes, o jornalista Inácio Araújo indaga não só o que está acontecendo para que existam criminosos infantis, mas também o que está acontecendo com os adultos (1). Assim como ao jornalista, parece-me ser impossível pensar as crianças deste fim de século sem indagar sobre elas aos adultos, por exemplo aos 38 adultos que relatam ter visto passar o trio e que nada suspeitaram.
Como forma de contribuir à explicação do fenômeno, vou me dedicar ao tema da relação do adulto com a criança desde o ponto de vista da psicanálise.Para tanto, vamos rastrear o conceito de infância ao longo da obra de Freud desde suas origens teóricas. Trata-se de uma proposta que não nos desvia do tema, pois a infância é para a psicanálise um assunto de interesse que foi arrancado do interior das próprias costelas da neurose do adulto, e lhe é tão complementar e estranha como o vieram ser o homem e a mulher após o evento bíblico. A infância na obra freudiana, antes que um pressuposto teórico foi uma descoberta pessoal e clínica.
Quando, em 1896 Freud proferiu a conferência “Etiologia da Histeria” aos seus colegas médicos, sua primeira grande síntese pública da teorização da origem infantil e sexual da neurose, um de seus ouvintes, o famoso Krafft Ebing a definiu como sendo “um conto de fadas”(2). Na verdade trata-se de uma curiosa coincidência, pois numa carta dirigida a Fliess em primeiro de janeiro daquele ano, Freud intitulou o Rascunho K, em que apresentava estas hipóteses etiológicas de “um conto de fadas natalino”. O crítico Ebing, que pretendia denunciar a inconsistência científica da teoria, foi extremamente perspicaz, pois assistia ao nascimento de um mito contemporâneo: o da origem da neurose no seio da família nuclear, o mito do sujeito construindo-se a partir de uma criança em conflito amoroso, trama de desejos incestuosos de amor e morte que encontrou forma na tragédia de Édipo.
É importante que neste momento possa se admitir a figura do mito como uma história que longe de revelar uma inconsistência, diz de uma articulação cuja importância é tão grande que atravessa os tempos encontrando expressões em indivíduos que sequer sabiam que sabiam disso, que é tão engolfante que se expressa de forma que transcende a compreensão do falante e chega a tomar emprestado a forma onírica da ficção. Não é pouco então quando coloco a teoria freudiana num lugar de ser um narrador privilegiado do mito que faz de cada família uma família digna de encarnar papéis anteriormente reservados aos mais distintos monarcas da ficção.
A família nuclear fez de cada pai um rei, de cada mãe uma suntuosa rainha e de cada filho um conflituado príncipe, é por isso que a psicanálise só pôde nascer na época da derrocada da última grande monarquia. Na ausência da encarnação divina do poder, o rei, o pai passou a ser a fonte do poder, só que tão humano, tão cheio de humanas fraquezas, que tornou possível o nascimento da crença contemporânea, própria do individualismo, de que cada um, singular, pode fazer uma versão pessoal da própria história, escolher o lugar subjetivo que lhe convier e puder conquistar. O “self made man” sabe que pode ir além do que seus pais foram e sonha com um projeto pessoal em que ele possa dizer que construiu a partir do “nada”.
Este mito a que me referia, passando pela tragédia grega, chega aos nossos tempos como freudiano, e nada mais é do que algo que veio recobrir um novo estatuto da relação ao pai, próprio da subjetividade moderna.
“Todas as ciências (escreve Freud a Einstein em 1932), não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta?(referia-se à pulsão de morte) Não se pode dizer o mesmo a respeito de sua física?”(3).
Assim, nosso conto de fadas se inicia com a suposição de que a pré-disposição da histeria eram as “experiências sexuais infantis”. Era o final do século XIX e a novidade era buscar na infância a origem das reminiscências que adoeciam. Mais tarde, em 1905, Freud se abisma de que tenha parecido à ciência mais fácil buscar a explicação das doenças na pré-história genética, ou seja, na hereditariedade do que “noutra fase pré-histórica, aquela que se dá na existência individual da pessoa, a saber, a infância”(4). Ele não teria por que se abismar, pois a experiência ímpar, a história da vida de um indivíduo como determinante de uma doença é uma abordagem que Freud não encontrou préviamente pelo fato de que ele mesmo ajudou a elaborar. A psicanálise é responsável pelo enfoque na história particular de um indivíduo, decorrendo daí um aumento no interesse pela infância.
