Caixinha de surpresas ou urna de cinzas?

Resenha de dicionário de lugares comuns

O jornalista Humberto Werneck juntou durante anos os lugares comuns da nossa língua. Resultou no “O Pai dos Burros – Dicionário de lugares-comuns e frases feitas” (Editora Arquipélago, 2009), um livro imprescindível para quem escreve, está ali tudo que deve ser evitado.

Adivinhem o verbete com maior número de entradas?

Futebol, é claro. Veja abaixo:

A magia do futebol
Achei que já tinha visto tudo em futebol
Futebol é assim mesmo

Futebol é bola na rede
Futebol não tem lógica
Jogar o seu melhor futebol
Jogar um futebol burocrático
O futebol campeão do mundo

O futebol é uma paixão nacional
O futebol é o ópio do povo

O futebol é uma caixinha de surpresas
O futebol tem dessas coisas
O melhor futebol do mundo

Começamos esse blog para falar do esporte de outra maneira, com outras palavras. O “rude esporte bretão” parece ter seu dialeto próprio, suas expressões cansadas e suas máximas ainda mais desgastadas. O dever do escritor é renovar e arejar a linguagem. Conseguir vencer a preguiça conclusiva e inventar novas expressões. O leitor que nos diga se conseguimos trocar o para-choque do caminhão.

Falta ainda alguém escrever um manual da lógica própria ao futebol. Por exemplo: “o gol veio na hora certa”. Vocês já viram um gol vindo na hora errada? Um técnico pedir a anulação do gol que teria chegado em um momento errado? O capitão xingar o jogador que colocou para dentro quando não podia?

Tem muito mais: “se entrasse era gol” anuncia o locutor eufórico. Alguém soube dum gol sem entrar?

Uma das origens do besteirol no futebol é fácil de apontar: a televisão. O locutor de rádio é um artista, ele tenta recriar uma cena e uma emoção que o ouvinte não está vendo. Quando assistimos o jogo na TV é quase como estar no estádio. O futebol não precisa de legendas, tal qual um filme mudo todos o entendem. Ele é explícito, a narração na TV é inútil, é uma fala que já nasce vazia. Apenas ninguém tem a coragem de deixar esse espaço vazio. Ok, quem sabe, como nos filmes mudos, um pianista que faça de improviso um fundo musical que interprete a alma da partida. Ou então podiam apenas gritar gol ou amaldiçoar o juiz. Nada disso, e ainda chamam comentaristas para ajudar a preencher o que está transbordando, só pode resultar numa enchente de obviedades.

“O Pai dos Burros” é o cemitério do dicionário. Um cemitério lotado, já é o momento do clichê aderir à cremação.

Publicado no blog “Futebol é literatura” em 26.11.2009

26/11/09 |
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