Contar para não repetir
sobre uma psicanalista na Comissão da Verdade
A Comissão da Verdade vai investigar e divulgar trechos omitidos de nosso passado, mas o trabalho desse grupo não tem poder de fazer justiça. O surgimento da verdade sobre o que ocorreu nos porões da ditadura é sem conseqüências práticas. Então, para que dar-se ao trabalho de trazer à tona velhas dores?
Boa pergunta para um psicanalista, que por ofício torna o passado eloqüente. Brinca-se que numa análise tudo acaba em Édipo. De fato, “o passado condena”, mas nem só de gregos parricidas ele é feito. Se as respostas fossem óbvias não haveria tratamentos psicanalíticos. A princípio sempre julgamos o mundo externo, “os outros”, culpado pelas nossas mazelas; com certo percurso, percebemos que tivemos algum papel nesses males. Por fim, impõe-se rever a própria história: como foi que cheguei até aqui?
Contar a vida que se teve não vai apagar a experiência de uma família maluca, a sina de ter nascido no lugar de um irmão morto, a horrível experiência de um abuso, mortes, falências, ódios. Os fatos do passado não mudam só porque foram rememorados, mas, lembrados conscientemente ou não, influenciam o presente, alteram o futuro. A eficácia de um tratamento psicanalítico provém de escutar-se contando a própria história. Uma nova versão de nós mesmos permite reposicionar-se frente à vida. Só assim resolvemos pendências, ressentimentos, nos libertamos de ter que repetir o mesmo papel.
É assim com os indivíduos, assim com os povos. Em seu livro “18 crônicas e mais algumas” (Boitempo Editorial), a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão da Verdade, conta como isso acontece. Ela exemplifica através da persistente conivência com certa violência policial. Infelizmente, ainda encontramos práticas de tortura e de execuções sumárias. Os porões, como se vê, sobrevivem. Em geral, as vítimas são pobres, considerados culpados sem direito a julgamento. Não seria uma repetição, autorizar-se a punir fora da lei? Aparentemente, aquilo que do passado não se elabora vai sendo re-encenado, assombra outros tempos. Na contramão desse silêncio pernicioso, a Comissão da Verdade vai propiciar que histórias omitidas ou deturpadas sejam faladas, contadas e, com isso, elaboradas.
Quando chamada para fazer parte da comissão, Maria Rita perguntou-se: por que eu? Sem dúvida por ser psicanalista e a escritora engajada. Também porque “o sentimento do mundo me pega não com a doce melancolia do poeta, mas como um paralelepípedo na testa” escreve ela em outra crônica. Para nossa sorte, de leitores, ela acrescenta: “a elaboração do texto é uma espécie de cura para o impacto (traumático?) do acontecimento”. Viver, contar. Por isso foi – muito bem – escolhida.