No texto sobre as lembranças encobridoras de 1899, Freud nos informa da existência da amnésia relativa à infância, que faz com que nos restem lembranças não “provenientes”, mas “relativas” a esse período(5), palavra que, mais uma vez, marca que a infância que é tão constitutiva é ao mesmo tempo inapreensível, é uma vivência irrecuperável pela memória, pelo menos de forma sistemática. Na lembrança utilizada neste texto, que ele diz ser surprendente por sua aparente irrelevância, Freud relata: “Vejo uma pradaria, (…) no relvado há um grande número de flores amarelas. No topo da campina há uma casa de campo e (…) duas mulheres conversam animadamente -uma camponesa (…) e uma babá. Três crianças brincam na grama. Uma delas sou eu mesmo (na idade de dois ou três anos); as outras duas são meu primo (…) e sua irmã que tem (…) minha idade. Estamos colhendo as flores amarelas (…). A garotinha tem o ramo mais bonito e, como que por um acordo mútuo, nós -os dois meninos- caímos sobre ela e arrebatamos suas flores. Ela sobe correndo a colina, em lágrimas, e a título de consolo a camponesa lhe dá um grande pedaço de pão preto. Mal vemos isso, jogamos fora as flores (…) e pedimos pão também. (…) O pão tem um sabor delicioso.”. A referência às flores amarelas desemboca na associação, conexão verbal como ele a denomina, que diz do desejo de defloração da priminha que partilhava a cena, ou melhor de uma bela mocinha por quem se apaixonou perdidamente aos 17 anos em uma situação parecida, a do convívio com uma abastada família do interior. É óbvio que esta idéia certamente não ocorreu ao pequeno Sigmund daquela ocasião.
Se por um lado Freud admite que podemos ter encontros linguageiros com algumas imagens que restam da nossa infância, nunca deixa de supor, por outro, nem quando leva em conta o discurso da própria criança, que há um abismo que nos separa das vivências infantis.Por isso dizia há pouco que a infância nos é complementar mas estranha, e não há melhor forma de explicar esse estranhamento do que a sensação que temos ao ver fotos de quando éramos crianças, duvido que alguém admita que se reconheceu imediatamente naquele bebê gordinhho de bumbum de fora. Não é difcil supor aqui que a presença efetiva das crianças confronta os adultos com o real da infância e principalmente de sua própria infância.
Temos então algo que se vive individualmente e é suficientemente traumático para que sua evocação determine uma doença posterior, mas que pertence a um período que é inapreensível para o adulto. Ao trabalhar com o restante, já não sabemos daquela criança, das flores amarelas, da pequena prima, do pão delicioso, estes só figuram enquanto tais na memória dos adultos que assistiram e participaram da cena. A mulher que fez o pão talvez lembre deste momento, mas não há encontro possível da memória dela com a do adulto Sigmund Freud, pois o que para ela foi talvez um resto diurno cuja lembrança por algum motivo esteja disponível, para ele foi um trecho de vivência que literalmente o constituiu.
A lembrança que um adulto possa ter de um evento qualquer está subordinada a encaixar numa rede que foi préviamente tecida na aurora de sua infânca, a memória deste tecido original porém não é disponível. Na verdade é difícil pensar que “eu nem sempre fui eu”, e a melhor forma de exemplificar isso é a pergunta das crianças quando ao ver fotos do casamento de seus pais, perguntam “onde eu estava?”. Reconhecer a própria infância é reconhecer o quanto o que somos hoje depende do que foi feito de nós o que é tão difícil quanto admitir que se um determinado encontro amoroso não tivesse se dado, nunca teríamos existido, não há coisa mais despótica e antidemocrática que o fato de que nossos pais possam ter suposto a hipótese da nossa inexistência. Para o psicanalista a situação ainda encontra o fator complicador de que esta determinação é proveniente do inconsciente parental sendo, portanto inapreensível para pais e filhos.
