Cada criança tem seu Monstro-da-Guarda

Sobre fobia infantil

A conexão é inegável: infância e monstros andam juntos. Basta lembrar das letras das cantigas de ninar, ou olhar para os brinquedos, assistir a um pouco de TV, ler algumas histórias infantis. Lá estarão eles com suas caras feias e sua pele escamosa, rugindo, vomitando fogo ou raios cósmicos. É de pequeno que se conhece o medo, mas ele não ocorre por obra de adultos malvados que assustam as crianças para se prevalecer: os monstros comparecem ao chamado delas. A questão é discernir quando eles vêm para ajudá-las, das vezes em que o susto é fonte de sofrimento.

Nosso primeiro impulso seria deixar essas coisas feias de fora da vida infantil, mas se eles estão aí há tanto tempo e são tão populares, devemos nos perguntar por sua função. Os monstros das canções de ninar, a Cuca por exemplo, catalisam a angustia difusa da criança, permitindo a transição da vigília para o sono. Pode parecer ruim, mas é melhor sentir medo de alguma coisa específica, que tem até nome, do que angústia. O medo é algo que se pode controlar, sabemos onde está, já a angústia não tem contornos, está em toda parte e ninguém pode nos ajudar. Seria muito pior ficar olhando a escuridão sem poder supor o que ela esconde, sabe por que? Porque no escuro ou ao adormecer os pequenos (e as vezes os grandes) perdem-se de seus contornos pessoais, sentem-se diluídos, inexistentes, dá vertigem, medo de morrer. Se o monstro está em baixo da cama, ou é nomeado pela cantiga de ninar, então a mãe, esse ser gigantesco e poderoso, que faz dos bebês o que quer, não é a encarnação do monstro. Paradoxalmente, nesse momento o monstro ajuda a criança a acalmar-se para adormecer.

Mas os medos são mais do que isso. Existe um “núcleo fóbico” (aquelas coisas que na vida a gente foi escolhendo para temer) em todos nós. Por exemplo, vocês conhecem alguma mulher que não tenha medo de baratas? Por que esse “terrível” ortóptero que não morde nem tem veneno põem tantas a correr com sua simples presença? O filme Batman Begins, que está em cartaz, serve para demonstrar o papel do medo em nossas vidas. Bruce Wayne, o Batman na vida comum, transforma sua fobia infantil de morcegos na fonte da sua força e por isso o morcego é o símbolo de sua identidade secreta. Todos esses exemplos demonstram que sentir medo e imaginar uma cara para ele tem mais utilidades do que o cinto do homem morcego. Aliás, outro filme, Monstros S. A., ilustrou bem essa relação estável e de comunhão de bens entre as crianças e suas criaturas assustadoras.

Um dia, todos descobrimos que nosso pai não é tão poderoso como gostaríamos que fosse para nos proteger do mundo e até da mãe (outra poderosa). É nesses momentos que imaginamos monstros e super-heróis que vem, pelo menos na fantasia, regular um mundo carente de autoridade e limites. Os monstros podem ser muito feios, mas acreditem, suas intenções são das melhores, usamo-los para elaborar nosso desamparo.

O problema não são os monstros, e sim pais que, por várias razões, não têm autoridade com os filhos e resolvem terceirizar a face malvada da função que deveriam estar exercendo. Chamam então o monstro, ou uma figura de autoridade de fora da dupla paterna, para fazer o trabalho que consideram sujo. A mensagem passada é: “não sou eu que quer que você se comporte, é outro, eu mesmo não me importo com o que fazes ou deixas de fazer”. Na verdade, o que realmente assusta uma criança é todo tipo de abandono, é o adulto fraco, distraído ou preguiçoso demais para se ocupar dela. Quando as coisas chegam a esse ponto, algo não vai bem. Com os monstros a gente brinca, com a solidão a gente sofre.

Publicado no Jornal Zero Hora, Caderno Meu Filho, 2005

19/11/05 |
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