Como Vemos os Infiltrados

Prefácio de Os Infiltrados

Quem são os Infiltrados?

Um pouco por acaso, por tropeçar no assunto, e depois por vontade de escrever uma boa matéria sobre um lado obscuro do nosso passado recente, quatro jornalistas do jornal Zero Hora deram voz a personagens pouco conhecidos da nossa história. Eles entrevistaram agentes que trabalharam como informantes infiltrados nos movimentos sociais durante a ditadura militar. Através dessa reportagem, os infiltrados saíram de uma clandestinidade que não faz mais sentido, e nos dão suas razões para a opção que fizeram.

O livro é muito bem vindo, pois nosso país tem uma grande dificuldade de olhar para trás. Questões pontuais, como os corpos dos guerrilheiros jamais devolvidos às famílias, os arquivos fechados, uma lei de anistia que quer fazer de conta de que nada aconteceu, os resmungos cada vez que aparece a questão das indenizações, tudo isso nos dá um índice de como não fizemos as pazes com esse período. Nossas feridas não foram tão fundas como nos países vizinhos, mas eles souberam cicatrizá-las melhor.

O que interroga nesse caso é por que essas pessoas resolveram contar suas histórias? Afinal, são aventuras de um heroísmo no mínimo duvidoso, dentro de uma ética questionável, com um sentido moral difícil de classificar, para manter um governo militar ilegítimo e autoritário. Por que não ficaram calados, quietos no canto de mundo onde estão? A primeira resposta é porque é justamente a sua história, é ela que os fez ser o que são, só nisso já encontramos uma justificativa. Gostemos ou não, são atores da história recente do país e contá-la passa também por eles. Mas acredito que há uma segunda questão: eles desejam dar sua versão dos fatos. Muitos estão ficando velhos e temem que, quando partirem, o sentido do que fizeram e as suas razões sejam esquecidas. Eles querem dizer que não foi em vão e seus esforços tinham uma intenção maior. Hoje a versão dos infiltrados é a derrotada, ou ao menos menosprezada. No julgamento popular eles são todos colocados como personagens menores, que fizeram uma parte do trabalho sujo para a manutenção de uma ditadura.

A história é contada pelos vencedores. Essa máxima, embora verdadeira, não abre para o meio termo, para a complexidade das situações, ela simplifica e empobrece um tema. Infelizmente o mundo é um pouco mais complicado do que gostaríamos e não cabe nas gavetas estreitas em que tentamos apreende-lo. Prefiro a tese de que a história é contada, e o passado reavaliado, desde os valores do presente.

Até por que, nesse caso, quem venceu? Os dois lados podem reivindicar vitórias, ainda que parciais. Num primeiro momento a sociedade civil, as instituições de classe, os movimentos sociais foram golpeados. O Brasil, capitaneado pelos militares, tomou um rumo diferente. A contra-revolução, para usar a terminologia da facção de direita, ganhou e o país não se bandeou para o lado do comunismo. E esse era e ainda é o ponto central da argumentação do pensamento conservador. Nesse caso, nós teríamos uma dívida com eles por terem salvado o país duma ditadura de esquerda. Aliás, esse argumento é uma vitória sobre uma possibilidade, pois quem garante que íamos nessa inevitável direção? Mas para eles iríamos, então abortaram o dito projeto, e o estado de direito quebrado era visto como um preço inevitável e até barato para tão grande conquista.

Mas os movimentos populares se reergueram e o Brasil voltou a ser uma democracia. O que é certamente uma vitória, porém nem todos sonhavam apenas com a volta da democracia e sim com uma mudança política mais radical, com uma reforma na distribuição de renda e poder, mas isso não aconteceu. Então, quem ganhou?

O grande vencedor mesmo é aquele quem lutou pelas liberdades democráticas. E acredito que é sob essa lente, do estado de direito e do restabelecimento da democracia, que hoje vemos os protagonistas desse livro. O fim da guerra fria deixou ambos os lados um pouco desconfortáveis, esvaziou-se a bipolarização. Hoje é até difícil passar para a nova geração a idéia de como o mundo era dicotomizado até os anos 80. Portanto, a idéia de que houvesse um possível heroísmo no engajamento dos infiltrados, que se acreditavam heróis no contexto da guerra fria, se esfarelou. Esse pretenso gesto maior não é perceptível, é preciso ser lembrado que havia um movimento ideológico conservador, não necessariamente oportunista, e que não fazia uma adesão apenas pragmática ao poder. Ao mesmo tempo, é bom lembrar, a militância de esquerda era voluntária, com pouquíssimos profissionalizados, e do outro lado exatamente o contrário, pouquíssimos voluntários e muita carteira assinada.

O mesmo esquecimento vale para os perseguidos pelo regime militar, mas esses são os vencedores, boa parte está no poder, e embora saibamos que não foram atendidos em todas suas demandas, pelo menos estavam do lado hoje considerado certo. Além do mais, ser perseguido pelo estado é um valor em si, pois nosso estado ainda é visto como opressor, e portanto, a rebeldia contra ele é benigna.