Freud viu-se obrigado a admitir que não somente algo se passava na infância como era, surpreendentemente, de caráter sexual. Porém este, que antes de ser um pressuposto teórico foi uma descoberta clínica que emergia do discurso de seus pacientes e acima de tudo da análise de seus próprios sonhos, era tido como resultante de um genuíno episódio de sedução sexual onde o perverso era quase invariavelmente o pai. Quando ainda acreditava na teoria do trauma real e na existência do adulto corruptor, Freud podia pensar numa ação do adulto incidia de forma direta sobre o futuro da criança. Como vocês bem sabem, foi necessário repensar isto frente à possibilidade de que todos os pais assediassem sexualmente seus filhos, ou pelo menos com a assustadora freqüência em que os relatos da clínica pareciam indicar. Complicado ainda pela interpretação sincera dos seus próprios sonhos, onde figurava como possível amante da mãe e, portanto, algoz de seu pai, revelando-se capaz inclusive de desejar sua própria filha, Freud foi obrigado à inevitável conclusão de que o motor de tudo isso não eram um trauma factual, era na verdade o desejo.
Freud constatou que o pai sedutor do discurso de suas pacientes é aquele que não as amou, ou melhor, que não as desejou da forma como elas o viram desejar outra mulher, já em relação à criança, também o lugar que ela almeja no amor da mãe, quando é evocado, já foi senão perdido, no mínimo ameaçado pela chegada ou pela possibilidade de chegada de um intruso.
Assim, para a criança também o objeto de seu desejo é sabido só quando já foi perdido, ou seja, o seio, por exemplo, “é perdido enquanto objeto (real) justamente quando a criança consegue formar para si uma representação global da pessoa que lhe dispensava satisfação”(7). Assim, complica-se a compreensão da infância, na medida em que não há uma correlação direta, tipo ação-reação, entre o que a criança vive e o que a constitui. A criança passa a ocupar o incompreensível lugar de quem depende mas também deseja, cujos pais são reais, mas também são personagens de sua incipiente obra autobiográfica.
A partir de então a família passa a ser composta por pais que sabem que seus filhos fazem e dizem coisas estanhas que eles passam a ouvir como um indício da nascente subjetividade destes, conhecem a versão caricatural e popular do complexo de édipo, mas não sabem lidar com o grande desafio que esta nova posição implica: é impossível admitir a subjetividade infantil e conviver com ela sem receber o incômodo inquilino da memória consciente ou inconsciente da própria infância.
Em 1923, ao reposicionar a questão da sexualidade infantil mediante a novidade da teorização do complexo de castração, em “Organização Genital Infantil”, Freud revisa os tempos do desenvolvimento a partir do ponto em que os “Três ensaios…” o haviam deixado: onde antes se lia um término, ao atingir a primazia genital, deve-se ler agora um recomeço. É necessário agora descobrir a diferença sexual e, com ela, o papel do pai na própria origem. As teorias sexuais infantis ao tentar explicar a origem dos bebês, encontram no papel do pai sua maior incógnita. Os caminhos do Édipo se dividem, a menina e o menino extraem seus papéis sexuais quer do jogo de sedução, quer da identificação, mas o personagem problemático é o pai, a mãe ama e é amada mas ela já está ali, sua presença não é propriamente uma incógnita.
Como vocês sabem, no final da história fica o superego como herdeiro de toda esta função, passando o sujeito para o outro lado do abismo das idades a que me referia anteriormente, a partir da internalização da figura dos pais o sujeito adulto passa a ter com sua infância uma relação de sinistra familiaridade.
Esse processo que inicia ao terminar o percurso libidinal que vai da boca aos genitais, não prescinde de algo que talvez seja uma das maiores lições do relato do caso de Hans: trata-se da importância da presença subjetivamente atenta dos pais para que todos aqueles diálogos se dessem e a investigação sexual infantil chegasse a bom termo. Observem ao ler este caso que esses pais sequer tentaram agir de acordo com o que seria “psicanaliticamente correto”, que foram reticentes em fornecer informações sobre sexo, contaram histórias mentirosas sobre a origem dos bebês, e sequer o pouparam da clássica ameaça de castração. As poucas indicações precisas ou mesmo intervenções interpretativas de Freud, são acima de tudo parte de um diálogo, em particular entre o pai de Hans e seu mestre (creio que é sabido que o pai de Hans era discípulo e a mãe ex-paciente de Freud). Este diálogo sobre o que é ter e ser um pai pode ser mapeado neste caso em todas as direções possíveis, de Freud com o pai, de Freud com Hans, de Hans com o pai, vice-versa, e assim por diante.
