Carnaval de primavera

De que tradição o povo gaúcho pode se orgulhar?

Os historiadores não se cansam de lembrar que a dita tradição gaúcha, o gaudério de bota, bombacha, lenço no pescoço, sorvendo sua cuia de chimarrão, não passa de uma brincadeira cultural. Longe da verdade histórica, o bravo guerreiro, tão celebrado a cada setembro, é a fantasia glamourizada de um peão que nunca existiu.

Homens e mulheres vivem nos Centros de Tradições Gaúchas (aliás, espalhados por todo o país), no Acampamento Farroupilha e nos desfiles comemorativos do 20 de setembro, uma espécie de carnaval de primavera. Fantasiados de gaúcho e prenda, fazem danças típicas, acrobacias eqüestres, e festejam por vários dias o mútuo reconhecimento. Depois falamos da longa duração e da entrega popular aos orgiásticos e ostensivos carnavais baiano ou carioca, como se os prolongados festejos sulistas nos ocupassem menos. De qualquer modo, durante essa época os nativos sentem-se felizes e tranqüilos, assim fardados e comportando-se conforme os clichês da personagem. Umas poucas insígnias resolvem as inquietudes de que tanto padecemos.

Fora da festa, a vida é mais hostil: o papel viril e feminino não cessam de ser questionados, a sabedoria dos pais não vale um vintém e, diferente do Patrão do CTG, ninguém ousa dizer aos mais jovens o que vestir, cantar e pensar. No baile à fantasia tradicionalista, basta envergar o traje regulamentar e todas essas incertezas são banidas, gaúcho corretamente fardado é macho, prenda com saia de armação e flor no cabelo é mulher. As dúvidas do século XXI são resolvidas com o imaginário do XIX e estamos conversados.

“Não há como ser original, se não for com base em uma tradição”, escreveu o psicanalista Winnicott, aludindo ao fato de que partimos de uma base, que nos alicerça, justamente para transcendê-la. Nesse sentido, é sempre bom lembrar que, apesar do aspecto tranqüilizante da festa regional, nossa cultura só mostrará sua riqueza enquanto for tributária do maior acervo de referências que pudermos adquirir. Jorge Luis Borges, que muitas histórias de homens do campo escreveu, já dizia que “nossa tradição é toda a cultura ocidental”, “nosso patrimônio é o universo”, e que “não podemos aferrar-nos ao argentino para ser argentinos: porque o ser argentino é uma fatalidade e nesse caso o seremos de qualquer modo”.

Ele propunha, como contraponto, que “se nos abandonamos a esse sonho voluntário que se chama criação artística, seremos argentinos e seremos, também, bons e toleráveis escritores.”. O mesmo vale para nós, gaúchos. Só para lembrar que nosso movimento tradicionalista organiza uma boa festa popular, mas a arte e a cultura das quais nosso povo pode se orgulhar são muito maiores do que isso.

6 Comentários
  1. Frederico Wilhems permalink

    Dobre tua lingua para falar das tradiçoes.
    Os gauchos sao brasileiros por opçao
    levamos esse pais nas costas
    graças a nossa bravura e vontade de trabalhar, vontade essa que nao existe do Rio Uruguai pra cima principalmente no nordeste que só sabem dormir.
    Se nao fosse os farrapos nosso estado nao seria o que é hoje
    A sra esta precisando ler mais a historia.

    • Marcos A.Ferreira permalink

      Tirando as mulheres bonitas. O que o estado é hoje?

    • O Sr por gentileza, além de história leia um pouco de psicanálise.
      Comprenderas , então, o texto. Que por sinal Dra, está ótimo!

  2. nadia permalink

    muito justo

  3. Marisa permalink

    Parabéns pelo belo texto e parabéns pela inteligência, coerência e lucidez ao escrever sobre este tema.

  4. Texto recheado de muita sabedoria!

    Em SC temos um ‘carnaval de primavera’ germânico, mais ou menos parecido com este, que ocupa e deixa feliz o povo por mais de mês, atrás de trajes, flores, música, bandeiras de três cores…

    Há uma crítica no curto texto https://alegracatarina.wordpress.com/2014/09/06/segunda-princesa/ que fiz outrora, em relação ao que ocorre em outras cidades do Estado. Mas as tradições da música, culinária, cuidar dos mais velhos em casa, gosto pela literatura, culto à beleza, cultivo do jardim e horta, capricho com a residência, aprendizado em marcenaria, caça, tiro, cuidado em saber se trançar o cabelo, bordar, costurar, pintar, ter um bom caderno de receitas da qual se pega a mão em fazer acompanhado de tias e avós, aproveitar os alimentos de época, resgatar pratos, interagir com as famílias em grandes mesas, dar muito valor aos parentes e amigos fiéis, tentar na medida do possível morar perto, trabalhar junto, dar valor ao casamento, ir a missa, ao menos na minha cidade, ainda são transmitidas, e “a festa” faz sentido aqui, promovendo ano a ano este resgate. E isso é ótimo! Até o ponto em que nos limita e nos diz: não há escolha, não se pode ser diferente, não nos deixamos contaminar pelas outras culturas, e este é sim o nosso erro! Mas acho que sabemos. Só gostamos de ser assim, batatas. E devagarinho, ano a ano, percebemos alguma mudança nos hábitos. Pequenas “evoluções”.

    Fico feliz em ler teu texto, vindo de encontro.

    Abraço,

    Auristela

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.