Charadas ambulantes

Que dizem os “loucos” da rua aos “normais” de dentro de casa?

Conheço um senhor para quem o essencial na vida se resume a um rádio de pilhas. Precisa acompanhar os noticiários para controlar as transmissões extraterrestres que falam a seu respeito. Isso é tudo o que quer da vida, não cobiça carro, apartamento de cobertura, TV com HD, Apple, Nike. Apreciaria ter com quem conversar sobre suas preocupações, isso basta.

Há aqueles cujos objetos preciosos cabem num saquinho de plástico que carregam sempre consigo. Dentro tem papéis rasgados, recortes de jornal, panos sujos, tiras, cadarços, alguma comida, pedaços de objetos. Cada uma dessas posses possui significado para seu dono, mas também pode ser descartada a qualquer momento. É gente sem nenhum apego.

Outrora ditos loucos de rua, hoje são considerados “portadores de sofrimento psíquico”. São também denominados de psicóticos e outras classificações científicas para os encarregados de sua saúde mental. Indiferentes à nomenclatura, andam por aí envoltos em sua nuvem. Gesticulam nas calçadas, discursam para seus fantasmas, o olhar nublado raramente pousa nos passantes. Sabem parecer zumbis: andando no meio dos carros sem notar o perigo. Seguido estão bêbados, o álcool lhes adormece o delírio, a fome, as dores.

Sempre queremos tantas coisas, temos desejos sempre maiores do que as posses, por isso não há nada mais incompreensível do que esses franciscanos sem fé. Até o trombadinha, o ladrão, parecem mais naturais do que o maluco indigente: com esses ao menos partilhamos os objetos de cobiça. Já o mendigo enlouquecido rouba-nos as certezas, indiferente ao que consideramos essencial. Ele é uma charada que nos assalta, uma provocação involuntária.

As vezes bate um desânimo, um cansaço de lutar tanto, até as vitórias ficam sem sentido. Não é raro, entre os ditos normais, que se fantasie com desistir de tudo, com uma vida minimalista. Temerosos dessa vacilação, exilamos os que nada têm, nada querem, nada guardam. Eles, fazendo parecer opcionais os caminhos que acreditávamos ser naturais, nos despertam angústia.

De que (não) necessita gente que veraneia na calçada? Que trama encenam suas vozes, as imagens do seu delírio? O que dizem esses que falam estranho na nossa língua? Pensamentos e atitudes inusuais estremecem o que consideramos óbvio. Toda diferença traz novos paradigmas: cegos ensinam a escutar, deficientes auditivos tornam os gestos mais eloqüentes. Loucos indigentes questionam nossa necessidade de acumular cacarecos. O encontro com diferentes formas de perceber e compreender é como viajar, sem avião, sem drogas. Recomendo.

Um Comentário
  1. Lívia Petry permalink

    Os loucos da rua nos desestabilizam, tiram nossas certezas, jogam no lixo todas as razões por que lutamos, trabalhamos, sofremos por um emprego, uma casa, um carro. Os donos da rua, sem nenhum apego, sem nenhum status quo, traduzem bem as palavras do poeta: “não sou nada / não posso querer ser nada/ á parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

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