Lacan, em seu seminário IV, a respeito da construção deste lugar “pai”, aponta a relevância desta questão para o próprio Freud:
“Não esqueçamos que, em suma, toda a interrogação freudiana, não somente na doutrina, mas na própria experiência de Freud, que podemos encontrar retraçada através das confidências que ele nos faz, seus sonhos, o progresso de seu pensamento, tudo que sabemos agora sobre sua vida, seus hábitos, mesmo suas atitudes no interior de sua família ( … ) – toda a interrogação freudiana se resume nisso: o que é ser um pai? Foi para ele o problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda sua pesquisa está verdadeiramente orientada.
Observem que isto é problema para cada neurótico , e também um problema para cada não neurótico no curso de sua experiência infantil. O que é ser um pai? ” (8)
Peço que os que me ouvem aqui hoje não deduzam que o complexo de Édipo e a construção das teorias sexuais infantis não ocorreriam na ausência de diálogo manifesto com a criança. Não se trata de um dever de falar com a criança de tal forma que ela não veria seu desenvolvimento chegar a bom termo caso ninguém acompanhasse suas conjecturas. Como este processo depende muito mais de que os pais suportem subjetivamente partilhar o momento do filho, é perfeitamente compreensível que na maior parte dos casos se trata de um diálogo surdo, latente e, porque não dizer, inconsciente. É por isso que dizemos que os pais mais que educar, transmitem.
O sujeito que poderia ter conduzido a bom termo suas investigações possui para Freud um bom passaporte para o futuro, o que não é nenhum tipo de garantia, apenas um bom prognóstico. Sobre o resultado da análise de Hans ele dirá:
“Pode ser que agora Hans desfrute de uma vantagem sobre as outras crianças, pelo fato de que não mais carrega dentro de sí aquela semente sob a forma de complexos reprimidos “(9).
No entanto, cabe lembrar aqui, que ao abordar o tema da profilaxia possível, Freud só é taxativo na afirmação de que é fundamental que se submeta à análise o adulto que se ocupa da criança, assim aconselhou aos pedagogos quando teve que se posicionar sobre a possibilidade de uma influência benéfica da psicanálise na prevenção das neuroses (10). Quando indagado sobre o que fazer com as crianças, Freud recomendava aos adultos que se analisassem para poder suportar o que a expressão infantil os faz reviver.
Porém, para tentar analisar o caso de Bulger, seus jovens assassinos e os 38 adultos ingleses, preciso ainda lançar mão de uma última questão: a da agressividade intrínseca do ser humano de acordo com a concepção freudiana.
Em 1932, às portas da segunda guerra mundial, Freud escreve “de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens” e acrescenta ” pode-se tentar desviá-las num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra”, no mesmo texto escreve: “uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros” se tentarmos “substituir a força real pela força das idéias estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência”(11).
Este caminho, que parte de um apoio em um poder real, que se banca no exercício da força física e que desemboca numa identificação, muito me lembra o que descrevia anteriormente do trajeto do indivíduo, que transita do pai real ao pai sepulto nas profundezas de seu ser. Que nos fique desta correlação de que esquecer a origem do poder é tão impossível quanto tentar ignorar a importância da presença real dos pais no processo de constituição do indivíduo.
Apesar de idealizar uma sociedade onde a primazia da razão teria posto fim aos desvarios pulsionais, Freud reconhece o tom utópico desta configuração ao dizer que isto seria tão lento “como um moinho que mói tão devagar que as pessoas podem morrer de fome antes dele poder fornecer sua farinha “.(12)
Conclui-se portanto que os indivíduos devemos nos conformar com as pulsões sexuais e agressivas, assim como com um Édipo não liquidado, mas sepulto.
