Camaleões

Sobre o “A pele que habito”, de Almodovar. O amante, o cirurgião e quão longe podemos ir ao nos transformarmos pelo olhar daqueles que nos amam.

Minha tia ligou. É uma mulher sensível, gosta de cinema e sabe o que sente. Ela me pedia algo muito simples: posso matar o Almodovar? Ponderei que não valia a pena, afinal, ele nos deu tanto. Ela estava inconformada, saíra do filme “A pele que habito” muito inquieta. Não é que o filme seja ruim, dizia, é que “ele não tinha direito de fazer aquilo conosco”. Aplaquei sua ira com um argumento baixo, nem sei se verdadeiro: graças a ele temos Antonio Banderas. Ela amoleceu.

O filme de Almodovar trabalha na vertente persuasiva do horror, parte de premissas absurdas, inaceitáveis e as faz parecer viáveis. É a magia do cinema, mas a literatura consegue o mesmo com menos orçamento, pois o combustível do encantamento é nossa empatia, fonte dos melhores efeitos especiais. Nesta obra, um cirugião plástico transforma alguém em uma criatura construída à imagem de suas obsessões. Ele aprisiona e intervém nesse ser tornando-o outra coisa, seu belo monstro. É possível que alguém torne-se algo tão diferente do que seria normalmente só porque outro quis assim? É muito mais comum do que parece.

Os pais, amigos e parentes assistem a isso rotineiramente. Eis que alguém com quem sempre convivemos se apaixona e fica irreconhecível. Por força desse amor, vai se modificando de tal forma que sua identidade mais se parece com a fantasia que compartilha com seu atual parceiro. Se for um amor construtivo isso ocorre suavemente, nos parece natural e não produz grandes resistências.

Mas o chocante nisso é nossa suscetibilidade, a maleabilidade da imagem e da identidade, como se não tivéssemos uma essência. Entregues, em breve não conseguiremos mais diferenciar o que éramos daquilo que nos tornamos por amor. Encarnamos as fantasias daqueles que amamos com assustadora facilidade. Tão plásticos e influenciáveis, quem somos afinal?

Minha tia tem razão, Almodovar não precisava ter sido tão duro, isso dói. A pele que habitamos é um órgão sensível, uma superfície modificável pelo amor. Vai tomando a forma dos seus olhos. É assim que ocorre com todos os filhos, que se constituem inspirados pelo afeto e desejos de seus pais, por isso os filhos adotivos se assemelham aos pais não biológicos. Esse fenômeno segue vida afora e a cirugia plástica, com seus poderes de transformação, algum dia acabaria herdando a sina desse feitiço e desse horror. O bisturi é o instrumento mágico que representa o fato e a fantasia de que nos transformamos pelo olhar dos outros. Se um artista é aquele que melhor desvela as fantasias, só podemos por isso agradecer ao Almodovar. Além do Banderas.

2 Comentários
  1. Também saí do cinema com uma sensação de estranheza muito grande,mas a gente sabe que quando vai assistir a um filme dele, se está sujeito à fortes emoções,no mínimo,pra nós mulheres,um lindo homem como Banderas.Nesse filme,nos foi apresentado mais um jovem e lindo ator,Jan Cornet,que aos poucos vai se transformando numa mulher belíssima,Elena Anaya,ou seja,ele agrada esteticamente homens e mulheres.Só por isso,este diretor maravilhoso mereceria ser perdoado,se nos despertar estranhas inquietações fosse pecado.Que viva Almodovar!Muito e muitos anos,muitos filmes,muitos atores e atrizes lindos e talentosos!

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