Outra questão é que os infiltrados eram “da polícia”. Entenda-se “da polícia” como um grande todo que sugeria agentes da repressão. Que a realidade tenha sido bem mais complexa, com vários órgãos interligados, com funções distintas, pouco importa, eram todos colocados no mesmo saco e igualmente temidos e odiados. É que a polícia no Brasil, no seu sentido amplo de representante ativo da lei, infelizmente, é mal vista e por isso está em permanente desencontro com o cidadão. Nosso passado de governos autoritários e repressivos, contribuiu para a má fama da polícia, e parte dela, por sua vez, nunca teve muita vontade de ser diferente. Certos setores não procuram sorrir e agem como se a fama de “mau” fizesse parte inerente de sua identidade.

Terminada a ditadura e desmontados os aparatos repressivos, é a polícia que carrega essa herança de pecados, pagando algumas promissórias que não são suas. Deveria reagir a isso de uma forma mais contundente, uma democracia verdadeira não pode existir sem que todos agentes do estado sejam igualmente respeitados. A polícia federal ultimamente ganhou uma consideração positiva da população, mostrando que esse caminho é possível. E isso, vale lembrar, é um fenômeno brasileiro, muitas polícias são admiradas.

Não bastando então ser então “da polícia”, com a carga negativa, que queira ou não lhe acompanha, os infiltrados nem ao menos mostravam a sua cara. Embora não o fossem, eles involuntariamente ficaram no campo semântico dos traidores. Uma coisa é o que se faz, outra é como isso é percebido pelos outros. O pensamento popular brasileiro não trabalha com as expressões agente secreto, informante, infiltrado e sim com: cagueta, dedo-duro, X9, judas. A questão é que dentro da nossa cultura o ato em si é condenável, independente dos fins. Ou seja, usar da confiança de alguém para depois delatar é ruim, não importa se existe uma causa por trás.

A dupla face não é bem recebida entre nós, e a lealdade aos próximos, com quem compartilhamos algo, é um valor soberano. Era isso uma das tantas coisas que Buarque de Hollanda queria nos dizer com a cordialidade brasileira: não é que somos afáveis, e sim que as nossas escolhas privilegiam os laços afetivos acima dos de competência ou adequação. Primeiro os amigos, os companheiros, “a família”, ou seja, quem tem um laço conosco, é por isso que uma traição, uma mudança de lado, e nesse caso um laço afetivo falseado, tem um valor tão negativo, ela é uma traição também a um dos nossos valores. Quanto a isso, é como se o brasileiro pensasse: existem coisas que nem o diabo aceita.

Nesse sentido, como classificar alguém que finge uma adesão a um grupo para depois entregar essas pessoas? E não se tratava de informações quaisquer, isso mudava o destino, sempre para pior, dos envolvidos. É aqui que a censura pública bate mais forte, a delação está para a amizade assim como a prostituição para o amor. A idéia de que os fins justificam os meios é uma grande cilada lógica, pois na verdade são os meios que fazem os fins. Por vias tortas só chegamos a resultados tortos e entortamos os agentes daquela ação.

Os mecanismos introduzidos pelos estados de exceção tornaram a vida nos estados totalitários uma paranóia social, criando aquilo que Orwell descreveu tão bem como o “grande irmão”, que tudo sabe e tudo vê. As ditaduras militares sul-americanas não foram tão longe, mas o estrago não foi menor. O brasileiro tinha medo, se afastava da vida pública, omitia suas opiniões. Existe ainda um efeito colateral que nunca superamos, ainda confundimos autoridade com autoritarismo, como se uma autoridade, qualquer que seja, do poder ao saber, portasse uma ilegitimidade. Esse mal-entendido custa caro a nossa vida social.

No carnaval, quando vestimos uma fantasia, estamos expressando nossa parte minoritária, que nesse momento de exceção pode se manifestar. No teatro e no cinema, um personagem só é convincente se o ator emprestar um pouco da sua alma para o  enredo, ou seja, se ele encontra algo de si para cruzar com o texto e lhe dar vida. Mas alguém que vestiu a camiseta do inimigo para se aproximar do alvo, que parte da alma ele usou para ser convincente? É difícil medir o custo psíquico dessa dupla alienação, afinal, ele está ali como instrumento (mesmo que seja um sádico) ele cumpre ordens e, ao mesmo tempo, finge ser uma coisa que não é. Onde ele estava afinal? Quem ele era e o quanto essa experiência o tocou? Alguns eram inclusive jovens quando estavam infiltrados, no período de formação, quando a troca social e o que se aprende com ela é muito importante. Com que dívida ele fica com o que aprendeu, com a generosidade que recebeu, de quem partilhou experiências?