Estabelecido este trajeto,vamos ao nosso caso. O referido artigo nos debruça sobre uma extensa galeria de casos similares, cuja repetição visa alertar sobre a gravidade de algo que não seria mais um episódio isolado. Assim, aos assassinos de Bulger, somam-se os três francesinhos que espancaram um mendigo até a morte, o americano de 10 anos que matou um bebê cujo choro o incomodava, o rapazinho de 15 que, na França, torturou o irmão de 5 até a morte. Isso só contando uns poucos casos.
A literatura também tem sua contribuição e à primeira vista, prévio a uma maior pesquisa, salta aos olhos o popular “Senhor das Moscas” escrito em 1954 pelo “nobelizado” W. Golding, que vem nos lembrar que fora do controle dos adultos, as crianças sucumbem à sua faceta monstruosa.
Nosso problema é que infelizmente não podemos contar com o recurso literário de Golding de situar esta faceta mediante a figura de um naufrágio, onde só as crianças se salvaram e ainda contando com a ambientação selvagem de uma ilha deserta em qualquer região escaldante do planeta. Temos que suportar a idéia da existência da monstruosa agressividade infantil mesmo na presença dos adultos e no seio de sociedades que levaram nosso atual estágio civilizatório a seu grau mais acabado.
Assustados, os ingleses se perguntam “como nossas crianças se tornaram assassinas?”(13) e retiram de suas video-locadoras o filme “Brinquedo Assassino” que o pai de Venables diz ter assistido três dias antes do crime, como se fosse a influência do filme, e não do pai que o teria tornado assassino.
É preciso liquidar o assunto com a indicação de um culpado, porém, sendo os assassinos crianças, sua punição não encerra o problema. Sendo assim, onde apareceria a figura do adulto, temos a culpabilização dos meios de comunicação, da mídia, de um brinquedo. Um bom exemplo disso foi o movimento de pais americanos pela modificação de uma fala da boneca Barbie: eles julgavam que a frase “eu não gosto de matemática” dita pelas versões falantes da boneca predisporia negativamente seus filhos quanto a esta difícil matéria. Concluímos então que os pais esperam que uma boneca de plástico tenha uma função determinante na educação de seus filhos. Desta forma também o problema da agressividade infantil fica liquidado com a estatística de que em X horas de televisão uma criança assite a Y episódios violentos, que horror! Enfim culpa-se algo que desvie o olhar dali onde a psicanálise o pôs: na filiação.
Os 38 adultos, que em seu conjunto representam o olhar vazio que vê, mas não registra nem intervém na vida das crianças de nosso tempo, eloqüente de uma ignorância permissiva, ou de uma permissividade ignorante, pacto de não intervenção, desde que estes pequenos seres não nos façam olhar o filho que fomos, ou que deveríamos ter sido.
Sendo assim, o crime infantil, que não sei dizer se é novidade, ganha espaço em nosso imaginário alimentado pelo retorno de nossa própria infância recalcada.
São conhecidos os vários meios de defesa possíveis de serem utilizados pelos adultos dispostos a se livrar desta incômoda questão aberta pela criança, desde a negação tipo “eu gosto que ele me chame pelo meu nome e não é que eu não me sinta como um pai de verdade” ou “somos mais amigos do que pai e filho”, até formas mais ou menos ruidosas de recalque, que negam à criança a possibilidade de equacionar uma filiação, que hoje invadem nossos consultórios. Poderíamos chamá-los de “os filhos da Barbie e do Ken” como se os bonecos fossem em si educadores. Mas o que nos ocupa é o retorno do recalcado, que neste viés da agressividade é vivido como um fantasma do tipo “algo pode fazer de nossos filhos pequenos monstros”.
Ao recalcar nossa história individual, o que me parece ser um dos motivos da paralisia educativa constatável na família contemporânea, suprime-se toda possível relação com a infância. Decorrem disso no mínimo dois fenômenos: a solidão atual das crianças, como a do trio inglês de que hoje nos ocupamos, e o retorno do recalcado da agressividade infantil, que retorna como se acometesse de fora à subjetividade de um indivíduo que não se sente pessoalmente implicado. A relação com a infância que se instala aí só pode ser eminentemente paranóide.
