Corpos

Sobre a imagem corporal

Nesses dias de copa os jogadores de futebol colocam seus dotes físicos a serviço do orgulho nacional. O corpo do esportista é objeto de admiração, mas às custas de inclemente exigência, vide a comoção nacional pelo sobrepeso de Ronaldo. Eles encarnam nosso desejo de transcender os limites da capacidade física, não importando o quanto isso possa doer. Deles, qualquer falha é imperdoável.

Esqueça o corpo desses heróis e vamos para outra cena. Nela há algo que manca, há algo fora do lugar. É o corpo das pessoas que padecem de deficiências físicas, que pede outro tipo de heroísmo. Avariados permanentemente pelo acidente, pela fatalidade, pelo destino que ninguém escolhe ter, quebram nosso espelho de físico poderoso. São os artistas da sobrevivência, que se locomovem sem as pernas, fazem as coisas sem que suas mãos ajudem, se orientam sem ver, se comunicam sem ouvir. Tão exigidos quanto os jogadores, convivendo diariamente com a dor e a necessidade de se superar, os deficientes tornam-se atletas involuntários do árduo esporte da vida na adversidade cotidiana.

A evidência que a presença dessas pessoas ostenta é que o sorteio da fatalidade é aleatório e o bilhete “premiado” pode ser de qualquer um. Seus corpos, queiram ou não, denunciam nossa fragilidade, o equilíbrio precário da marcha, a soma de gestos difíceis que compõe a motricidade. Basta um grupo de músculos se recusar a desempenhar sua função, que o todo se desmancha. Nunca esquecerei meu primeiro contato com um grupo de jovens afetados por lesões cerebrais: seus corpos, completos e perfeitos na estrutura, negavam-se para o mais banal dos movimentos. Naquele dia compreendi que nosso esquema corporal se sustenta num fio delicadíssimo, fácil de romper. Por essas e outras, a relação com nosso corpo tende à paranóia. Dele podemos extrair prazer e orgulho, mas também pode ser a porta do inferno com todas as suas torturas. A mais conhecida é a dor, mas a limitação da autonomia pode ser uma pena ainda maior do que a física. Por isso nos entusiasma o desempenho dos recordistas. Festejamos nesses campeões a ilusão que do corpo podemos pedir sempre mais e mais, na mesma medida que recusamos o espelho partido da deficiência.

Mas é em vão viver escondidos da fatalidade, afastando do olhar público os portadores de deficiência, negando-lhes a circulação e a inclusão social. Se você observar bem, ela chega para todos: é a velhice. Com o passar do tempo, as dificuldades vão se impondo, devagar e sempre. E não há plástica que elimine a dor, a diminuição do fôlego e da mobilidade, a crescente dependência, as grandes ou pequenas doenças que nunca deixam de comparecer. É preciso ter uma determinação de atleta ou de portador de deficiência física para viver a terceira idade com bom humor. Como se vê, a superação dos limites físicos para os esportistas é uma escolha, para os deficientes uma necessidade e para todos nós uma questão de tempo.

28/06/06 |
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