Comendo livros

Sobre leitura e minicontos

Ainda guardo em mim alguns raciocínios infantis que me induzem a equívocos. Um deles é ler as coisas no seu sentido literal. É esse tipo de pensamento que pode levar uma criança a pensar que todas receitas contém chá e sopa entre seus ingredientes, já que colheres disso são sempre mencionadas, e que sapatos de salto são para saltar. Foi por isso que li enviesado uma manchete da capa da revista Claudia que dizia: “A dieta dos Best-sellers”.

Imaginei um grupo de pessoas gordas reunidas discutindo sobre livros ao invés de terem que comunicar umas às outras o que comeram e quantos quilos perderam. Entre as histórias escolhidas, haveria também relatos de grandes comilanças, como A festa de Babette, de Karen Blixen, mas esse é alimento que não engorda. Minha fantasia foi longe: cada um poderia ser Sherazade por uma temporada, narrando seus livros de escolha alternadamente; ou talvez a cada semana um contasse aos outros partes do seu livro, assim todos acompanhariam vários livros ao mesmo tempo.

Mas no que isso as emagreceria? Provavelmente, em nada… Foi apenas um devaneio sobre uma sociedade mais sonhadora e menos voraz. Comendo mais literatura talvez não ficássemos entregues a prazeres de tiro tão curto e, conseqüências nefastas, como os excessos de comida e álcool. Isso nos livraria principalmente do consumo de drogas, que prometem um sonho protético para os carentes de imaginação, ao preço de virar pesadelo.

Impossível não evocar aqui o saudoso Bode Orelhana, personagem dos quadrinhos de Henfil que, em plena ditadura devorava tudo, inclusive livros e jornais. Esse regime lhe proporcionava momentos de sábia eloqüência, mas também grandes indigestões. Era uma época de dieta forçada de idéias, onde precisávamos catar o que ler como famintos na caatinga. Sugiro que aproveitemos a fartura.

Falando em dieta e livros, é fato que grandes contos podem vir em poucas palavras, numa quase poesia, como este magnífico exemplo escrito por Sergio Napp: Estava abatida por todos os dias passados naquela cama de hospital. Ele apanhou o potinho com gelatina e a colher. Nunca se imaginara em tal situação: alimentando a morte da própria mãe. É um dos minicontos do último lançamento da Série Lilliput da Editora Casa Verde. O livro é Contos Comprimidos (org. Fernando Neubarth).

Deixo os livros dessa série na sala de espera do meu consultório, lá ninguém espera muito, mas sempre dá tempo de meus pacientes iniciarem a consulta com um trecho de ficção, que em certas ocasiões alimenta nosso trabalho.

12/11/08 |
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