Este mecanismo fica ainda mais claro quando passamos ao campo da sexualidade, que, como se sabe, é onde os seres humanos se encontram, ou mais bem se perdem uns nos outros.
Gostaria de me ocupar de mais um fenômeno trazido pela mídia que eu qualifiquei de uma epidemia de denúncias de abuso sexual a crianças recentemente ocorrido em São Paulo.
Considero que o abuso sexual de uma criança é uma coisa simplesmente revoltante, mas sentir asco pelo estuprador é infelizmente o único mecanismo que está ao nosso dispor, e eu gostaria de complicar a vida daqueles que não puderam pelo menos formular a pergunta assim: “o que está acontecendo com nossas crianças?” esta palavrinha, “nossas”, tão boba, aqui vale ouro, pois diz dum engajamento subjetivo daquele que se pergunta.
Vamos aos fatos: nos últimos dias de março do corrente ano as diretoras de uma escola infantil denominada Base, no bairro paulista classe média Aclimação, foram acusadas de drogar os alunos da escola levando-os para um lugar denominado “a casa grande”, onde obrigariam os pequenos, a maior parte ne faixa dos 4 anos a participar de filmes e fotos pornográficos. Foram denunciadas juntamente com seus maridos, assim como o motorista da Kombi escolar e um casal de pais de um aluno da escola cuja casa sediaria as orgias. O caso, um assunto de polícia, é levado aos jornais pelas mães denunciantes de tal forma que ficamos sabendo, por exemplo que o pequeno F. J. Tanoue Chang, filho de Lúcia Eiko Tanoue e do comerciante En Jun Chang, de 4 anos, apresenta lesões compatíveis com atos libidinosos, que conforme foi comprovado pelo Instituto Médico Legal e comunicado a todo mundo via grande imprensa, essas lesões seriam conseqüência de algum tipo de violência sexual, mas também poderiam ser causadas por algum tipo de problema intestinal crônico capaz de provocar cicatrizes na região anal. Outros pais se juntam às denunciantes originais, sendo que alguns preferem ir diretamente aos jornais, sem prestar declaração na polícia. Tratava-se de uma questão de opinião pública mais que de justiça.
Citei estes nomes e todos esses dados que permitem identificar as vítimas, porque queria partilhar o impacto que me suscitou o despudor com que nomes, fotos e outros dados identificatórios foram revelados neste caso. Aliás, isto é ilegal e contraria o estatuto da criança e do adolescente. Os nomes de Venables e Thomson só vieram a público após a condenação.
Assim ficamos também sabendo que V. de Oliveira Souza, 2 anos e ll meses, filha de Silvia Aparecida de Oliveira e Souza, aluna da escola Base, disse que “a tia levantava a blusa” e mostrava os seios e “mexia aqui” mostrando a região pubiana. A mãe não quis prestar depoimento à polícia, preferiu a Folha de São Paulo.
Na seqüência destas denúncias, um dos casais é preso, os outros dois foragidos para salvar-se de um eventual linchamento, a escola é atacada depredada e pichada.
Uma semana depois deste episódio , a curitibana Josiane de Souza começou a desconfiar que algo estranho estava acontecendo quando sua filha chegou em casa dizendo que não queria mais ir à escola, voces hão de convir que é uma das afirmações mais banais e rotineiras que uma pequenina de 5 anos pode fazer. Após ouvir na televisão uma reportagem sobre a escola Base, esta mãe resolveu perguntar à filha se estava senso abusada sexualmente, obteve então o surprendente relato que segue: seis professoras, incluindo a diretora da escola estariam obrigando suas filhas a participar de sessões de sexo oral, as crianças eram organizadas em grupos de 5 alunos, levadas à sala de judô e, sobre o tatame eram ensinadas a acariciar o órgão sexual das professoras com a língua, dedos e mãos. No final das contas seria bem interessante saber como se estruturou o diálogo que deu origem a esta pornográfica história infantil. Esta mãe procurou outras mães e encontrou Liliana Garcia, cuja filha também com cinco anos lhe dissera ter sofrido o mesmo. As professoras da escola curitibana Ling-Ling, tiveram melhor sorte que as paulistas da Base: os outros pais fizeram uma manifestação de apoio à direção da escola e a polícia abriu inquérito com maior cautela. Na verdade, dia 9 de abril, o delegado responsável pelo caso paulista foi afastado em função de erros cometidos durante as investigações e pela prisão de suspeitos sem indícios suficientes, o casal preso foi solto.
