Chico em prosa

Sobre o livro Budapeste

Chico Buarque não precisava provar mais nada para ninguém. Poeta maior, para que também escrever romances? A resposta está com José Costa, o personagem central do já consagrado Budapeste (Companhia das Letras). Ele é um escritor anônimo, cria textos que outros assinam, é bom no que faz, mas o anonimato lhe é uma compulsão.

 Não estava propriamente insatisfeito com seu destino, quando o acaso de uma conexão aérea o obrigou a passar uma noite na Hungria. Astronauta das palavras, logo percebeu que sua nave caíra em outro planeta lingüístico. Essa língua originária da Ásia central, é carente de transparências para nós. Sua pronúncia acentua o início das palavras, o que lhe empresta uma sonoridade surpreendente aos nossos ouvidos. (Escutei húngaro toda minha infância e posso lhes assegurar que ela tem outra música). Costa passou a noite assistindo televisão, ou melhor escutando-a, e desenvolveu uma segunda compulsão: aprender húngaro. Já se disse, corretamente, que a melhor forma de aprender uma língua é amando nela. Eis que surge Kriska, para lhe dizer que “a língua magyar não se aprende nos livros”. Em seus lençóis ele se entrega totalmente a esse novo amor, o idioma húngaro.

Chico e Costa ressaltam um aspecto da l íngua que temos bastante esquecido em nossos tempos pragmáticos. Se comunicar em outros idiomas não serve apenas para pesquisar, fazer negócios, viagens de turismo ou qualquer outra utilidade. Falando em outra língua podemos nos sentir pessoas diferentes. Um novo idioma pode até se aprender nos livros, mas os amores costumam ser excelentes mestres, porque quando aprendemos a falar pela primeira vez, o fazemos no contexto de uma história de amor, a inaugural. Antes de nos apropriarmos das palavras e aprendermos a fazer nossas próprias combinações, a língua materna nos envolve como um abraço, em cujo embalo crescemos. No início percebemos apenas sua música, o cantinho que se faz ao falar. Cada lugar tem seu próprio tom, envolve de forma diversa, por isso podemos nos sentir no estrangeiro simplesmente por mudar de estado. Uma nova língua, nova pátria (como diria Caetano) novas formas de ser. O destino de Costa, quando ele se torna Kósta, em sua nova identidade húngara, não é radicalmente diferente do seu modo de ser brasileiro, digamos que é como uma outra conjugação. Adotar (ou ser adotado por ela) uma língua quase intraduzível (“lefordíthatatlan”, em húngaro), cantada em outro tom, é como se existisse a possibilidade de começar uma vida em outro planeta, vale o investimento. Por isso compreendemos porque um poeta famoso se desafia no novo território da prosa. Chico tem razão, enquanto houver formas distintas de dizer as coisas, haverá outras vidas possíveis. Falar diferente é amar diferente, é viver diferente.

05/05/04 |
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