Não é à toa, portanto, que os infiltrados demoraram para falar, e o fizeram numa circunstância de provocação. Afinal, o sistema que lhes deu sustentação e legitimidade ruiu, e eles não são considerados heróis por ninguém a não ser por si mesmos. E é bom que falem, senão poderia pairar no ar a idéia de que quem ontem vendeu informações, hoje possa estar vendendo silêncio.

De qualquer forma creio que ganhamos todos, pois alguns depoimentos são fios dum novelo maior da nossa história, uma história que vale a pena ser contada porque é a nossa. Melhor que fique um registro, quem sabe com o passar do tempo alguém possa ver neles algo que nos escapa, presos que estamos às circunstâncias do nosso tempo.

E quanto ao ato em si, como é viver uma vida de mentira? Há vários tipos de relação com as próprias verdades, os psicanalistas são testemunhas de tantas vidas onde a fachada e o interior não coincidem de modo algum. As razões são múltiplas: amantes escondidos, filhos secretos, uma vida sexual clandestina, um passado de fracassos omitido, mas as mais estranhas, embora minoritárias, são aquelas que não há nada a esconder, a não ser, a vontade de esconder. Existem os que fazem segredo apenas para que ninguém saiba quem de fato são. Temem a transparência, crêem que se os outros souberem de si estarão em suas mãos, portanto enganam, dissimulam, mentem, despistam, contam meias verdades, ou contam um capítulo para cada um e a totalidade para ninguém. E não vamos confundi-los com os de outro tipo, os mitômanos, que criam vidas mais atrativas, inventado grandezas para aferir glória entre sua platéia.

A idéia que deus seja onipotente, e especialmente, no nosso caso, onisciente (aquele que tudo sabe), não se deve só a tradição mitológica que criou nossas religiões, nós experimentamos por nossos pais sentimentos semelhantes quando éramos bem pequenos. Uma criança um dia descobre que seus pais podem não saber tudo sobre ela, inclusive que eles não ouvem seus pensamentos. Nesse momento a criança experimenta um gozo de autonomia e começa a “mentir” apenas para seguir usufruindo dessa sensação. Com isso ela se sente mais livre de seus pais, deu um passo importante no seu crescimento. É preciso não tomar como falha moral essas pequenas mentiras iniciais da criança, até por que elas não são um problema, nem são exatamente mentiras, elas só tornam-se um problema se esse estágio transitório tornar-se permanente. Geralmente isso acontece com pais, ou um ambiente muito opressivo, quando é necessário não se expor. Não pensem necessariamente em maus pais, às vezes uma mãe muito solícita e um pouco ansiosa já passa uma idéia de que é intrusiva, e a criança necessita se defender de sua presença.

Portanto se você não tem uma habilidade muito desenvolvida em mentir não se sinta inferior, pelo contrário, sua relação com seus pais, (e agora com os outros) é mais tranqüila e não precisou expandir a experiência inaugural. Já se você acha que leva jeito para agente secreto, vida dupla, acha que seria legal despistar a todos, pode saber que essa habilidade não é exatamente de berço, mas desenvolvida uma pouco depois dele.

Claro, ninguém vira infiltrado, agente secreto, para gastar sua necessidade subjetiva de ser incógnito, mas só quero dizer que não é tão difícil assim, uma disposição psíquica, um pouco de treino e qualquer um pode viver entre o inimigo. Bom, existe um preço, nós estamos falando de uma possibilidade, outra é de agüentar o tranco. A questão é que se necessita uma boa dose de coragem, o medo de ser descoberto é muito grande, e se está sob stress constante, pois isso pode acontecer a qualquer momento. Esse quadro tende a uma paranóia, a uma desconfiança básica, e afinal, se você mente o tempo todo, por que não imaginaria que os outros estão fazendo o mesmo? Já diz um ditado popular: quem mais tem medo de ser roubado é o ladrão. Atribuímos ao outro o que nós mesmos fazemos (ou gostaríamos de fazer), desconfie de quem acha que você o está enganando.

Até porque, para viver uma vida de mentira, para pagar um preço tão alto, só seria possível, acredito, com certa fascinação pelo inimigo. Como se fosse uma paixão às avessas, uma curiosidade muito forte que faz aproximar-se daquilo que quer-se exterminar, mas com o preço de quase se confundir.

O ambiente da ditadura era muito opressivo, tenso e perigoso para quem fazia política, nos dois lados, o Brasil só era calmo e pacífico para os alienados. É muito provável que essa experiência tenha sido muito pesada para os infiltrados, e é natural então, que para eles, deva ter um grande valor heróico. A questão é que não existe um reconhecimento social da envergadura do seu ato fora dum círculo muito restrito. Enquanto seus inimigos ganham indenizações e medalhas morais por resistir a um estado que eles ajudavam a manter, hoje eles não possuem visibilidade, nem ninguém os convida para contar como foi nos velhos tempos. Esse é o seu drama, eles tomaram o bonde da história numa direção e ele foi para o outro lado.

31/10/10 |
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