Coroando o quadro de precipitação da polícia ficamos sabendo que a mãe do menino supostamente sodomizado confirmou a existência do problema intestinal crônico. Dia 12 de abril somos informados que as mães curitibanas foram processadas por calúnia e difamação.
Encerrando este relato gostaria de trabalhar sobre uma pergunta lançada dia 10 de abril pela jornalista Júnia Nougueira de Sá, ombudsman da Folha de São Paulo: comentando os riscos do papel policialesco da imprensa dizia ela “quem acompanhou principalmente os jornais nos últimos dias, pôde ver que os acusados foram tratados como tarados da pior espécie” e, ao comentar que a imprensa não respeitou a privacidade dos envolvidos, que não pensa nos estragos que pode causar lança a questão “quem gostaria de aparecer no jornal dessa maneira?”.(14)
A resposta que ela espera a esta pergunta é o óbvio “ninguém”, mas sou obrigada a discordar, pois não creio que haja havido ingenuidade neste processo e sim sintoma.
Como me referi anteriormente, a psicanálise nasceu sob o signo do impasse do que fazer justamente com os relatos de sedução dos pacientes. Ocorre que a análise dos sonhos, principalmente dos havidos e analizados após a morte do pai, deu a Freud o que ele denominou de “a chave da fantasia“, com o qual pode interrogar o sujeito que construia essa cena.
Estas mães, juntamente com a opinião pública, não estão expondo estas crianças ao ridículo por maldade ou descuido, trata-se na verdade, creio, da invocação de um pai real, o sedutor, que venha à força marcar o corpo de um filho, pois é impossível não pensar na participação dos pais na elaboração ou construção desses relatos.
Simplesmente não entrarei no mérito de se houve algum fato ou não, a polícia julga não ter nenhum dado, mas mesmo que fosse descoberto algum fato, não encerraria o fenômeno de imprensa e de opinião.
Tornar público que seu filho foi abusado sexualmente de uma ou outra maneira é o mesmo que marcá-lo a ferro, seu corpo e seu destino estarão de alguma forma eternamete enlaçados a este evento, talvez esta seja a modalidade pela qual uma sociedade que não se autoriza à paternidade possa submeter essas crianças ao jugo do poder e da potência parental, subetendo-as ao jugo erótico, que é quando algém pode entregar-se sem dúvidas, pois nada pode fazer. É assim nos pequenos e grandes sadomasoquismos da vida erótica e de alguma forma é também assim neste episódio. A novidade é que o sedutor vem da escola, do diretor em especial, não é um tarado avulso, um qualquer, mas aquele a quem entregam a missão de educar e cuidar os filhos na sua ausência, este deve também marcar seus corpos com a pertença erótica.
Seria tão mais simpático se eu simplesmente viesse aqui partilhar meu asco mediante a possibilidade do abuso que devo me desculpar por introduzir estas incômodas considerações. No entanto, preciso repetir que a delegação a outrem do trabalho parental não é pacífica, os pais contemporâneos não são desleixados, pois se assim fossem não teriam motivo para temer constantemente a agressividade de seus filhos, a influência da frase da Barbie ou dos socos de um ninja qualquer, ou mesmo de algum professor tarado. Estes temores são como sinalizadores de lugares de invocação da filiação e de paternidade através da violência, como nos dizia Freud ao lembrar que na origem da lei está o poder encarnado.
Os pais que vivem nos escombros da liberdade, igualdade e fraternidade, avisam com seu sofrimento, que a agressividade e a sexualidade intensamente incestuosa da infância são uma vivência insuportável, que ao negá-las, pois implicam em admitir a memória da própria infância e, portanto, do quanto se sofreu por e para ser filho, elas retornam enquanto ameaças externas.
