Confissões de uma centopéia
Confissões de uma centopéia: consumir é uma forma toxicômana de desejar.
Quando jovem adorava histórias de pioneiros americanos e sua vida difícil. A compra de um tecido, de uma fita, um instrumento, uma boneca, eram ocasiões raras e comemoradas. Aquela vida espartana, em cujas páginas gostava de me aninhar, parecia valorizar os objetos com os quais se convive, eles precisavam de muito menos coisas que nós. Sentia o aconchego da justa medida, de um tempo em que se era livre da necessidade de consumir. O vasto acesso a uma infinidade de objetos cansa: o que parecia possibilidade torna-se compulsão, é o feitiço que acaba dominando o feiticeiro.
Possuo muito mais sapatos do que necessito: fosse uma centopéia, estaria abastecida. Certa vez, discutindo o porquê dessa fascinação por calçados com uma amiga, ela observou: o sapato é a única peça do vestuário que mulheres de qualquer silhueta podem comprar! Serve para todas, sempre cai bem, sejamos mais ou menos afortunadas pela beleza. Se a democracia pédica é uma realidade, conclui-se que, mais do que de sapatos, gostamos é de poder comprar.
Homens trocam carros que ainda estão ótimos; os celulares são os sapatos dos adolescentes; crianças acumulam tantos bonecos ou carrinhos que se atrapalham para brincar; idosos são vítimas dos canais de compras. Uma amiga que vivia com os pais velhinhos tremia cada vez que soava o interfone, alguma encomenda estapafúrdia estava chegando!
Independente do número que se veste, idade ou sexo do consumidor, a publicidade sempre tem algo a nos oferecer. Sereias cujo canto nos fascina, comerciais e lojas parecem saber como traduzir nossos desejos, sempre tão difíceis de compreender, em objetos passíveis de comprar. Nunca sabemos bem o que queremos ser ou ter: a quem, como e quando amar, como trabalhar, como descansar, de quais prazeres usufruir, como fazer para ser admirados. A pergunta do gênio da lâmpada é sempre angustiante: quais seus desejos? Em termos de consumo, tudo isso fica fácil de definir: as crianças, os amigos secretos e parentes são instruídos a pedir algo em datas festivas, ocasiões em que felicidade e amor se materializam, parecem compráveis. Por isso nos frustramos tanto.
Consumir é uma satisfação que pede sempre mais. Como todas as ilusões, essa idéia de que, mesmo por um instante, é possível saber exatamente o que nos faz falta acaba sendo um alívio provisório. Mas como um vício, só funciona se não parar. Quando o objeto está em mãos, o vazio já se instala. Compras só adiam a insatisfação, que ruge mais forte quando provocada. O consumo é o ópio do desejo, entorpece o que realmente nos move. Enfeitiçados pelo canto das compras, ignoramos nossos verdadeiros desejos. Estes, só se expressam se tivermos coragem de enfrentar, com angústia, a pergunta verdadeiramente genial: afinal, o que você quer?
E a necessidade de comer. É o quê?
gula, ora! uma fissura não colecionável!
abraços
diana