Carta aos reis magos

Queridos Gaspar, Melchior e Baltazar, no tempo e lugar em que me aconteceu a infância, tínhamos o hábito de pedir presentes a vocês. Papai Noel somente deixava, no máximo, uma lembrancinha. Mesmo sendo judia tive direito às minhas cartinhas e presentes, assim como o dever de colocar pastinho e água na janela para  saciar a […]

Queridos Gaspar, Melchior e Baltazar, no tempo e lugar em que me aconteceu a infância, tínhamos o hábito de pedir presentes a vocês. Papai Noel somente deixava, no máximo, uma lembrancinha. Mesmo sendo judia tive direito às minhas cartinhas e presentes, assim como o dever de colocar pastinho e água na janela para  saciar a fome e a sede dos camelos. Nunca entrei no mérito de por onde vocês entravam, sei que não são chegados numa chaminé, mas seres mágicos dispensam arrazoados.

Sei que cresci e não devo ocupá-los, pois há crianças de verdade à espera, mas na véspera do dia de Reis e vou reivindicar minha infantilidade para encaminhar alguns pedidos. Afinal, penso que servirão para muitas crianças.

Não quero uma bicicleta, mas gostaria de ganhar ciclovias por onde pudéssemos circular de maneira segura e saudável. Ao invés da criança no banco de trás, falando aos gritos com as costas de um pai ou mãe estressados no trânsito, os filhos viajariam na cadeirinha na frente, partilhando o ar, a vista e trocando comentários.

Para os dias de clima hostil e também para distâncias maiores, queria que pais e filhos pudessem viajar sentados em um transporte coletivo cômodo, olhando juntos para fora, contando-se histórias, eventualmente até cantando baixinho. Também queria que os adultos pudessem ir ao trabalho lendo, escutando música, com a  mesma dispersão das crianças sendo levadas à escola.

Não quero um carro, quero que todas as vagas de estacionamento e garagem que meu carro iria ocupar virassem bancos com floreiras, onde os caminhantes pudessem descansar e ver o movimento.

Não quero nada que precise ser comprado num Shopping Center. Quero comércios na rua, aliás quero ruas onde as pessoas circulem, façam suas compras perto de casa e retornem com a sacolinha na mão comentando sobre o clima com os vizinhos.

Não quero guloseimas, tenho mais de cinquenta anos, só de pensar nelas engordo. Podem enviar minha parte às crianças que nunca as receberam. Aliás, para aproveitar o luxo da guloseima é preciso que nenhuma delas esteja passando fome, isso não é muito pedir, né? E, já que estou sendo abusada, não teria um jeito de mandar incenso, mirra e principalmente ouro para a cultura? Tem tanta história, tanta coisa linda que nunca encontrou seu leitor, seu público!

Faz uns dias, morreu, aos 97 anos, o poeta Manoel de Barros. Ele era gente grande, como poucos, mas como criança acreditava que se podia morar nas margens de uma garça, que era possível aprender o idioma das árvores, transcrever para flauta o canto dos vermes e enxergar a fala de uma cor.  Sua lembrança me deu coragem de escrever esta carta. Afinal, como ele eu também penso que formiga não tem dor nas costas!

05/01/15 |
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