A criança que esquecemos, infelizmente nem sempre volta com flores amarelas e pães deliciosos, se a exilarmos no ostracismo voltará como um pequeno assassino, um boneco mortífero e nossos pais como estupradores contumazes.
Os adultos de nosso tempo me fazem pensar naqueles a quem Freud lembrou que o inadmissível na concepção da sexualidade infantil era a sua própria.
Nesse sentido, acredito que cabe trabalhar em cima do que considero ser o corrente equívoco entre o ato e o discurso, trata-se do seguinte: Freud escreveu que a coerção adoecia, que não era mais possível continuar hipócritamente fingindo que a sexualidade infantil não existia, ele esperava que se passasse a levar isso em conta ouvindo o que as crianças diziam a respeito, a reação foi, no entanto, curiosa, pois suspendeu a coerção educativa, como se a questão fosse liberar o ato sexual e não o discurso. Esta atitude condenou as crianças à solidão, em nome de uma suposta liberdade.
Trata-se de lembrar aos adultos, já que de esquecimento se trata, que se tememos os crimes que nossas criancinhas são capazes de cometer é porque tememos o brinquedo assassino que um dia fomos e que, se fizermos pouco caso de nossos desejos erótico-incestuosos com relação aos nossos pais e filhos, terminaremos por temer com que sejam abusados por outrem.
Lembrá-los enfim que é impossível viver sob o recalque da própria filiação sem padecer, no mínimo , da ameaça que o retorno desse recalque termina por constituir: a de que “nossas crianças”, ou melhor, “nós a criança” termine por revelar sua faceta monstruosa .
Em tempo: nos dias 22 e 23 de junho de 1994 a Folha de São Paulo informou que o inquérito sobre a acusação de abuso sexual na escola Base concluiu inocentando os seis suspeitos, e trazendo laudo de avaliação da psicóloga Marylin Tatton, da Delegacia da Mulher, especialista em casos de abuso sexual em crianças que nega evidência do referido crime neste caso.
BIBLIOGRAFIA:
(1) Araújo, Inácio – “Crianças do cinema vão da inocência à perversão”, Folha de São Paulo, 5 de janeiro de 1994.
(2) Freud, S.-“A Etiologia da Histeria”, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976,Vol III.
(3) Freud, S.-“Por que a guerra?”, Rio de Janeiro,Imago Editora,1976,Vol XXII.
(4) Freud, S.-“Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976, Vol VII.
(5) Freud, S.-“Lembranças Encobridoras”, Rio de Janeiro Imago Editora, 1976, Vol III.
(6) Ibidem nota 4
(7) Ibidem nota 4
(8) Lacan, J.-“A Relação de Objeto e as Estruturas Freudianas”, Porto Alegre, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1992, Lição de 13 de março de 1957.
(9) Freud, S.-“Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos”, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976, Vol X.
(10) Freud, S.-“Introdução a ‘The Psycho-analytic Method’, de Pfister”, Rio de Janeiro, Imago Editora,1976,Vol XII.
(11) Ibidem nota 3
(12) Ibidem nota 3
(13) Ibidem nota 1
(14) Os dados citados foram tomados do jornal Folha de São Paulo dos dias 4, 5, 6, 7, 9,10,12 e 20 de abril de 1994 assim como da revista Isto É do dia 20 de abril de 1994.
Escola base foi um começo de pedofilia mal resolvida, agora pedofilia virou uma coisa sem justiça, se tivessem investigado melhor e tivessem corrigo tudo, não existiria tanta pedofilia mais. As crianças precisam morrer para provar que foram abusadas! As crianças que falam não tem valor, por acaso criança mente? Qual a finalidade dessas mães mentirem?
O que pode estar ocorrendo com os sofrimento das mães que sofreram tanta injustiça? ESCOLA BASE, UMA HISTORIA VERÍDICA, QUE A JUSTIÇA NÃO SOUBE INVESTIGAR DIREITO, DUAS CRIANÇAS FALARAM A MESMA COISA, AS MÃES NÃO SE CONHECIAM, COMO ESSA HISTÓRIA PODE SER MENTIRA?
As mães não se conheciam? Tanto se conheciam que foram juntas até a imprensa destruir a vida de seis pessoas inocentes.